terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A crise, o golpe e o arrocho salarial



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CartaCapital, 21/02/17




Entrevista - Clemente Ganz Lúcio, sociólogo, diretor técnico do Dieese



Por Miguel Martins




Na entrevista a seguir, o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, sociólogo, diretor técnico do Dieese, afirma que um dos componentes mais graves do atual arrocho não está relacionado apenas às dificuldades dos sindicatos em negociar com os patrões, mas ao foco do empresariado em demitir para contratar novos trabalhadores com salários mais baixos.  "Às vezes, é mais grave o ajuste salarial feito pelo desemprego e pela rotatividade", afirma. "O trabalhador é pressionado a aceitar uma condição que chega a ser aviltante: vencimentos baixos, ausência de registro em carteira, informalidade, precarização. É um jogo pesado."



CartaCapital: Segundo um levantamento do Dieese, a variação real média dos salários no Brasil é negativa desde 2015, ou seja, a maior parte dos vencimentos está sendo reajustada abaixo da inflação. A crise econômica é explicação suficiente, ou há outros aspectos por trás deste arrocho?

Clemente Ganz Lúcio: Se tomarmos como base a série histórica, é possível perceber que 2003 foi o pior ano em termos de reajuste salarial. Tratava-se do ápice da crise enfrentada pelo País no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Naqueles anos, observamos um progressivo aumento do desemprego, assim como atualmente. Tudo isso afeta gravemente o ambiente econômico e a vitalidade do próprio movimento sindical nas mesas de negociação para estabelecer as condições da relação de trabalho.

Neste contexto mais recente, entre 2015 e 2016, tivemos um processo de aceleração da inflação, de 15% a 16%, fortemente impactado pela desvalorização cambial, ajuste dos preços administrados e o choque de preços na alimentação. Esse contexto de grave adversidade para a negociação coletiva induz esse resultado negativo nos reajustes salariais.


CC: Qual o impacto da combinação entre inflação alta e recessão sobre o trabalhador?

CGL: Se a inflação fosse mais baixa, mesmo em meio à adversidade econômica, é provável que tivéssemos dificuldade, mas talvez não no mesmo montante. Talvez as perdas salariais fossem menores. As perdas estão associadas à combinação desses dois fatores. Há ainda uma terceira dimensão, que faz parte do nosso sistema de relação de trabalho: no caso brasileiro, as empresas ajustam suas contas pelo emprego.


Às vezes é mais grave o ajuste salarial feito pelo desemprego e pela rotatividade, com trabalhadores desempregados sendo contratados por muito menos, do que o arrocho resultante da negociação coletiva. Agora, a empresa demite, e quando vier a contratar lá na frente, vai haver um exército de reserva muito grande e uma procura intensa pelo mesmo posto. Isso faz com que a empresa faça uma oferta salarial mais baixa.


CC: E o trabalhador acaba obrigado a aceitar essa redução nos vencimentos. 

CGL: Esse movimento é muito mais grave para o aspecto salarial, pois ele leva à baixa condição de resistência aos sindicatos. Como nosso sistema de proteção social é bastante limitado, a possibilidade de se resistir à redução salarial é menor. O trabalhador é pressionado a aceitar uma condição que chega a ser aviltante: vencimentos baixos, ausência de registro em carteira, informalidade, precarização. É um jogo pesado.


CC: Qual era a realidade econômica em 2003?

CGL: Em 2003, há o ápice da crise do emprego e da recessão econômica. A recuperação começou no ano seguinte. No primeiro ano do governo Lula, a inflação teve um aumento de expectativa, em razão da especulação feita pelo mercado, um processo rapidamente revertido em seguida. Mas o choque sobre os preços no curto prazo levou as perdas salariais a crescer significativamente naquele ano, já em meio a um mercado de trabalho bastante deteriorado. A maioria das negociações em 2003 não teve sequer a reposição da inflação. 

No entanto, havia um fato novo, que era o governo Lula. O ambiente político era extremamente favorável, a sociedade estava mobilizada, um cenário bem diferente do atual. Estamos em meio a uma brutal crise política, longe de estar solucionada. É uma crise que vem desde o impeachment e segue sem solução, agravada de forma muito severa pela Operação Lava Jato.

Ninguém sabe o que pode ocorrer no Congresso Nacional. Essa crise política cria uma instabilidade muito grande. A gravidade dos problemas exige um nível de acordo social que não está sendo possível alcançar na sociedade brasileira. O desdobramento disso não é necessariamente uma saída econômica mais rápida. A economia brasileira teria condições de ter uma performance diferente se não houvesse uma crise política dessa magnitude.


CC: Na comparação com 2003, o poder de negociação dos sindicatos também é menor?

CGL: Hoje, a fragilidade do movimento sindical é maior. Em 2003, havia uma expectativa de retomada, mas atualmente não há esta perspectiva. O empresariado continua com o freio de mão puxado, o fechamento de empresas predomina, o não pagamento de dívidas, demissões... o movimento recessivo ainda é predominante. Tirando alguns setores como agricultura, as sinalizações positivas são muito incipientes.


CC: A greve branca de policiais no Espírito Santo e no Rio de Janeiro indica o incômodo de categorias de servidores públicos com o arrocho. Qual é a situação atual dos servidores?

CGL: O caso do setor público é tão ou mais grave do que o do setor privado. Em muitos estados, a crise fiscal tem resultado em uma política de ajuste de longa duração na força de trabalho e na remuneração do setor público. Como o setor público não tem direito à negociação coletiva, os governos estaduais não são obrigados a chamar a representação sindical para negociar, o que resulta numa crise.

Sem a possibilidade de negociar, os trabalhadores começam a se revoltar, especialmente diante de salário atrasados, cortes. Uma hora explode. A ausência da negociação coletiva não gera um ambiente favorável ao diálogo. Como os governos geralmente não tem essa prática, esse cenário resulta em crise, queda de produtividade, os servidores abandonam suas funções, a qualidade do atendimento cai. O diálogo seria importante para incentivar o bom senso, o equilíbrio. 


CC: A fixação de uma data base para negociações no setor público é uma antiga demanda do movimento sindical.

CGL: O que defendemos é a aplicação de uma convenção da Organização Internacional do Trabalho, que reconhece o direito à negociação coletiva dos servidores, mas ainda não houve a regulamentação. Como ainda não está na lei, os governos estaduais ou federal não são obrigados a sentar à mesa para negociar com os servidores. Segundo os dados levantados pelo Dieese, no caso das greves de funcionários públicos, a grande maioria, talvez dois terços, tenham como reivindicação a abertura de negociação. Muitas delas acabam assim que as negociações são abertas. Em muitos casos, se houvesse negociação, talvez não ocorresse a greve. E, possivelmente, não seriam tão longas.


CC: O governo Temer tem sinalizado a regulamentação do direito à greve, até para dificultar a paralisação de servidores que atuam em serviços essenciais.

CGL: O governo deve estar observando qual será o comportamento do ajuste fiscal nos próximos anos e está identificando o aumento do conflito. Assim, deve endurecer a regulamentação da greve. O direito à paralisação, na nossa visão, tem de ser regulamentado com o direito à negociação. Se policiais militares não podem ter direito à greve por portarem armas, ao menos eles têm de ter um processo de negociação diferenciado.

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