Quarta-Feira, 24 de Novembro de 2010
Otávio Dias de Souza Ferreira
A devastadora vitória do artista Tiririca para a Câmara dos Deputados, seguida por um impasse no Judiciário sobre eventual indevido preenchimento de uma condição de elegibilidade invoca um oportuno debate em torno da eficácia da norma que determina a inelegibilidade do analfabeto, prevista no §4º, art. 14, da Constituição Federal.
José Afonso da Silva ensina que as inelegibilidades devem ter um fundamento ético evidente. São legítimas quando têm por objeto: a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato; e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração (fl. 228, “Comentário Contextual”). O fato de o indivíduo ser iletrado não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses. A simples existência de um adulto analfabeto, conseqüência da omissão do Estado em cumprir deveres impostos pela Constituição, é por si só uma imoralidade. O ilustre constitucionalista continua a lição, advertindo que as inelegibilidades se tornam ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político, para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha detendo (fl. 228, idem). O caso do analfabeto enquadra-se admiravelmente nesta hipótese.
Há um antigo sentimento arraigado no imaginário da sociedade brasileira que se convencionou a chamar de “cultura do bacharelado”, que se mantêm muito vivo no debate político. Preconiza que apenas os bacharéis ou os eruditos teriam a capacidade de estar no poder e decidir o que é o melhor – o bem – para todos os demais. Essa soberba da erudição, exaustivamente retratada e satirizada na literatura de épocas e procedências tão distintas, de Cervantes a Lima Barreto, de Moliere a Aluízio Azevedo, somente em raríssimas vezes se revelou altruística em relação aos mais necessitados, geralmente analfabetos.
A política é uma esfera da vida social que exige primordialmente o diálogo, o que não se leciona em salas de aula e não se aprende na biblioteca. Demanda o contato com a realidade, a capacidade de ouvir o próximo, muito mais do que o mero conhecimento técnico estéril e do que uma visão romântico-filosófica do mundo. Exige a pluralidade – a busca do entendimento entre diferentes interesses dos representantes de todas as esferas da sociedade. Foi nessa sintonia que Pablo Neruda encerrou uma poesia que ousou chamar “Asi es mi vida” com os versos: “soy el hombre del pan y del pescado y no me encontrarán entre los libros, sino con las mujeres y los hombres: ellos me han enseñado el infinito”.
Max Weber, que mergulhou com maestria na questão, ensina que a “vocação política”, distinta da “vocação científica”, é composta por uma série de ingredientes, como: a paixão, o senso de proporções, a ousadia e a perseverança (fl. 124, “Política como Vocação”); sem, em nenhum momento, apontar para a erudição entre as qualidades indispensáveis ao homem político.
Além do mais, é notória a existência de técnicos multidisciplinares e analistas jurídicos no Legislativo e no Executivo à disposição dos políticos eleitos para instrumentalizar tecnicamente suas decisões.
Numa análise sistemática da Constituição, a inelegibilidade do analfabeto entra em rota de colisão com uma série de normas e tampouco se sustenta. O Estado Democrático de Direito e o pluralismo político – forma e fundamento da República (art. 1º) já se abalam pelo simples absurdo de ainda existirem analfabetos no Brasil após mais de vinte anos da edição de uma Constituição que se pretende “cidadã”. Uma parcela considerável da sociedade é vítima de descaso e negligência do Estado que torna letra morta direitos e garantias fundamentais como a igualdade ( art. 5º), o direito social à educação (art. 6º) e a garantia de educação básica e obrigatória gratuita, assegurada inclusive sua oferta para todos os que não tiveram acesso na idade própria (art. 208). Essa realidade faz sangrarem objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e qualquer outra forma de discriminação (art 3º ), bem como princípios da República nas relações internacionais, como a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º). Porque o iletrado é excluído de muitas oportunidades de trabalho, geralmente aquelas com melhor remuneração, além de ter acesso restrito a preciosidades da cultura e da ciência. Todos os entes federativos foram omissos: os municípios porque não cumpriram seus deveres de concretizar programas adequados de educação infantil e de ensino fundamental e os Estados e a União porque não prestaram àqueles a cooperação técnica e financeira devida, conforme dispõe o art. 30, VI.
