CartaCapital, 01/02/17
Fausto De Sanctis: “O crime prospera onde a regulação é frouxa”
Por Rodrigo Martins
Em quase três anos, a Operação Lava Jato, que investiga o megaesquema de corrupção da Petrobras, conseguiu repatriar 756 milhões de reais por meio de acordos de cooperação. A tarefa é complexa. Boa parte dos recursos ilícitos estão escondidos em offshores e trustes de paraísos fiscais, que dificultam a identificação dos verdadeiros controladores e beneficiários.
O caso do deputado cassado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, é emblemático. Até outubro de 2016, a Justiça havia recuperado apenas 2,34 milhões de francos suíços (cerca de 7,5 milhões de reais) em contas atribuídas ao peemedebista na Suíça. Os procuradores da força-tarefa da Lava Jato suspeitam, porém, que ele possui ao menos 13 milhões de dólares (41 milhões de reais) em patrimônio oculto no exterior.
Especializado no combate a crimes financeiros, o desembargador Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, avalia que o processo de globalização, com a abertura das fronteiras nacionais e a redução das barreiras comerciais, favoreceu o crime transnacional.
“Muitos governos lucram com o proveito do crime internacional ao atrair riqueza obtida de forma ilícita. Dessa forma, têm estimulado o crescimento do delito ao fecharem seus olhos para o uso de falsas identidades e registros negociais, corrupção e crimes econômicos”, afirma De Sanctis. “A mudança no paradigma do setor financeiro, de centralizado e regulado (no campo doméstico) para descentralizado e não regulamentado ou mal regulamentado (internacionalmente), permite a continuidade de algumas das mais perigosas atividades criminosas”.
Autor de numerosos livros sobre o tema, como Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro (Saraiva) e Delinquência Econômica e Financeira (Editora Forense), De Sanctis recebeu em 2016 um prêmio da New York State Bar Association, ordem dos advogados nova-iorquinos, em reconhecimento de sua atuação judicial, precursora do combate e prevenção à corrupção e à lavagem de dinheiro no Brasil. E deve lançar em breve, nos Estados Unidos e da Europa, o livro International Money Laundering Through Real Estate and Agribusiness. A Criminal Justice Perspective from the 'Panama Papers' (Editora Springer).
Na entrevista a seguir, o desembargador fala sobre os mecanismos que permitem aos criminosos financeiros operar no anonimato. E o que poderia ser feito para coibir a evasão de divisas e a lavagem de dinheiro. “A forte atividade reguladora é eficaz para deter a ideia de que o ambiente desses setores se traduz num local livre para a prática delitiva”.
CartaCapital: Quais as principais formas utilizadas por criminosos para esconder dinheiro no exterior e depois repatriá-lo?
Fausto De Sanctis: A garantia do anonimato de quem investe valores e a da confidencialidade das transações negociais têm historicamente permitido um caminho seguro para a prática do crime de lavagem de dinheiro. Inicialmente, isso era possível em diversos setores, principalmente o financeiro, como bancos e instituições que possuem como atividade principal ou acessória à captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, que não eram obrigados a reportar às autoridades operações suspeitas. Com a obrigatoriedade imposta a esse setor, outros meios passaram a ser um caminho natural.
CC: Quais?
FDS: Em busca de anonimato e confidencialidade, os criminosos amparam-se em setores não financeiros, como imóveis, jogos de azar (cassinos), obras de arte, futebol, igrejas ou templos. Nesses casos, a regulação, quando exigida, por vezes não se apresenta eficaz a dar conhecimento às autoridades sobre a lavagem de dinheiro.
Frequentemente usa-se moeda em espécie, que não deixa rastro, além de haver pouca prestação de contas, uma vez que, nos casos de arte, futebol e instituições religiosas, ainda existe a compreensão de que se deve garantir a auto-regulamentação em face dos valores a serem protegidos.
