domingo, 19 de fevereiro de 2017

Venda-se ou te devoro

 
Montenegro (RS), 19 de fevereiro de 2017
 

Venda-se ou te devoro


Por Adriana Bandeira*



Quem assistiu o filme 'Lavoura Arcaica', obra prima do cinema arte brasileiro, sabe do que se fala quando dizemos que ninguém sai impune das palavras de Raduan Nassar! Sim...pois que o filme é de uma fidelidade impressionante com a palavra do autor do livro, de mesmo nome.

Livro e filme...obras primas de nossa língua, esta "alíngua" que traz a transgressão própria do humano, destacando o desejo e seu sujeito como o principal ator do verso que dele escapa.

Não saímos, mesmo!, impunes de falar destas coisas, já que não é somente um discurso, mas um reconhecimento da condição humana colocada como impossível de explicar-se por si , e determinada às paixões do gosto, da voz, do toque... da palavra como perversão possível.

Não somos animais, determinados pelo instinto. Somos invadidos pelas palavras... que nos guiam! 




Raduan é implacável no reconhecimento disso, de que estamos alhures da possibilidade de vendermo-nos sem que nos tomem a alma e, neste caso... não há vida naquele que se vende!

O acontecido na entrega de um prêmio oferecido ao escritor... em que lhe é concedido um reconhecimento sobre sua escrita, nos faz pensar sobre: como poderia ser diferente?

Ocorre que Raduan é este que escreveu algo que faz rasura, para sempre!, na literatura. Faz marca, faz existência porque, justamente, evoca a condição de subversão e mal estar diante das normas e das convenções! Denuncia o que habita em cada um, tão próprio, tão infinito... e as possibilidades de ver-se com isso para restar o desejo, ainda, da convivência social, das construções coletivas... do que direciona para o civilizatório.

Pois bem... Raduan pôde receber seu prêmio somente agora, depois de assistir o desmanche das políticas públicas, do extermínio da possibilidade de desenvolvimento da consciência crítica, do aniquilamento deste sujeito, este mesmo reconhecido e destacado por ele como o que é de todos, este com quem devemos negociar para que as construções de vida em sociedade sejam, de fato, democráticas! Recebe o prêmio, depois de assistir, em seu país, as invasões e términos de projetos pelos quais dedicou sua vida... um plantio!, de grãos e letras, palavras e ações! Falo da doação que fez de sua fazenda para uma universidade... para o cultivo de grãos!!!!

Recebe o prêmio em dinheiro, sim!, que lhe foi concedido pelo governo legítimo, eleito por ele e pelo povo, antes dos planos de extermínio entrarem em vigor. Sim... porque há que se considerar que pelos últimos encaminhamentos a respeito da saúde, educação, cultura... as condições de extermínio da alma e do corpo estão em vigor!

O mais interessante é perceber que em seu discurso coloca-se como sempre fez: diz! E diz o que não tem volta... porque nenhuma palavra de verdade tem!

Diz sobre o que acontece no seu país, diz de onde fala, diz de sua indignação sem ofender, sem pessoalizar!

Contudo... o que lhe vem é o horror! Talvez Nassar saiba do horror! Possivelmente... este lugar mítico que ofende, maltrata, assedia, rompe com o reconhecimento do que é singular e semelhante! Sim... ele conhece isso! E nós também.

Pois é, pois é... nunca saímos impunes das palavras de verdade! Nunca saímos impunes da verdade!
 
Contudo, cá entre nós... este episódio traz à tona uma questão importante: a de que a lógica destaca o "venda-se ou te devoro". Sim, o renunciar à fala... pelo dinheiro!

Talvez a lógica da relação entre o senhor e o escravo, ou seja: não falar, não viver, não divertir-se, não comer, não amar, não sonhar!

O mais importante é que esta lógica também está dentro de cada um, estabelecida como entidade, lugar de morte para onde voltamos... se estamos invadidos pela condição imaginária de que o outro não vale nada, ou seja, um eu próprio nada vale!

Esta condição coloca-se, atualmente, acima de qualquer possibilidade, de qualquer intenção em administrar a violência, os ditos que surgem como cortes, apropriações: cortes na saúde, na educação, cortes nos direitos (e logo, sem direito algum, seremos agradecidos pelo trabalho, pela metade do salário necessário para uma vida digna, simplesmente porque temos onde trabalhar!)... este ilegítimo autenticado, conduzido como: necessário!




Como não vender-se?

Assistimos as lideranças, em vários campos e patamares, inertes, forçadas a negociar com a violência desta intenção de aniquilamento!

Assistimos os partidos políticos reduzidos ao assombro e, com as mesmas ferramentas de antes... conduzindo pequenas ações de resistência!

Assistimos buscas fadadas a repetição de um caminho que não tem saída para o cidadão... este que nem grita mais.

Contudo, são várias as forças humanas capazes de resistir! Mas nenhuma é maior do que a força de cada um, naquilo que reconhecemos como desejo de compartilhar com o outro um lugar para todos... apesar do próprio... ou para além do próprio desejo solitário.

Possivelmente esperavam que Raduan, por aceitar o prêmio em dinheiro, entregasse a alma!; que por estar ali como escritor reconhecido (e volto a lembrar sobre quando este prêmio lhe foi conferido: há um ano atrás) morresse enquanto sujeito e escritor... pela miséria do politicamente correto, pela convenção mundana que assiste a morte de tantos, no dia a dia, no desrespeito com os direitos conquistados, com a alteridade que faz jus ao desejo como condição fundante da ética.

Existe os que julgam Raduan! Dizem que ele não deveria ter aceito: o dinheiro! Nisso corroboram com esta falta de vista, esta ideia de que existiria uma venda (a echarpe dos olhos,também!)... e não o reconhecimento de que Nassar faz função com as palavras, nossa língua pátria, para dizer do que é universal e humano.

Como se o prêmio estivesse vinculado ao golpe estabelecido em agosto do ano passado, tentam a morte simbólica do sujeito e obra... e não conseguem!

Estranhamente são os argumentos que insistem em salvar a moral como a dos bons costumes que, justamente, mostram o quanto não obedecem à um costume primordial que seria o lugar para a verdade das palavras... afinal somos sujeitos da linguagem.

Por hora, lembro que nunca saímos impunes, mesmo! Nós que reconhecemos uma lavoura arcaica dentro de nós mesmos, isso com o que temos que lidar no dia a dia para que possamos construir este lugar comum para todos ..."um pouco com amor , um pouco com verdade" (Silvio Rodriguez).

Raduan me representa!

Andiamo?


*Psicanalista e escritora. Autora de 'Chá das Cinco' (Editora AGE, 2006), 'A lavadeira' (Conto publicado em Histórias de Trabalho, sétima edição), e 'As Coisas de Minha Mãe' e 'A empregada' (Contos publicados na coletânea 'Contos de Abandono', 2009 - Libretos).

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