Não bastasse todo o prejuízo social acarretado aos analfabetos pela referida omissão, a aplicação prática do §4º, art. 14, que os torna inelegíveis, significa castigá-los multiplamente ao inviabilizar sua plena participação no Estado Democrático, privando-os da oportunidade de votarem em seus iguais, de se candidatarem e de demandarem diretamente nas discussões políticas por decisões em benefício de sua existência e de seus pares. Desenha-se um indecoroso lapso de soberania popular (art. 14).
E, a se concretizar uma intervenção judicial excluindo o candidato eleito Tiririca da Câmara dos Deputados – obsessão de um determinado membro do Ministério Público, mesmo após a recente aprovação do artista em exame específico perante o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo –, o que estará sob grave atentado será também a cláusula de separação dos poderes (art. 2º), na medida em que o poder deve emanar do povo (art. 1º) através representantes eleitos com a igualdade de valor de todos os votos (art. 14), enquanto um Tribunal do Poder Judiciário – com membros concursados – determinaria que centenas de milhares de votos em um representante de outro Poder não teriam mais nenhum valor.
A solução técnica e prática mais adequada ao caso, sem excluir do sistema o §4º, do art. 14, e capaz de harmonizar proporcionalmente a colisão de tantas regras, princípios e valores, é a de interpretar tal dispositivo como sendo de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, a depender do efetivo esforço do Estado no sentido de cumprir seu dever de proporcionar a alfabetização a todos os brasileiros. Apenas num cenário desejado de oportunidades reais de educação a todos é que poderia ser aplicada a norma, rejeitando-se a candidatura apenas daquele que fosse analfabeto por sua própria desídia. Porque a alfabetização é um dos mais básicos requisitos para a inclusão social, uma vida com dignidade e o exercício da cidadania. E um Estado que se pretende democrático deve envidar todos os esforços para garantir a universalidade desse direito como prioridade absoluta, vedado o retrocesso social.
Portanto, o mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.
(*) Advogado, formado em Direito e Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, MACKENZIE, São Paulo.
Otávio Dias de Souza Ferreira
A devastadora vitória do artista Tiririca para a Câmara dos Deputados, seguida por um impasse no Judiciário sobre eventual indevido preenchimento de uma condição de elegibilidade invoca um oportuno debate em torno da eficácia da norma que determina a inelegibilidade do analfabeto, prevista no §4º, art. 14, da Constituição Federal.
José Afonso da Silva ensina que as inelegibilidades devem ter um fundamento ético evidente. São legítimas quando têm por objeto: a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato; e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração (fl. 228, “Comentário Contextual”). O fato de o indivíduo ser iletrado não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses. A simples existência de um adulto analfabeto, conseqüência da omissão do Estado em cumprir deveres impostos pela Constituição, é por si só uma imoralidade. O ilustre constitucionalista continua a lição, advertindo que as inelegibilidades se tornam ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político, para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha detendo (fl. 228, idem). O caso do analfabeto enquadra-se admiravelmente nesta hipótese.
Há um antigo sentimento arraigado no imaginário da sociedade brasileira que se convencionou a chamar de “cultura do bacharelado”, que se mantêm muito vivo no debate político. Preconiza que apenas os bacharéis ou os eruditos teriam a capacidade de estar no poder e decidir o que é o melhor – o bem – para todos os demais. Essa soberba da erudição, exaustivamente retratada e satirizada na literatura de épocas e procedências tão distintas, de Cervantes a Lima Barreto, de Moliere a Aluízio Azevedo, somente em raríssimas vezes se revelou altruística em relação aos mais necessitados, geralmente analfabetos.
A política é uma esfera da vida social que exige primordialmente o diálogo, o que não se leciona em salas de aula e não se aprende na biblioteca. Demanda o contato com a realidade, a capacidade de ouvir o próximo, muito mais do que o mero conhecimento técnico estéril e do que uma visão romântico-filosófica do mundo. Exige a pluralidade – a busca do entendimento entre diferentes interesses dos representantes de todas as esferas da sociedade. Foi nessa sintonia que Pablo Neruda encerrou uma poesia que ousou chamar “Asi es mi vida” com os versos: “soy el hombre del pan y del pescado y no me encontrarán entre los libros, sino con las mujeres y los hombres: ellos me han enseñado el infinito”.