Entretanto, a natureza de tais atividades e as liberdades garantidas a tais setores não podem levar a um ambiente livre de qualquer supervisão governamental, que deve ser devidamente regrada. A Lei Anticorrupção orienta todas as pessoas jurídicas à implementação de programas de integridade ou compliance e as entidades citadas, inclusive as religiosas, não deveriam se sentir à parte desta "obrigação" legal e moral.
CC: Quais as brechas que os chamados paraísos fiscais oferecem aos criminosos interessados em lavar recursos obtidos de forma ilícita?
FDS: À medida que as fronteiras nacionais se abriram e as barreiras comerciais caíram, o crime internacional cresceu em níveis sem precedentes. O estado atual das coisas, bem revelado pelo chamado "Panama Papers", é resultado de uma falta de cooperação local nas investigações, processamento e extradição de criminosos.
Muitos governos lucram com o proveito do crime internacional ao atrair riqueza obtida de forma ilícita. Dessa forma, têm estimulado o crescimento do delito ao fecharem seus olhos para o uso de falsas identidades e registros negociais, corrupção e crimes econômicos.
Em outras palavras, a mudança no paradigma do setor financeiro, de centralizado e regulado (no campo doméstico) para descentralizado e não regulamentado ou mal regulamentado (internacionalmente), permite a continuidade de algumas das mais perigosas atividades criminosas.
CC: Nesse contexto, qual é o papel das chamadas empresas offshore?
FDS: Os paraísos fiscais costumam abraçar as offshores, empresas criadas num local para atuação em outro. Se, de um lado, elas possuem o mérito de possibilitar o trânsito livre de capital, que somente é tributado em negociações feitas nos locais em que se situam, de outro, constituem instrumento eficaz e “legitimado” de evasão fiscal. Possibilitam-se usos lícitos, mas também ilícitos.
As offshores têm viabilizado a ocultação de seus verdadeiros controladores, pois a titularidade é, segundo a legislação de vários países, comprovada por títulos ao portador. Na constituição da empresa, simplesmente são nomeados procuradores, que muitas vezes são procuradores de centenas de sociedades de mesmo estilo. Cria-se um véu eficaz para ocultar os verdadeiros proprietários.
O dever de transparência dos beneficiários das pessoas jurídicas obriga a obtenção de informação adequada e em tempo real, não se podendo admitir contas anônimas. Por isso, deve ser identificado o cliente e o beneficiário efetivo (deveres de vigilância da clientela, conhecidos por Customer Due Diligence). Da mesma forma, há o dever de recolhimento de informação suficiente sobre a instituição a quem é prestado o serviço, cabendo ao trustee, o administrador dos recursos, realizar comunicação suspeita de lavagem.
CC: O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha tem ao menos 13 milhões de dólares em patrimônio oculto e não localizado, segundo a força-tarefa da Operação Lava-Jato. Como é possível rastrear esses recursos?
FDS: Sobre o caso específico, apenas tenho conhecimento pela imprensa, mas sempre houve muita resistência na obtenção de informações vitais de paraísos fiscais e a questão somente pode ser resolvida com a pressão internacional para a colaboração com as autoridades constituídas.
Há de se cobrar dos paraísos fiscais o cumprimento das disposições que determinam o fornecimento de informações às autoridades processantes internacionais, ou seja, fazer valer compromissos ético-jurídicos sobre os econômicos, inclusive com a obtenção de informação acerca de seu proprietário, do real beneficiário (beneficial or ultimate beneficial ownership) e ou de seus controladores.
Em verdade, deveriam ser objeto de atenção especial e sua simples existência reconsiderada, até para verificar se as offshores não estão mais a serviço de ações criminosas. As razões que impedem sua supressão estão muito relacionadas com o duplo discurso de numerosos Estados, que utilizam os paraísos fiscais para realizar transações não transparentes vinculadas a “razões de Estado” ou para a gestão de bens das próprias elites políticas.
