quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Como modernizar regredindo para o início do século passado​?




 

Alerta Social, 08/02/17



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Como modernizar, regredindo para o início do século passado
​?​


Por Afranio Silva Jardim

 



Como pretendemos demonstrar abaixo, a atual proposta de reforma trabalhista vai acarretar, na prática, a perda de vários direitos dos trabalhadores brasileiros, conquistados após duras lutas e já consagrados na própria lei.

A chamada reforma trabalhista proposta pelo atual presidente da república, senhor Temer, tem como objeto transformar alguns dos atuais direitos do trabalhadores em objeto de negociação. Como negociar o que, de há muito, já está consagrado na legislação trabalhista?

Não se trata de modernizar, mas sim de afastar as várias regras da Consolidação das Leis do Trabalho que protegem o trabalhador, a parte mais fraca na relação contratual. Através de “acordos”, as regras legais poderiam deixar de ser aplicadas. É, na verdade, um grande retrocesso.
Falam em criar mais empregos. Entretanto, a rigor, vão aumentar o lucro dos patrões e transformar alguns dos atuais empregos em subempregos, reduzindo os salários e/ou aumentando a carga horária do trabalhador.

Atualmente virou moda invocar a expressão “modernizar” para tentar legitimar retornos sociais à época ultrapassada do Estado Liberal, onde o bem comum não era a preocupação principal. Outra expressão mistificadora é “flexibilizar”…

Em resumo, correndo o risco de sermos simplistas, podemos dizer que, vivendo em uma sociedade de classes, os Estados acabam “dirigidos” pela classe dominante, contaminados pelos interesses do poder econômico. Esta “reforma” trabalhista é claro sintoma disso.

Permitir que seja objeto de negociação direito ou vantagem do trabalhador, já cristalizado na lei, é permitir que ele possa perder o que já está conquistado, desde longa data. Vale a pena repetir.

Aos poucos, vão privatizar o contrato de trabalho. Querem substituir o contrato de trabalho pelo contrato de prestação de serviço, como era há cem anos, quando entrou em vigor o antigo Código Civil. Por isso, esses atuais liberais não nutrem qualquer simpatia pela própria Justiça do Trabalho.

Tenho um amigo, engenheiro de alto gabarito, que foi “obrigado” pela empresa a se “transformar” em pessoa jurídica para que o empregador “fugisse” das obrigações trabalhistas. Passou a ser prestador de serviço, embora tudo isso ainda possa ser questionado na justiça do trabalho (a menos conservadora das nossas justiças). Com a mudança proposta ou desejada, vai ser um “liberou geral”…

Não há sindicatos “fortes” para todas as categorias profissionais, em todas as cidades. Muitos sindicatos são “pelegos”, mais ligados à ideologia da classe patronal.

Ademais, em um ambiente de desemprego, o trabalhador não estará em condições de exigir nada…

Chega a ser má-fé pensar que as partes contratuais têm o mesmo poder de negociação. É uma visão ingênua, que tem dominado todo o nosso cenário jurídico.

É o neoliberalismo se refletindo no nosso sistema normativo de Direito. A maioria de nossos juristas, seguindo a trilha da maioria de nossos economistas, assimilaram a “ideologia” do liberalismo e acreditam em uma prometida “liberdade abstrata”, que só pode ser efetivamente exercida por aqueles que têm mais recursos econômicos. Acreditam que as partes contratantes manifestam as suas vontades efetivamente livres.Santa” ingenuidade. Mais uma vez, cabe aqui considerar a lição de Karl Marx, no célebre prefácio do seu livro intitulado ‘Contribuição para a Crítica da Economia Política’, in verbis:



…na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.

Até no Processo Civil e no Processo Penal, estes “negócios jurídicos” estão afastando a aplicação das regras de Direito Público! Recentemente, um ilustre professor de Direito Processual Civil do Rio de Janeiro chegou a admitir que os próprios direitos fundamentais, consagrados na Constituição Federal, possam ser objeto de negócios jurídicos processuais, vale dizer, possam ser “negociados”!!!

Alguém conseguiu negociar alguma cláusula do seu contrato de abertura de conta com o seu banco?

Alguém consegue negociar alguma cláusula contratual com a sua seguradora do automóvel, plano de saúde ou qualquer prestadora de serviço público?

Tudo é imposto ao contratante mais débil (contrato de adesão).

Assim vai ocorrer com o trabalhador, pois os contratos coletivos de trabalho vão ser impostos às categorias profissionais, cujos trabalhadores estarão sob a ameaça de demissão em massa.

Evidentemente que, em um contexto de alto índice de desemprego, os trabalhadores vão negociar em total desvantagem. É até mesmo intuitivo.

Cinismo, hipocrisia e pura perversidade. Não é por outro motivo que as entidades patronais estão eufóricas (Fiesp e CNI).

Não demora muito e teremos uma grave crise social, mormente se levarmos em linha de conta a outra reforma perversa: a reforma da previdência social. Estão brincando com fogo…

Em muitos países, no mundo de hoje, através das doações de empresas às campanhas eleitorais, o grande capital “sequestrou” as débeis democracias então existentes. Os poderes legislativos e executivos defendem os interesses daqueles que viabilizaram as suas eleições.

Ademais, as empresas controlam a mídia e são patrocinadas por outras empresas que anunciam em seus veículos de comunicação de massa. Assim, cuidam de manipular a opinião pública, que acaba criando visíveis constrangimentos ao Poder Judiciário, que resta um tanto ou quanto pressionado e “acuado”. Falam em liberdade de imprensa. Pergunto: liberdade para defender interesses da classe patronal em detrimento dos legítimos direitos daqueles que efetivamente produzem as riquezas do país?

Por isso, aproveitamos a oportunidade para deixar aqui algumas outras incômodas indagações:

A​lguém acredita em real liberdade de imprensa?

Alguém acredita que um jornalista da TV Globo (ou qualquer outra emissora) possa manifestar livremente a sua opinião sobre o Lula, Temer, Aécio, FHC etc?

Alguém acredita que algum jornalista de qualquer TV possa aprofundar uma reportagem sobre um processo criminal que envolva um grande anunciante da emissora?

Alguém acredita que um jornalista possa contrariar frontalmente a “orientação” ideológica da sua empresa? Todas já veicularam editoriais defendendo economia de mercado e o Estado liberal e burguês.

Alguém acredita que uma grande empresa de notícias seja neutra e possa efetivamente criticar o sistema capitalista?

Alguém acredita que as grandes empresas de comunicação não “escondem” determinadas notícias e dão ênfase a outras, segundo posições ideológicas de seus dirigentes?

Alguém acredita que tudo isso também não ocorre com as grandes agências de correspondência internacional, que quase monopolizam as fontes de informações estrangeiras?

Alguém acredita que os jornalistas que não se “enquadrem” na orientação (informal) de seus patrões não possam ser “demitidos”?

Alguém acredita que não haja uma espécie de “autocensura” por parte dos jornalistas que precisam de seus empregos?

Alguém acredita que os meios de comunicação de massa não são formadores de opinião?

Alguém acredita que um povo sem instrução não seja “massa de manobra” do poder econômico, que domina os grandes meios de comunicação?

Alguém acredita em Papai Noel, Duendes, Bruxas e Cegonhas que trazem os bebês para suas mães?
Se não for por má-fé, acho que os defensores da criticada reforma trabalhista acreditam em tudo isso, inclusive em Saci Pererê!!!


*Professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.

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