Max Weber, que mergulhou com maestria na questão, ensina que a “vocação política”, distinta da “vocação científica”, é composta por uma série de ingredientes, como: a paixão, o senso de proporções, a ousadia e a perseverança (fl. 124, “Política como Vocação”); sem, em nenhum momento, apontar para a erudição entre as qualidades indispensáveis ao homem político.
Além do mais, é notória a existência de técnicos multidisciplinares e analistas jurídicos no Legislativo e no Executivo à disposição dos políticos eleitos para instrumentalizar tecnicamente suas decisões.
Numa análise sistemática da Constituição, a inelegibilidade do analfabeto entra em rota de colisão com uma série de normas e tampouco se sustenta. O Estado Democrático de Direito e o pluralismo político – forma e fundamento da República (art. 1º) já se abalam pelo simples absurdo de ainda existirem analfabetos no Brasil após mais de vinte anos da edição de uma Constituição que se pretende “cidadã”. Uma parcela considerável da sociedade é vítima de descaso e negligência do Estado que torna letra morta direitos e garantias fundamentais como a igualdade ( art. 5º), o direito social à educação (art. 6º) e a garantia de educação básica e obrigatória gratuita, assegurada inclusive sua oferta para todos os que não tiveram acesso na idade própria (art. 208). Essa realidade faz sangrarem objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e qualquer outra forma de discriminação (art 3º ), bem como princípios da República nas relações internacionais, como a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º). Porque o iletrado é excluído de muitas oportunidades de trabalho, geralmente aquelas com melhor remuneração, além de ter acesso restrito a preciosidades da cultura e da ciência. Todos os entes federativos foram omissos: os municípios porque não cumpriram seus deveres de concretizar programas adequados de educação infantil e de ensino fundamental e os Estados e a União porque não prestaram àqueles a cooperação técnica e financeira devida, conforme dispõe o art. 30, VI.
Não bastasse todo o prejuízo social acarretado aos analfabetos pela referida omissão, a aplicação prática do §4º, art. 14, que os torna inelegíveis, significa castigá-los multiplamente ao inviabilizar sua plena participação no Estado Democrático, privando-os da oportunidade de votarem em seus iguais, de se candidatarem e de demandarem diretamente nas discussões políticas por decisões em benefício de sua existência e de seus pares. Desenha-se um indecoroso lapso de soberania popular (art. 14).
E, a se concretizar uma intervenção judicial excluindo o candidato eleito Tiririca da Câmara dos Deputados – obsessão de um determinado membro do Ministério Público, mesmo após a recente aprovação do artista em exame específico perante o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo –, o que estará sob grave atentado será também a cláusula de separação dos poderes (art. 2º), na medida em que o poder deve emanar do povo (art. 1º) através representantes eleitos com a igualdade de valor de todos os votos (art. 14), enquanto um Tribunal do Poder Judiciário – com membros concursados – determinaria que centenas de milhares de votos em um representante de outro Poder não teriam mais nenhum valor.
A solução técnica e prática mais adequada ao caso, sem excluir do sistema o §4º, do art. 14, e capaz de harmonizar proporcionalmente a colisão de tantas regras, princípios e valores, é a de interpretar tal dispositivo como sendo de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, a depender do efetivo esforço do Estado no sentido de cumprir seu dever de proporcionar a alfabetização a todos os brasileiros. Apenas num cenário desejado de oportunidades reais de educação a todos é que poderia ser aplicada a norma, rejeitando-se a candidatura apenas daquele que fosse analfabeto por sua própria desídia. Porque a alfabetização é um dos mais básicos requisitos para a inclusão social, uma vida com dignidade e o exercício da cidadania. E um Estado que se pretende democrático deve envidar todos os esforços para garantir a universalidade desse direito como prioridade absoluta, vedado o retrocesso social.
Portanto, o mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.
(*) Advogado, formado em Direito e Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, MACKENZIE, São Paulo.
São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010
Em defesa do voto obrigatório CELSO ROMA
No seu famoso discurso como presidente da Associação Americana de Ciência Política, em 1996, o cientista político Arend Lijphart defendeu o voto obrigatório como solução para o problema da abstenção e da desigualdade nas eleições dos Estados Unidos.
O testemunho dele alerta para um dos riscos a que o Brasil estará sujeito caso o Congresso Nacional aprove emenda à Constituição para tornar o voto facultativo.