Enquanto isso não ocorre, o uso cada vez mais frequente das cooperações jurídicas internacionais e seu aperfeiçoamento para que se viabilize o repatriamento de bens com vistas à efetividade da Justiça, devem levar à ideia de que a luta contra o crime independe do local onde ele é praticado e o confisco é fundamental. É aplicação do princípio da competência universal nas questões que envolvem a corrupção tida como odiosa em qualquer lugar do mundo.
CC: Por que é tão difícil combater esse tipo de prática?
FDS: Usualmente, os negócios têm se mantido em sigilo. Ou seja, detalhes das negociações são pouco revelados, como a origem dos recursos, seus agentes, investidores, beneficiários finais e, no caso de transações comerciais, formas de pagamento, cláusulas contratuais etc. O sigilo não pode valer perante as autoridades constituídas. A devida informação deve ser prestada sempre que solicitada no menor tempo possível.
CC: O senhor acredita que a Lava Jato seria capaz de rastrear tantos recursos desviados para o exterior sem as colaborações premiadas?
FDS: Não saberia dizer especificamente sobre a operação mencionada, mas quando se está no campo do crime organizado e institucionalizado, este é caracterizado por um “dever” de fidelidade que faz com que seus agentes ocultem informações das autoridades, até para preservação de suas vidas.
No caso da corrupção, quando disseminada na sociedade e nas instituições, dificilmente é revelada a não ser com a quebra desse dever de fidelidade. Daí porque o instituto da delação premiada ganha importância e é festejado em vários fóruns internacionais. Mas ele é um caminho e deve ser confirmado por provas seguras a fim de que injustiças não sejam cometidas. Apesar da delação, é preservado o princípio da presunção de não culpabilidade ao delatado.
CC: Em que medida as instituições financeiras são omissas ou coniventes com essas práticas? Elas podem ser responsabilizadas?
FDS: Quem oferecer o sigilo para a atração de capitais sem a devida política “conheça o seu cliente” deve ser responsabilizado, porque aí estamos no campo da omissão penalmente relevante. Tudo depende da análise probatória para verificar o cumprimento das obrigações legais. O nível de envolvimento ou tolerância com a atividade criminosa é um critério para o estabelecimento da medida da culpabilidade. A cultura organizacional das empresas e instituições deve ser orientada à licitude.
CC: Quais mecanismos o Estado brasileiro poderia criar ou aperfeiçoar para coibir e combater a evasão de divisas e a lavagem de dinheiro?
FDS: Os órgãos de controle, como Tribunais de Contas, Ministério Público, Banco Central, Receita Federal, devem se antecipar aos fatos. Quando se está no campo da forjada pressa na contratação de obras ou serviços, o combate à corrupção fica dificultado se há tolerância com tal prática. Aí surge a importância do acompanhamento prévio do que está a contratar. Além disso, na contratação de obras e serviços, pode-se pensar na adoção do monitoramento preventivo, ou seja, na obrigação de se contratar empresas de seguro para garantir o adimplemento do contrato ou a indenização na hipótese de corrupção.
No caso de instituições religiosas, cabe o estabelecimento do setor de integridade ou compliance, além do enquadramento de seus líderes e ou dirigentes como pessoas politicamente expostas (PEPs). O fato de igrejas e templos de uma maneira geral ocuparem um lugar único na cultura humana, influenciando a conduta dos indivíduos, encorajando-as ao trabalho, solidariedade e responsabilidade, determina a observância das obrigações legais e morais que justificam a proteção constitucional da liberdade de religião de que são detentores.
A Lei Anticorrupção orienta todas as pessoas jurídicas à existência de programas de compliance e as entidades religiosas não deveriam se sentir à parte desta "obrigação" legal e moral. No caso do esporte, a devida informação sobre contratações deve ser prestada a um órgão gestor, que exerça funções de supervisão dos atos negociais.
CC: De tempos em tempos, o Congresso discute a legalização de jogos de azar, como bingos e cassinos. Que cuidados devem ser observados pelos legisladores para não abrir brechas para a lavagem de dinheiro?
