CartaCapital, 16/02/17
O golpe e a toga
Por Roberto Amaral
Fosse outro seu mundo ético (valor presentemente depreciado por determinadas categorias profissionais em tempos idos muito respeitadas), Gilmar Mendes, aquele que não disfarça, declarar-se-ia impedido de atuar em causas do interesse do Partido dos Trabalhadores e, especialmente, naquelas que dissessem respeito diretamente ao ex-presidente Lula, de quem se anunciou desafeto e a quem devota ódio bilioso, desde desastrado encontro promovido pelo ministro Nelson Jobim.
Mas seria exigir demais de sua militância partidária.
Em março de 2016, no ápice da crise do governo Dilma Rousseff, referido juiz assumiu a relatoria de mandado de segurança interposto pela dupla PPS- PSDB que pretendia suspender em caráter liminar a nomeação do ex-presidente para a chefia da Casa Civil.
Ao conceder a liminar e frustrar a posse de Lula, Mendes acusou a nomeação de pretender “impedir o cumprimento de ordem de prisão [de Lula] de juiz de primeira instância" blindando-o com o foro privilegiado e, dele derivado, a impunidade supostamente perseguida.
Ora é prerrogativa constitucional do presidente da República nomear seus ministros, e nela não pode avançar o Judiciário. Ademais, no momento de seu despacho, Lula não era réu nem estava condenado em qualquer processo, as únicas razões que o Direito, que presentemente passa ao largo da República de Curitiba e do gabinete do ministro, admite para a prisão.
Mas o inefável Mendes sabia, como sabe ainda hoje até o reino mineral, que a nomeação de Lula não visava, como visa agora a de Moreira, a assegurar-lhe foro privilegiado, senão a consertar o governo em crise, numa tentativa de bloquear o golpe de Estado conjurado ostensivamente.
E esta possibilidade, do concerto do governo, foi a motivação verdadeira de Gilmar Mendes para a concessão injustificável da suspensão por decisão monocrática, no que aliás se estão especializando os ministros do STF, anulando o papel das comissões e do pleno. Que ainda faz o ministro?
Pede vistas do processo que julgara liminarmente, impedindo que, com recurso ao pleno, pudesse ser cassada a liminar indevidamente concedida. A concessão da liminar e o imediato pedido de vistas foram decisões políticas fundamentais para a consolidação do golpe que cassou o mandato da presidente Dilma.
A inconsistência jurídica da decisão de Mendes surge à luz do sol na justificativa do ministro Celso de Mello para indeferir mandado de segurança interposto agora pelo PSOL e pela Rede para impedir a posse de Wellington Moreira Franco. Para o decano, não se pode presumir desvio de finalidade –como arguiu Gilmar Mendes contra Lula – se a pessoa preenche os requisitos para ocupar o cargo!
O fato de ter foro especial, continua Celso de Mello, não livra o titular desse direito de possível processo e muitos menos o blinda contra eventual decretação de prisão preventiva. Por fim, entende que não cabe a partidos políticos apresentar mandado de segurança contra nomeação de ministro pelo presidente da República.
Ou seja, para negar a liminar contra posse de Moreira, refuta todos os argumentos levantados por Mendes para conceder a liminar contra Lula. Celso de Mello e o STF fazem justiça a Moreira Franco, aquela mesma justiça que é sistematicamente negada a Luiz Inácio Lula da Silva.
Essa decisão de Celso de Melo e sua justificativa – que, espera-se, será confirmada pelo pleno do STF – transforma a decisão anterior de Gilmar Mendes em uma aberração.
Se o ministro Mendes tivesse respeito à toga, não se transformaria em assessor e conselheiro do presidente Temer, zanzando a qualquer horário, inclusive aos domingos, entre os palácios presidenciais, simplesmente porque este não pode ser o papel de um ministro do STF, mas sobretudo porque o presidente por ele assessorado será julgado no TSE do qual ele, Mendes, é presidente, e porque ainda poderá Michel Temer ser julgado de novo por Mendes no pleno do STF, julgamento previsível considerando que o ainda presidente já carrega 43 citações nas delações da Odebrecht, homologadas pela presidente Cármen Lúcia.