A taxa de comparecimento eleitoral tende a ser menor em países que adotam sistema de voto facultativo. Nos Estados Unidos, em 2008, 58% dos cidadãos com idade para votar compareceram às urnas para escolher o presidente, segundo o International Institute for Democracy and Electoral Assistance.
Nem o fenômeno Barack Obama foi suficiente para motivar o registro e a votação em massa. Na eleição para o Congresso, em 2006, só 37% dos americanos votaram.
Por outro lado, nos países em que há penalidades para quem se ausenta da eleição e não se justifica perante a Justiça, a maioria dos cidadãos exerce o direito ao voto. No mesmo ano em que os americanos elegiam Obama, 83% dos brasileiros marcaram presença na cabine de votação, segundo informa o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Destes, 91% registraram voto válido na escolha do candidato a presidente. Apenas um em cada dez eleitores votou em branco ou anulou o voto. Números semelhantes foram observados nas eleições para senador, deputado federal, governador e deputado estadual.
O problema está em que a abstenção eleitoral atinge em maior grau grupos vulneráveis social e economicamente. Nos Estados Unidos, os mais privilegiados votam mais vezes. Cidadãos de baixa renda e pouca instrução se revelam sensíveis aos custos de votar, deixando de se fazerem presentes se há formalidade em excesso no registro voluntário do eleitor.
No Brasil, se o voto facultativo for adotado, pode ocorrer um fenômeno semelhante. Um grupo social e econômico será menos representado, conforme sugere o resultado da pesquisa Datafolha realizada em maio deste ano.
Ricos com escolaridade superior e das capitais e regiões metropolitanas votariam mesmo se o voto se tornasse facultativo. Enquanto os pobres com ensino fundamental e do interior se mostram mais dispostos a renunciar ao exercício do voto.
A lei do voto obrigatório, quando aplicada rigorosamente, contribui para melhorar as condições de vida da população, sobretudo em países em desenvolvimento, conforme atestam vários estudos.
Quando o exercício do voto se estende aos mais pobres e menos escolarizados, há uma pressão para que os governos adotem políticas voltadas para o combate à pobreza e à desigualdade.
Por último, e não menos importante, a obrigatoriedade faz com que os eleitores busquem informação sobre a política, além de pressionar candidatos e partidos a incluir propostas para o segmento mais amplo da sociedade.
Quando têm o dever de votar, os cidadãos se informam e conversam sobre política, aumentando o interesse pelo assunto.
Se o voto se tornar facultativo no Brasil, pode haver um retrocesso na democracia e no bem-estar social.
Em primeiro lugar, a mudança da lei reduzirá o número de votantes.
Os menos escolarizados e mais pobres renunciarão, com maior frequência, ao exercício do voto.
Sem a pressão de setores da sociedade, os governos terão menos incentivo para promover políticas de distribuição de renda e combate à pobreza. Os avanços obtidos ao longo dos últimos 16 anos podem estar comprometidos.
CELSO ROMA, 36, cientista político, é doutor pela USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).
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Blog do Emir, 13/09/2010
VOTO: DIREITO OU DEVER?
A cada tanto tempo, o tema reaparece: como o voto, de um direito se transformou em um dever? Reaparecem as vozes favoráveis ao voto facultativo.
A revista inglesa The Economist chegou, em artigo recente, a atribuir à obrigatoriedade do voto, as desgraças do liberalismo. Partindo do supostos – equivocado – de que os dois principais candidatos à presidência do Brasil seriam estatistas e antiliberais, a revista diz que ao ser obrigado a votar, o povo vota a favor de mais Estado, porque é quem lhe garante direitos.
Para tomar logo um caso concreto de referência, nos Estados Unidos as eleições se realizam na primeira terça-feira de novembro, dia de trabalho – dia “útil”, se costuma dizer, como se o lazer, o descanso, foram inúteis, denominação dada pelos empregadores, está claro -, sem que sequer exista licença para ira votar, dado que o voto é facultativo. O resultado é que votam os de sempre, que costumam dar maioria aos republicanos, aos grupos mais informados, mais organizados, elegendo-se o presidente do pais que mais tem influência no mundo, por uma minoria de norteamericanos. Costumam não votar, justamente os que mais precisam lutar por seus direitos, os mais marginalizados: os negros, os de origem latinoamericana, os idosos, os pobres, facilitando o caráter elitista do sistema político norteamericano e do poder nos EUA.
O voto obrigatório faz com que, pelo menos uma vez a cada dois anos, todos sejam obrigados a interessar-se pelos destinos do país, do estado, da cidade, e sejam convocados a participar da decisão sobre quem deve dirigir a sociedade e com que orientação. Isso é odiado pelas elites tradicionais, acostumadas a se apropriar do poder de forma monopolista, a quem o voto popular “incomoda”, os obriga a ser referendados pelo povo, a quem nunca tomam como referência ao longo de todos os seus mandatos.
Desesperados por serem sempre derrotados por Getúlio, que era depositário da grande maioria do voto popular, a direita da época – a UDN – chegou a propugnar o voto qualitativo, com o argumento de que o voto de um médico ou em engenheiro – na época, sinônimos da classe média branca do centro-sul do país – tivesse uma ponderação maior do que o voto de um operário – referência de alguém do povo na época.
O voto obrigatório é uma garantia da participação popular mínima no sistema político brasileiro, para se contrapor aos mecanismos elitistas das outras instâncias do poder no Brasil.
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'Democracia', 'liberdade'... Belas palavras! Mas absolutamente relativas e que são trabalhadas de modo a permanentemente suportarem os interesses dos poderosos e agredir aqueles que lutam por um mundo socialmente mais justo.
Ao final, temos a absoluta a inversão de valores. O que, na verdade, é antidemocrático e totalitário, é considerado como o oposto disto e vice-versa.
Carta Maior, 28/08/2010
http://www.cartamaior.com.br/
Democracia ou plutocracia?
Hideyo Saito (*)
Consta que, questionado por um repórter da Folha de S. Paulo se considerava o regime cubano democrático, o presidente do PT, Eduardo Dutra, teria respondido negativamente. Se assim aconteceu, o dirigente petista deu como certo que a sua concepção de democracia era a mesma professada pelo repórter (ou, no caso, pelo jornal que ele representava). Ocorre que a palavra democracia, no abstrato, virou bandeira da propaganda ideológica dominante, irradiada a partir dos Estados Unidos, para combater qualquer governo que, de alguma forma, contraria interesses dessas forças sociais e políticas. É notório que os jornalões brasileiros (inclusive a Folha) e seus funcionários mais salientes assumiram integralmente essa postura. Dutra, portanto, perdeu uma oportunidade para suscitar a verdadeira questão: de que democracia estamos falando, amigo?
Ora, salta aos olhos que, na citada campanha, democracia é o que menos interessa aos seus promotores. Qualquer inimigo de Washington – o governo cubano, o iraniano ou o venezuelano – é invariavelmente fustigado por violação aos princípios democráticos, mas o mesmo não ocorre com os seus amigos. Na Arábia Saudita, por exemplo, não há sequer partido político, mas a mídia jamais foi acionada para pressionar o rei Abdallah por isso. Isso ficará ainda mais claro nos arranjos para a sucessão do presidente egípcio Hosni Mubarak, outro aliado dos Estados Unidos que nunca foi incomodado por reprimir a oposição, censurar a imprensa e fraudar eleições. Por isso, o oposicionista Mohamed El Baradei, ex-chefe da agência atômica ONU, que defende a implantação de uma democracia de tipo ocidental no Egito, dificilmente terá o apoio de Washington e de seus seguidores.
A democracia, definitivamente, tem sido mero pretexto para atacar governos que contrariam interesses dominantes no capitalismo. Assim, os modernos cruzados declaram combater o governo venezuelano porque supostamente ele está sufocando a democracia, escondendo que o fazem, de fato, porque sua política ameaça os interesses de grandes grupos econômicos, pondo em risco o próprio capitalismo. Como já disse outrora o economista John Kenneth Galbraith: “Quando a mídia dominante ataca o governo cubano, seus porta-vozes evitam cuidadosamente colocar os termos ‘socialismo’ e ‘capitalismo’. Atacam Cuba, mas sem falar que combatem o socialismo ou, pior ainda, que defendem o capitalismo” (1).
Eleição nos EUA, política ou negócio?
Em todo caso, os países afetados pela campanha costumam ser acusados de se afastar da democracia. Mas que democracia, afinal? O modelo apresentado como exemplo é o do regime vigente nos Estados Unidos, onde funcionam diversos partidos políticos e há eleições periódicas, além de liberdade de expressão. Mas será essa uma democracia tão exemplar, a ponto de justificar sua apresentação como modelo e até de ser usada para pressionar países soberanos? A eleição presidencial de 2008, que levou Barack Obama à Casa Branca, pode habilitar-nos a responder negativamente a essa questão. Está certo que esse foi um pleito com excepcional participação popular, mas com tudo isso pouco mais de 50% dos eleitores potenciais compareceu às urnas. E, pasmem, há um século não se alcançava essa marca! Em outras palavras, há mais de cem anos todos os presidentes estadunidenses vêm sendo eleitos por uma pequena minoria da população. Nem por isso, cogitou-se estimular maior participação popular: as eleições acontecem em pleno dia de trabalho e não há sequer exortação do governo para que os assalariados sejam liberados para irem votar.
Aliás, é sintomático que a cobertura da mídia a essas eleições presidenciais, como sempre, enfatizou mais a questão da arrecadação de dinheiro do que as propostas dos candidatos, parecendo indicar que isso é o mais importante. É como se houvesse um implícito reconhecimento de que quem conquistar maior apoio dos grandes grupos econômicos (que, em última análise, são os financiadores decisivos das campanhas) terá sido ungido pela classe que realmente conta. Vimos isso nas manchetes dos dias que antecederam e se seguiram à chamada “Superterça” (05/02/2008), em que foram decididas as primárias em 21 estados. A imprensa anunciou que, para continuar com chance nessa maratona, a pré-candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, havia gasto na campanha US$ 5 milhões do seu próprio bolso. Logo após as primárias, em que se saiu vitoriosa em oito daqueles estados, incluindo Califórnia e Nova York, a candidata comentou esse aporte de dinheiro: "Queríamos ser competitivos e fomos. Acho que os resultados da noite de terça provaram a sabedoria do meu investimento”. (2)
O Estado de S. Paulo explicou a importância da arrecadação de dinheiro na eleição estadunidense: “É esse dinheiro que paga os funcionários dos comitês de campanha e financia os comícios e viagens para os diversos Estados americanos. Além disso, os fundos de campanha são importantes também porque nos EUA não existe horário eleitoral gratuito. Assim, todos os candidatos devem comprar seus espaços na TV e no rádio. Quanto mais dinheiro, mais exposição. Firmas e organizações sindicais, no entanto, podem financiar os comitês de ação política, que ajudam a passar o chapéu entre os americanos.” (3)
Prosseguindo na explicação, e correndo o risco de confundir o eleitor, que poderia pensar que se trata de negócio e não de eleição, o jornal detalhou:
“O pré-candidato republicano Mitt Romney, que ontem abandonou a disputa pela indicação de seu partido, é um bom exemplo de como uma campanha de arrecadação ineficiente e a falta de um bom projeto para alocar os recursos coletados pode afundar uma candidatura. Desde o início de sua campanha, Romney, ex-governador de Massachusetts, teve de gastar do próprio bolso pelo menos US$ 35 milhões (sua fortuna pessoal é estimada em US$ 250 milhões). Para cada delegado que conseguiu eleger, Romney gastou US$ 654 mil. O também republicano Mike Huckabee, ex-governador do Arkansas e agora segundo na disputa pela indicação de seu partido, foi o que teve a campanha mais bem-sucedida em termos de retorno financeiro. Cada um de seus 156 delegados lhe custou US$ 45 mil.
‘Está claro que o dinheiro de Romney não conseguiu lhe comprar apoio’, diz Sheila Krumholz, diretora-executiva do Centro de Políticas Responsáveis, entidade que analisa os dados de financiamento de campanha dos candidatos. ‘Ele gastou muito mais que Huckabee, mas seu rival fez apostas mais certeiras.’ Hillary gastou cerca de US$ 90 mil por delegado (ela tem 892 até agora). Obama, que tem 716 delegados, de acordo com o jornal New York Times, gastou US$ 119 mil.” (4)
Segundo levantamento do Instituto de Financiamento de Campanha, a receita arrecadada pelo comitê de Barack Obama nas prévias e nas eleições gerais totalizou US$ 746 milhões. Desse montante, 24% vieram de doações abaixo de 200 dólares, 28% de 201 a 999 dólares e 48% acima de mil dólares. Como se sabe, a campanha de Obama se notabilizou por ter conseguido mobilizar grande número de eleitores com o uso da internet. Daí o percentual de grandes doações ter representado menos da metade do total, contrariando a tradição. Apenas para comparação, 60% das doações feitas a Bush em 2004 foram de valores superiores a mil dólares (5). Mas é importante não esquecer que, mesmo no caso de Obama, o dinheiro grosso veio mesmo de empresas e organizações (via Comitês de Ação Política ou pessoas físicas), como Califórnia University (US$ 1,6 milhão), Goldman Sachs (US$ 995 mil), Harvard University (US$ 855 mil), Microsoft (US$ 833 mil) e Google (US$ 803 mil). Essa relação não inclui as contribuições corporativas para os comitês partidários (6).
É evidente que campanhas eleitorais caras, como as dos EUA e dos demais países que acompanham o modelo, inclusive Brasil, aumentam o poder dos detentores de dinheiro. Afinal, como um partido sem apoio empresarial poderia bancar uma campanha tão cara e privatizada? Não é casual que, nos Estados Unidos, os candidatos presidenciais não vinculados à elite econômica sequer são mencionados pela mídia, permanecendo desconhecidos da própria população. Como considerar democráticas eleições como essas? Mas além dessa influência eleitoral, os grandes grupos econômicos exercem a sua “capacidade de persuasão” no dia-a-dia dos representantes que ajudaram a eleger, em todos os níveis de poder. O presidente Eisenhower não foi o primeiro a advertir, no final de seu governo, contra a perniciosa influência das empresas, especificamente do complexo industrial-militar, cujo poderio classificou como um risco para o processo democrático. Nos anos 90, um dos mais ativos especuladores financeiros, George Soros, proclamava alto e bom som: “Enquanto o povo vota a cada quatro anos, o mercado vota todos os dias”. Nada mais verdadeiro.
A revista mexicana Contralínea diz que a maior ameaça à democracia nos EUA não vem do terrorismo, mas da corrupção no Congresso, citando resultado de investigação realizada pelo Projeto Censurado 2010. Os gastos do lobby dos grupos empresariais para comprar (é esta a palavra correta) a aprovação de leis de seu interesse ou o engavetamento de alguns poucos projetos contra, que ainda ousam ser apresentados, ascenderam a US$ 3,2 bilhões em 2008. O Projeto Censurado, criado para denunciar a permanente censura exercida pelos oligopólios informativos do país, para impedir a divulgação de matérias sobre assuntos incômodos à classe dominante, mostrou que 28% dos membros da Câmara de Representantes enriquecem investindo em empresas que receberam contratos do Pentágono, aprovados por eles mesmos (7). O dinheiro gasto pelo lobby empresarial naquele ano, US$ 3,2 bilhões, representou um crescimento sem precedente de 13,7% em relação a 2007, conforme levantamento efetuado pelo Center for Responsive Politics (Centro para a Responsabilidade Política). Foram US$ 17,4 milhões diários (ou US$ 32.523 gastos diariamente por deputado). Os setores que mais “investem” na compra do Congresso são: farmacêutico e de saúde, elétrico, de seguro e petrolífero, além do lobby pró-Israel (8).
Mas não é apenas nos Estados Unidos que a democracia foi suplantada pela plutocracia. Pelo contrário: trata-se de um fenômeno comum (e igualmente visível a olho nu) às diferentes fórmulas da democracia liberal, atingindo também regimes parlamentaristas, como o alemão, o italiano e o japonês. Por isso são tão corriqueiros os escândalos como o que ora atormenta o presidente francês, Nicolas Sarkozy, acusado de receber doações ilegais da proprietária da L’Oreal, Liliane Bittencourt, a mulher mais rica do país. Em troca, indícios de sonegação tributária do grupo eram relevados.
Ampliando o foco, o cientista político italiano Domenico Losurdo mostrou que esse tipo de regime resultou de um longo processo de incansável empenho do liberalismo (e do conservadorismo) para restringir o alcance da democracia nos países europeus, no período aberto pela Revolução Francesa, para que as chamadas “classes perigosas” ficassem fora do poder. O projeto se valeu, em primeiro lugar, do voto censitário, no qual apenas proprietários podiam votar e só os maiores dentre eles eram elegíveis. Sucederam-se-lhe outras fórmulas igualmente engenhosas, como o voto plural, em que cidadãos “qualificados” tinham direito a mais de um voto (sendo que quanto mais rica a pessoa, mais qualificada era considerada). Houve, em seguida, as eleições múltiplas, em que os setores populares só votavam nos pleitos locais e os eleitos eram sucessivamente depurados por colégios eleitorais cada vez mais seletos.
Em distintos momentos, vários países garantiram a exclusão dos pobres pela instituição de um imposto cobrado de simples eleitores e também de candidatos, ou pela exigência de complicados trâmites burocráticos para a obtenção de título eleitoral. Houve ainda o sistemático afastamento de mulheres, de analfabetos, de imigrantes e de presidiários do processo eleitoral, que vigorou em quase todos os países capitalistas pelo menos até a Revolução Russa. Na Inglaterra, o voto plural sobreviveu até 1948, conferindo mais de um voto a homens de negócios e a acadêmicos. No Texas, EUA, até 1972 a homologação de uma candidatura dependia do pagamento de um tributo, proporcional à importância do cargo almejado. Ainda hoje estão em vigência, nesse e em outros países, formas camufladas de discriminação censitária contra indígenas, negros e pobres em geral (9).
Apesar de tudo, houve uma progressiva democratização do processo eleitoral, por força de pressões populares e da ameaça representada pela citada Revolução de 1917, resultando no reconhecimento do sufrágio universal ao longo do século XX na maioria dos países capitalistas. Mas, ao mesmo tempo, criaram-se novos e formidáveis obstáculos para impedir a ascensão das “classes perigosas”. Dentre esses, Losurdo destaca o crescente encarecimento das campanhas político-eleitorais e a concentração da mídia nas mãos de grupos econômicos. O monopólio da produção de conhecimento e de informação começou a ser erigido ao longo do século XIX, depois que a proliferação de panfletos e periódicos populares, nas revoluções de 1848 e na Comuna de Paris, em 1871, alertou a classe dominante sobre o poder de mobilização desses veículos. Essas publicações, produtos de uma indústria ainda incipiente, ao alcance de qualquer partido, sindicato ou movimento, passaram então a ser perseguidas por meio da censura e da repressão policial direta. Depois, instituíram-se alvarás e obrigações burocráticas, tanto mais custosos quanto maior a periodicidade pretendida e quanto mais importante o local de circulação.
No final do século XIX – ainda conforme o pensador italiano –, um jornal que circulasse mais de três vezes semanais em Paris já estava fora do alcance das organizações populares, tal o volume de capital necessário para sustentá-lo. As medidas repressivas dos primeiros tempos tornaram-se, assim, desnecessárias. A supressão dos meios de informação das classes subalternas foi acompanhada de igual empenho na eliminação ou no enquadramento das próprias organizações que os editavam. O objetivo, neste caso, era evitar que partidos políticos, sindicatos e outras entidades populares, com sua vida associativa, suas festas e suas publicações, constituíssem centros autônomos de disseminação de cultura, capazes de colocar em xeque o monopólio político, cultural e ideológico da classe dominante, exercido por intermédio do Estado, das escolas, da igreja e da mídia. Para Domenico Losurdo, foi assim que se consumou a “decapitação política das classes subalternas” (10). Quando essas medidas de exclusão mostraram-se insuficientes para impedir a eleição de governantes indesejados pelas classes dominantes, eles foram abatidos por movimentos de desestabilização, atentados ou golpes de Estado.
Analisando esse quadro de crescente fragilização da democracia, que representou uma vitória do ideário liberal que acabamos de abordar com a ajuda de Domenico Losurdo, no início dos anos 1990 o historiador britânico Perry Anderson concluiu: "O que está faltando é qualquer concepção do Estado como estrutura de autoexpressão coletiva mais profunda do que os sistemas eleitorais atuais. Com efeito, a democracia está hoje mais disseminada do que nunca. Mas também está mais superficial, menos consistente - como se quanto mais universalmente acessível se torna, menos significado ativo retém. Os próprios Estados Unidos constituem um exemplo paradigmático: uma sociedade onde menos de metade dos seus cidadãos vota, 90% dos congressistas são reeleitos e o preço do cargo público é avaliado em milhões. No Japão, o dinheiro fala ainda mais alto, e não existe aí sequer uma alternação nominal ente partidos. Na França, a Assembléia foi reduzida a uma cifra. À Grã-Bretanha falta, nem mais nem menos, uma constituição escrita". (11)
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