FDS: No caso de cassinos ou de bingos, qualquer lei autorizadora, ainda que venha a prever pagamentos de tributos relevantes com destinação específica, há de obrigar a sua informatização, além de possibilidade de acompanhamento de sua movimentação financeira online e em tempo real, com possibilidade de fiscalização e controle do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ou de um órgão do setor a ser eventualmente criado. Também a obrigação da monitorar seus usuários (“conheça o seu cliente”) e a entrega de prêmios apenas ao ganhador etc. devem ser condições impostas ao setor.
CC: E o setor imobiliário? O que deve aperfeiçoar?
FDS: Os corretores de imóveis, como intermediários que são, devem contribuir para o fornecimento de informações sobre seus clientes, devendo a política “conheça o seu cliente” ser estendida a quem se encontrar atrás das pessoas jurídicas ou offshores. O legislador deveria refletir se não seria o caso de obrigar à suspensão de transações comerciais suspeitas de lavagem de dinheiro por parte dos obrigados a reportar situações suspeitas.
A evasão de divisas será desestimulada quando todos souberem que corromper, lavar dinheiro e praticar crimes financeiros não seja mais passível de ocultação. Enfim, proibição de pagamentos em espécie, não aceitação de pagamentos fora das partes envolvidas e obrigação por parte dos intermediários de transações negociais a dar informações plenas sobre operações suspeitas. A forte atividade reguladora é eficaz para deter a ideia de que o ambiente desses setores se traduz num local livre para a prática delitiva.
Fausto De Sanctis: A garantia do anonimato de quem investe valores e a da confidencialidade das transações negociais têm historicamente permitido um caminho seguro para a prática do crime de lavagem de dinheiro. Inicialmente, isso era possível em diversos setores, principalmente o financeiro, como bancos e instituições que possuem como atividade principal ou acessória à captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, que não eram obrigados a reportar às autoridades operações suspeitas. Com a obrigatoriedade imposta a esse setor, outros meios passaram a ser um caminho natural.
CC: Quais?
FDS: Em busca de anonimato e confidencialidade, os criminosos amparam-se em setores não financeiros, como imóveis, jogos de azar (cassinos), obras de arte, futebol, igrejas ou templos. Nesses casos, a regulação, quando exigida, por vezes não se apresenta eficaz a dar conhecimento às autoridades sobre a lavagem de dinheiro.
Frequentemente usa-se moeda em espécie, que não deixa rastro, além de haver pouca prestação de contas, uma vez que, nos casos de arte, futebol e instituições religiosas, ainda existe a compreensão de que se deve garantir a auto-regulamentação em face dos valores a serem protegidos.
Entretanto, a natureza de tais atividades e as liberdades garantidas a tais setores não podem levar a um ambiente livre de qualquer supervisão governamental, que deve ser devidamente regrada. A Lei Anticorrupção orienta todas as pessoas jurídicas à implementação de programas de integridade ou compliance e as entidades citadas, inclusive as religiosas, não deveriam se sentir à parte desta "obrigação" legal e moral.
CC: Quais as brechas que os chamados paraísos fiscais oferecem aos criminosos interessados em lavar recursos obtidos de forma ilícita?
FDS: À medida que as fronteiras nacionais se abriram e as barreiras comerciais caíram, o crime internacional cresceu em níveis sem precedentes. O estado atual das coisas, bem revelado pelo chamado "Panama Papers", é resultado de uma falta de cooperação local nas investigações, processamento e extradição de criminosos.
Muitos governos lucram com o proveito do crime internacional ao atrair riqueza obtida de forma ilícita. Dessa forma, têm estimulado o crescimento do delito ao fecharem seus olhos para o uso de falsas identidades e registros negociais, corrupção e crimes econômicos.
Em outras palavras, a mudança no paradigma do setor financeiro, de centralizado e regulado (no campo doméstico) para descentralizado e não regulamentado ou mal regulamentado (internacionalmente), permite a continuidade de algumas das mais perigosas atividades criminosas.
CC: Nesse contexto, qual é o papel das chamadas empresas offshore?