Compreende-se, assim, o açodamento do Planalto tentando apressar a aprovação do indescritível Alexandre de Moraes por um Senado dócil, posto que está sob os cuidados de Renan Calheiros e Romero Jucá. Pressa que contraria o bom senso, pois a boa conduta, de que se descuidou a Constituição, seria estabelecer um rito mínimo para a escolha do candidato após a indicação do presidente; seria, pois, deixar esse e qualquer candidato por algum tempo à mercê das intempéries, para assim possibilitar a intervenção da opinião pública acicatada, ainda que timidamente, pela imprensa.
De Alexandre de Moraes, prócer tucano, não se pode esperar outra ética na revisão da Lava Jato, e no pleno votando em processos que poderão ter como réus o presidente que o nomeou, os senadores que aprovarão sua indicação (assegurada de saída pelo acordo do do Planalto com Renan Calheiros e o PSDB) e muitos de seus colegas de governo.
Na Comissão de Constituição e Justiça, presidida por ninguém menos que Edison Lobão (alvo de ação de busca e apreensão em sua residência e gabinete), o futuro ministro encontrar-se-á, como seus julgadores, com dez senadores citados nas delações da inesgotável Odebrecht.
E é impossível prever o que virá das delações das outras empreiteiras, na fila de espera. No plenário do Senado o ministro terá sua indicação previsivelmente aprovada, dentre outros, pelos votos de 23 acusados, todos por ele procurados no périplo de beija-mão pedindo apoio para sua própria aprovação.
Não se sabe qual será seu comportamento diante de acusações que amanhã venham a pairar sobre os senadores seus companheiros de estranha vilegiatura pelo Lago Paranoá, numa embarcação conhecida como garçonnière, de conhecido prócer do baixo clero do Senado.
Diz-se que o ministro Alexandre de Moraes será, a despeito da prevalência de Gilmar Mendes, este o sumo pontífice, o representante do Palácio do Planalto, e nessas condições, de advogado e não de julgador, apreciará politicamente os temas de interesse do Executivo.
Assim, sem pejo ou acanhamento, estará pronto para eventualmente julgar seus ex-colegas de governo com passaporte já com visto para processos no STF, pois todos são adquirentes de foro privilegiado: Michel Temer (43 citações até aqui), Moreira Franco (34 citações), Eliseu Padilha (45 citações), Eunício Oliveira, Romero Jucá, Rodrigo Maia e Renan Calheiros, entre outros, constituindo uma verdadeira famiglia, enraizada em todos os escaninhos e porões da República.
Mas essa, com a exceção de Rodrigo Maia, do DEM, é só a súcia do PMDB. Os procurados e os procuradores não poderão impedir que em algum momento seja sarjado o tumor de corrupção que atinge o PSDB do ministro Moraes, trazendo à baila os até aqui poupados Alckmin e Aécio Neves.
São estranhos os tempos, e muita estranha é nossa Justiça.
Por que o juiz Sérgio Moro apresentado, como o último catão da República, protege tanto o Sr. Michel Temer?
Em novembro passado, a defesa do ex-deputado Eduardo Cunha apresentou um rol de 41 perguntas a serem encaminhadas a Temer, arrolado como testemunha de defesa. O juiz vetou não menos que 21: considerou umas ‘impertinentes’; outras, ‘inapropriadas’.
Há poucos dias, negando o pedido de soltura formulado por Cunha, Moro retomou a crítica às perguntas do ex-deputado, acusando-as (num julgamento puramente subjetivo) de terem como único motivo (registra Bernardo Mello Franco, colunista da Folha de S.Paulo) “constranger o Exmo. Sr. Presidente da República e provavelmente buscavam com isso provocar alguma espécie de intervenção indevida da parte dele (Temer)".
Por que o juiz não está interessado em passar a limpo a participação do presidente da República e ex-presidente do PMDB nas tramoias que a operação Lava Jato está expondo à luz do dia, quando ele é acusado de receber propina para financiar campanhas do PMDB?
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