quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Novos cidadãos e velhas instituições

Valor Econômico, 25/11/2010

Maria Inês Nassif

Quando a sociedade está em movimento, as instituições têm que se adequar a ela, sob pena de atraírem para si o descrédito da população e provocarem a relativização de direitos individuais e coletivos. Esse descompasso hoje é cristalino e sua manutenção não é um conforto para uma democracia jovem como a brasileira.

A democracia tem se consolidado a duras penas, e os avanços, obtidos como síntese de conflitos. Ao longo do embate, a Constituição Cidadã de 1988, em algumas particularidades, virou letra morta; em alguns temas vem sendo relativizada pela Justiça; e em outros, perdeu as características em função de um movimento ideológico que foi na direção contrária de suas formulações, em especial no que diz respeito ao papel do Estado e à economia. Junto com a relativização da Constituição pós-ditadura, ocorreu também uma ofensiva contra o Ministério Público, instituição que, desde o final dos duros tempos autoritários, reivindicava autonomia para a defesa de direitos individuais e coletivos. Acusado de ativismo no período da redemocratização, o MP foi duramente combatido no período de virada ideológica dos períodos FHC. No espaço que acabou deixando a descoberto, floresceu o ativismo judicial - entenda-se do Judiciário - que tem abarcado funções do Legislativo e do próprio MP e se espelha numa ideologia conservadora, principalmente no âmbito político-eleitoral, de tutela da democracia e do voto.

No período de redemocratização, a sociedade estava em movimento e a Constituição obrigou as instituições - com erros e acertos - a se adaptarem aos novos tempos. Hoje o país passa por um novo ciclo de mudanças. No Brasil pós-Constituinte, os direitos de cidadania diziam respeito a menos da metade da população que tinha acesso a trabalho formal e ao mercado de consumo. Num país com gravíssimos problemas de distribuição de renda, individual e regional, a capilaridade maior de programas de transferência de renda produziu uma rápida ascensão de grandes setores da população que antes viviam abaixo da linha da pobreza; programas adicionais, como os que deram maior facilidade de acesso das classes mais baixas da pirâmide social ao curso superior, cumpriram também o seu papel de engordar as classes médias brasileiras. Um crescimento econômico mais forte, e alguns anos longe das recessões promovidas para reduzir o consumo - conforme a receita de uma política monetária baseada em metas de inflação, juros altos e política fiscal apertada - bastaram para que ocorresse uma mudança substancial na "clientela" para a qual se deve garantir direitos de cidadania. Hoje, há cidadãos que não existiam na época da Constituição cidadã.

No momento em que ocorre a inclusão social de grandes massas da população, as instituições brasileiras, todas, são obrigadas a refletir sobre o seu papel na democracia, e principalmente sobre o papel dos novos cidadãos na política. Há uma crise, sim, mas não é institucional. É uma crise de adequação das instituições a uma nova realidade que, embora não seja ideal, trouxe ganhos para uma grande parcela de sua população. Nessas circunstâncias, tende a aumentar a "clientela" das instituições, brasileiros que ascenderam à cidadania, ou mais precisamente à consciência da cidadania.

O exemplo mais evidente dessa crise são os partidos políticos, até porque eles refletem de forma quase imediata um conflito latente entre as classes economicamente hegemônicas e as massas que ascendem à cidadania com igual direito a voto. Mas não são os únicos. A mídia, como aparelho privado de ideologia, ainda não incorporou os novos cidadãos à sua realidade. O Ministério Público, acuado pelo ativismo judicial, tem sido mais tímido na defesa da cidadania. O Judiciário, ao assumir a tutela dos demais Poderes, tem muitas vezes se constituído numa barreira conservadora à inclusão, de fato, das classes menos privilegiadas .

A dessincronização com uma sociedade que se move é geral. O cuidado que se deve ter, no entanto, é com as expectativas. As demandas de cidadania reprimidas têm levado repetidamente ao descrédito das instituições. A ansiedade de dar resposta a essas frustrações tem influenciado movimentos políticos na sociedade civil vestidos de panacéia para todos os males - por exemplo, o Movimento Ficha Limpa, que até agora apenas jogou para o Judiciário a tutela das eleições. As decisões finais das urnas estão sendo tomadas todas por plenos de juízes. É necessário um debate mais profundo sobre as respostas a demandas de cidadania, que garantam o direito igualitário ao voto, à saúde, à educação e às oportunidades, sob pena de o país parar para debater novas panacéias, ao se concentrar sobre um senso comum perigoso para as instituições democráticas, de que todos os seus problemas estão concentrados nas instituições políticas, cujos mandatários ascendem pelo voto.


Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
E-mail maria.inesnassif@valor.com.br

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http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/maria-ines-nassif-a-resistencia-a-mobilidade-social.html

11 de novembro de 2010
 

A resistência à mobilidade social

Maria Inês Nassif, no Valor Econômico

O Brasil elegeu, por dois mandatos, um ex-metalúrgico como presidente da República. Agora elege uma mulher. Ambos de centro-esquerda. Para quem assistiu de fora a eleição de Dilma Rousseff e os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pode parecer que o país avança celeremente para uma civilizada socialdemocracia e busca com ardor o Estado de bem-estar social. Para quem assistiu de dentro, todavia, é impossível deixar de registrar a feroz resistência conservadora à ascensão de uma imensa massa de miseráveis à cidadania.
Ocorre hoje um grande descompasso entre classes em movimento e as que mantêm o status quo; e, em consequência de uma realidade anterior, onde a concentração de renda pessoal se refletia em forte concentração da renda federativa, há também um descompasso entre regiões em movimento, tiradas da miséria junto com a massa de beneficiados pelo Bolsa Família ou por outros programas sociais com efeito de distribuição de renda, e outras que pretendem manter a hegemonia. A redução da desigualdade tem trazido à tona os piores preconceitos das classes médias tradicionais e das elites do país não apenas em relação às pessoas que ascendem da mais baixa escala da pirâmide social, mas preconceitos que transbordam para as regiões que, tradicionalmente miseráveis, hoje crescem a taxas chinesas.
A onda de preconceito contra os nordestinos, por exemplo, é semelhante ao preconceito em estado puro jogado pelos setores tradicionais no presidente Luiz Inácio Lula da Silva e na própria eleita, Dilma Rousseff, durante a campanha eleitoral. É a expressão do temor de que os “de baixo”, embora ainda em condições inferiores às das classes tradicionais, possam ameaçar uma estabilidade que não apenas é econômica, mas que no imaginário social é também de poder e status.
Há resistências à mobilidade social e regional
São Paulo foi a expressão mais acabada da polarização eleitoral entre pobres de um lado, e classe média e ricos de outro. Os primeiros aderiram a Dilma; os últimos, mesmo uma parcela de classe média paulista que foi PT na origem, reforçaram José Serra (PSDB). A partir de agora, pode também polarizar a mudança política que fatalmente será descortinada, à medida que avança o processo de distribuição regional de renda e de aumento do poder aquisitivo das classes mais pobres. A hegemonia política paulista está em questão desde as eleições de 2006 – e Lula foi poupado do desgaste de ter origem política em São Paulo porque era também destinatário do preconceito de ter nascido no Nordeste; e, principalmente, porque foi o responsável pela desconcentração regional de renda.
Com a expansão do eleitorado petista no Norte e no Nordeste do país, houve uma natural perda de força dos petistas paulistas, diante do PT nacional. Do ponto de vista regional, o voto está procedendo a mudanças na formação histórica do PT, em que São Paulo era o centro do poder político do partido. Isso não apenas pelo que ganha no Nordeste, mas pelo que não ganha em São Paulo: o partido estadual tem dificuldade de romper o bloqueio tucano e também de atrair de novos quadros, que possam vencer a resistência do eleitorado paulista ao petismo.
No caso do PSDB, todavia, a quebra da hegemonia paulista será mais complicada. Os tucanos continuam fortes no Estado, têm representação expressiva na bancada federal e há cinco eleições vencem a disputa pelo governo do Estado. No resto no do país, têm perdido espaço. Parte do PSDB concorda com o diagnóstico de que a excessiva paulistização do partido, se consolida seu poder no Estado mais rico da Federação, tem sido um dos responsáveis pelo seu encolhimento no resto do Brasil. Mas é difícil colocar essa disputa interna no nível da racionalidade, até porque o partido nacional não pode abrir mão do trunfo de estar estabelecido em território paulista; e, de outro lado, o partido de Serra tem uma grande dificuldade de debate interno – como disse o governador Alberto Goldman em entrevista ao Valor, é um partido com cabeça e sem corpo, isto é, tem mais caciques do que base. Não há experiência anterior de agregação de todos os setores do partido para discutir uma “refundação” e diretrizes que permitam sair do enclave paulista. Não há experiência de debate programático. E aí o presidente Fernando Henrique Cardoso tem toda razão: o PSDB assumiu substância ideológica apenas ao longo de seu governo. É essa a história do PSDB. A política de abertura do país à globalização, a privatização de estatais e a redução do Estado foram princípios que se incorporaram ao partido conforme foram sendo assumidos como políticas de Estado pelo governo tucano.
Todos os partidos, sem exceção, estão diante de um quadro de profundas mudanças no país e terão que se adaptar a isso. Fora a mobilidade social e regional que ocorreu no período, houve nas últimas décadas um grande avanço de escolaridade. A isso, os programas de transferência de renda agregaram consciência de direitos de cidadania. O país é outro. Não se ganha mais eleição com preconceito – até porque o voto do alvo do preconceito tem o mesmo valor que o voto da velha elite. Se os grandes partidos não se assumirem ideologicamente, outros, menores, tomarão o seu espaço.

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