FDS: Os paraísos fiscais costumam abraçar as offshores, empresas criadas num local para atuação em outro. Se, de um lado, elas possuem o mérito de possibilitar o trânsito livre de capital, que somente é tributado em negociações feitas nos locais em que se situam, de outro, constituem instrumento eficaz e “legitimado” de evasão fiscal. Possibilitam-se usos lícitos, mas também ilícitos.
As offshores têm viabilizado a ocultação de seus verdadeiros controladores, pois a titularidade é, segundo a legislação de vários países, comprovada por títulos ao portador. Na constituição da empresa, simplesmente são nomeados procuradores, que muitas vezes são procuradores de centenas de sociedades de mesmo estilo. Cria-se um véu eficaz para ocultar os verdadeiros proprietários.
O dever de transparência dos beneficiários das pessoas jurídicas obriga a obtenção de informação adequada e em tempo real, não se podendo admitir contas anônimas. Por isso, deve ser identificado o cliente e o beneficiário efetivo (deveres de vigilância da clientela, conhecidos por Customer Due Diligence). Da mesma forma, há o dever de recolhimento de informação suficiente sobre a instituição a quem é prestado o serviço, cabendo ao trustee, o administrador dos recursos, realizar comunicação suspeita de lavagem.
CC: O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha tem ao menos 13 milhões de dólares em patrimônio oculto e não localizado, segundo a força-tarefa da Operação Lava-Jato. Como é possível rastrear esses recursos?
FDS: Sobre o caso específico, apenas tenho conhecimento pela imprensa, mas sempre houve muita resistência na obtenção de informações vitais de paraísos fiscais e a questão somente pode ser resolvida com a pressão internacional para a colaboração com as autoridades constituídas.
Há de se cobrar dos paraísos fiscais o cumprimento das disposições que determinam o fornecimento de informações às autoridades processantes internacionais, ou seja, fazer valer compromissos ético-jurídicos sobre os econômicos, inclusive com a obtenção de informação acerca de seu proprietário, do real beneficiário (beneficial or ultimate beneficial ownership) e ou de seus controladores.
Em verdade, deveriam ser objeto de atenção especial e sua simples existência reconsiderada, até para verificar se as offshores não estão mais a serviço de ações criminosas. As razões que impedem sua supressão estão muito relacionadas com o duplo discurso de numerosos Estados, que utilizam os paraísos fiscais para realizar transações não transparentes vinculadas a “razões de Estado” ou para a gestão de bens das próprias elites políticas.
Enquanto isso não ocorre, o uso cada vez mais frequente das cooperações jurídicas internacionais e seu aperfeiçoamento para que se viabilize o repatriamento de bens com vistas à efetividade da Justiça, devem levar à ideia de que a luta contra o crime independe do local onde ele é praticado e o confisco é fundamental. É aplicação do princípio da competência universal nas questões que envolvem a corrupção tida como odiosa em qualquer lugar do mundo.
CC: Por que é tão difícil combater esse tipo de prática?
FDS: Usualmente, os negócios têm se mantido em sigilo. Ou seja, detalhes das negociações são pouco revelados, como a origem dos recursos, seus agentes, investidores, beneficiários finais e, no caso de transações comerciais, formas de pagamento, cláusulas contratuais etc. O sigilo não pode valer perante as autoridades constituídas. A devida informação deve ser prestada sempre que solicitada no menor tempo possível.
CC: O senhor acredita que a Lava Jato seria capaz de rastrear tantos recursos desviados para o exterior sem as colaborações premiadas?
FDS: Não saberia dizer especificamente sobre a operação mencionada, mas quando se está no campo do crime organizado e institucionalizado, este é caracterizado por um “dever” de fidelidade que faz com que seus agentes ocultem informações das autoridades, até para preservação de suas vidas.
No caso da corrupção, quando disseminada na sociedade e nas instituições, dificilmente é revelada a não ser com a quebra desse dever de fidelidade. Daí porque o instituto da delação premiada ganha importância e é festejado em vários fóruns internacionais. Mas ele é um caminho e deve ser confirmado por provas seguras a fim de que injustiças não sejam cometidas. Apesar da delação, é preservado o princípio da presunção de não culpabilidade ao delatado.
CC: Em que medida as instituições financeiras são omissas ou coniventes com essas práticas? Elas podem ser responsabilizadas?
FDS: Quem oferecer o sigilo para a atração de capitais sem a devida política “conheça o seu cliente” deve ser responsabilizado, porque aí estamos no campo da omissão penalmente relevante. Tudo depende da análise probatória para verificar o cumprimento das obrigações legais. O nível de envolvimento ou tolerância com a atividade criminosa é um critério para o estabelecimento da medida da culpabilidade. A cultura organizacional das empresas e instituições deve ser orientada à licitude.
CC: Quais mecanismos o Estado brasileiro poderia criar ou aperfeiçoar para coibir e combater a evasão de divisas e a lavagem de dinheiro?
FDS: Os órgãos de controle, como Tribunais de Contas, Ministério Público, Banco Central, Receita Federal, devem se antecipar aos fatos. Quando se está no campo da forjada pressa na contratação de obras ou serviços, o combate à corrupção fica dificultado se há tolerância com tal prática. Aí surge a importância do acompanhamento prévio do que está a contratar. Além disso, na contratação de obras e serviços, pode-se pensar na adoção do monitoramento preventivo, ou seja, na obrigação de se contratar empresas de seguro para garantir o adimplemento do contrato ou a indenização na hipótese de corrupção.
No caso de instituições religiosas, cabe o estabelecimento do setor de integridade ou compliance, além do enquadramento de seus líderes e ou dirigentes como pessoas politicamente expostas (PEPs). O fato de igrejas e templos de uma maneira geral ocuparem um lugar único na cultura humana, influenciando a conduta dos indivíduos, encorajando-as ao trabalho, solidariedade e responsabilidade, determina a observância das obrigações legais e morais que justificam a proteção constitucional da liberdade de religião de que são detentores.
A Lei Anticorrupção orienta todas as pessoas jurídicas à existência de programas de compliance e as entidades religiosas não deveriam se sentir à parte desta "obrigação" legal e moral. No caso do esporte, a devida informação sobre contratações deve ser prestada a um órgão gestor, que exerça funções de supervisão dos atos negociais.
CC: De tempos em tempos, o Congresso discute a legalização de jogos de azar, como bingos e cassinos. Que cuidados devem ser observados pelos legisladores para não abrir brechas para a lavagem de dinheiro?
FDS: No caso de cassinos ou de bingos, qualquer lei autorizadora, ainda que venha a prever pagamentos de tributos relevantes com destinação específica, há de obrigar a sua informatização, além de possibilidade de acompanhamento de sua movimentação financeira online e em tempo real, com possibilidade de fiscalização e controle do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ou de um órgão do setor a ser eventualmente criado. Também a obrigação da monitorar seus usuários (“conheça o seu cliente”) e a entrega de prêmios apenas ao ganhador etc. devem ser condições impostas ao setor.
CC: E o setor imobiliário? O que deve aperfeiçoar?
FDS: Os corretores de imóveis, como intermediários que são, devem contribuir para o fornecimento de informações sobre seus clientes, devendo a política “conheça o seu cliente” ser estendida a quem se encontrar atrás das pessoas jurídicas ou offshores. O legislador deveria refletir se não seria o caso de obrigar à suspensão de transações comerciais suspeitas de lavagem de dinheiro por parte dos obrigados a reportar situações suspeitas.
A evasão de divisas será desestimulada quando todos souberem que corromper, lavar dinheiro e praticar crimes financeiros não seja mais passível de ocultação. Enfim, proibição de pagamentos em espécie, não aceitação de pagamentos fora das partes envolvidas e obrigação por parte dos intermediários de transações negociais a dar informações plenas sobre operações suspeitas. A forte atividade reguladora é eficaz para deter a ideia de que o ambiente desses setores se traduz num local livre para a prática delitiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário