São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
Um terreno fértil para a violência
ROGER COHEN
Londres
Os tiros contra a deputada Gabrielle Giffords foram um ataque previsto. Ela comentou em março passado que seu distrito estava na lista de alvos de Sarah Palin. "O negócio é o modo como ela o representou, com o X de uma mira de arma sobre nosso distrito", disse Giffords. "Quando as pessoas fazem isso, elas têm de perceber que há consequências."
Essas consequências hoje incluem uma bala atravessada no cérebro de Giffords, um juiz federal e mais cinco mortos, incluindo uma menina de 9 anos.
O jovem desistente do colégio acusado por essa chacina poderia estar perturbado, mas o mínimo que se pode dizer é que a cultura em que Jared Lee Loughner estava mergulhado -das frouxas leis de armas do Arizona às imagens bélicas de Palin- oferecia tranquilidade a um candidato a assassino. Na verdade, a previsão dessa violência estava contida em muito mais que as palavras prescientes de Giffords; estava inscrita no atual espírito da época americano. Os EUA são hoje um lugar perigoso.
Combine duas guerras invencíveis, a Grande Recessão, mais de 4 milhões de casas confiscadas nos últimos três anos e um amplo temor na classe média ansiosa diante da crescente ilusão do sonho americano -e você tem um terreno quase ideal para a geração de populismo e extremismo e sua filha adotiva, a violência.
A linguagem do ataque de direita ao presidente Barack Obama é permeada de insinuações malignas há algum tempo. O movimento Tea Party prosperou retratando os EUA como usurpados por um muçulmano e socialista enrustido, que de certa forma ludibriou a Constituição e deve ser confrontado por algo próximo da rebelião armada para que a "jihad furtiva" não prevaleça.
Daí, aquele X da mira, o discurso sobre "inimigos internos" e "remédios para a Segunda Emenda", o ressurgimento do sentimento antimuçulmano (hoje em um tom mais extremo do que em qualquer momento desde o 11 de Setembro), e o interminável ataque que são a matéria principal da Fox News e da blogosfera de direita. É verdade, a raiva e as imagens violentas não se limitam à direita, mas é lá que elas encontraram sua expressão mais insistente e eficaz.
Quase uma década depois do ataque da Al Qaeda, os EUA muitas vezes parecem estar devorando a si próprios -um cenário de sonho para os autores dos atentados. É um país habitado por espectros, ao ponto de que uma mulher judia (a primeira eleita para a Câmara dos Deputados pelo Arizona), que se opôs às duras medidas anti-imigração de seu Estado e apoiou a reforma da saúde, se tornasse alvo das fantasias violentas de um jovem instável.
"Planejei de antemão", escreveu Loughner em envelope encontrado em sua casa. Parece que Giffords havia se tornado seu espectro.
Estive recentemente em Oklahoma, outro Estado conservador conhecido como a fivela do Cinturão da Bíblia. A população do Estado é menos de 1% muçulmana, mas isso não impediu que 70,8% do eleitorado aprovassem em novembro passado uma "emenda Salve Nosso Estado" que proibiu a sharia, ou lei islâmica.
Foi em Oklahoma City em 1995 que outro jovem americano, Timothy McVeigh, membro de uma milícia de direita conduzido pela raiva contra o governo federal, detonou um caminhão-bomba, matando 168 pessoas.
O 15° aniversário daquele ato terrorista passou em relativa obscuridade no ano passado, de tão concentrado que o país estava na ameaça jihadista. Mesmo naquela época, a suspeita recaiu inicialmente sobre os muçulmanos. Imad Enchassi, um religioso em Oklahoma City, me disse que a polícia o procurou.
Tempos conturbados exigem um bode expiatório, mesmo em uma nação que se define por sua abertura. Os EUA só precisam olhar para a violência suicida na Europa do século 20 para reaprender os perigos políticos que acompanham as dificuldades econômicas e o declínio incipiente -e compreender que os verdadeiros inimigos, seus rostos tão inócuos e comuns quanto os de McVeigh ou de Loughner, muitas vezes espreitam de dentro.
A guerra contra os imigrantes nos EUA
Jorge Durand – La Jornada (México)
Os Estados Unidos são um país guerreiro; saem de uma guerra para entrar em outra. Pode ser que esse seja o destino dos impérios, também em período de queda. Mas além dos inimigos externos, os EUA precisam de inimigos internos. Lembremos a época da proibição e da luta contra o álcool, o macarthismo, a guerra fria e o anticomunismo. Agora o perigo está na fronteira e os inimigos são os imigrantes ilegais.
Do mesmo modo que em outras épocas, as forças mais obscuras do conservadorismo levam o país do norte a situações extremas, a cometer erros históricos gigantescos que fomentam fanatismo, perseguição e violência. Muitos políticos republicanos se anunciam como verdadeiros conservadores, enquanto que os liberais, entre eles Barack Obama, sentem-se encurralados e não se atrevem a defender suas posições, e menos ainda a atacar frontalmente seus opositores.
Nas estradas do Texas, enxergam-se anúncios com o rosto de Barack Obama desfigurado e agressivo com a legenda “socialista”. As campanhas mais absurdas, como a de acusar o presidente Obama de socialista por sua proposta de reforma do sistema de saúde, de acesso generalizado, encontram eco em amplos setores da população. E se Obama não soube ou não pode se defender, os imigrantes muitos menos, pois são os mais indefesos e vulneráveis.
A retórica da invasão de imigrantes pela fronteira com o México é acompanhada das operações Bloqueio, Guardião e, a mais agressiva, Defender a linha (Hold the line). Sobre esse tema, o antropólogo Leo Chávez analisa em seu livro Covering immigration dezenas de capas de revistas que falam de uma fronteira em crise, da necessidade de fechar a porta, de prevenir uma “invasão desde o México”, da preocupação porque a “América está mudando de cor”, e, a mais irônica, com a chamada “English spoken”, como se o país tivesse perdido a sua identidade.
Mas as reclamações contra os imigrantes terminam quando o garçom serve a comida, a doméstica limpa a casa e o consumidor compra alfaces baratas no supermercado. A mão de obra mexicana é fundamental para que o sistema funcione. Mas não é indispensável. Há centenas de milhares de pobres no mundo que gostariam de estar no lugar dos mexicanos. E o sistema sabe disso, utilizando e manejando esse fato segundo sua conveniência. A única vantagem diferencial é que nós, mexicanos, estamos perto, disponíveis e somos descartáveis. Trazer mão de obra da China, da Índia ou África teria custos adicionais e ela não poderia ser descartada com tanta facilidade.
A experiência indica que o melhor trabalhador é aquele sem documentos, que é tratado como ilegal e tem que se esconder, vive com medo, não pode reclamar e carece de direitos. As batidas policiais ocorrem nas fábricas, no comércio, nos restaurantes onde há trabalhadores em excesso, facilmente substituíveis. Há anos que não há batidas em zonas agrícolas, onde os trabalhadores são mais escassos e não há substituição. Cerca de 85% dos trabalhadores agrícolas dos EUA nasceram no México e a maioria deles não tem documentos. Esse é o nicho do mercado de trabalho que nos tem sido destinado há mais de um século.
Uma parte do problema reside no fato de que os imigrantes se tornaram visíveis e se dispersaram por todo o território estadunidense. No Texas e na Califórnia sempre houve presença mexicana, fazem parte da sociedade, da diversidade racial e cultural. Em Arkansas, Georgia, Alabama, Carolinas e outros novos estados de destino, os migrantes são os recém chegados, os estrangeiros. A raça de bronze altera o equilíbrio racial e ancestral entre brancos e negros. Mas por trás das atitudes contra os imigrantes e medidas legalistas há um conflito racial evidente.
Os afroamericanos aprenderam a levantar a voz contra qualquer evidência clara de agressão ou discriminação contra seus irmãos. Os latinos, muitas vezes, se inibem como grupo, carecem de suficiente representação política e os migrantes suportam calados as agressões. Há alguns anos, consegui compreender por que, quando se perguntava a um migrante mexicano se ele já havia se sentido discriminado, quase sempre respondia que não. A resposta me foi dada por outro migrante que já estava há muitos anos nos EUA e que me explicou que era uma questão de linguagem: se você não entende o insulto ou a agressão, o impacto é muito menor...Se não pode respondê-lo em inglês, fique quieto e aguente.
A reforma migratória converteu-se em um mito. Os republicanos afirmam que o tema só começará a ser debatido quando a fronteira estiver protegida. O que nunca vai ocorrer. Sempre haverá incidentes de fronteira. O muro está incompleto e não foi a solução. Além disso, por trás do muro é preciso ter um exército para vigiar 3 mil quilômetros de fronteira.
Não apenas isso. No interior dos EUA é preciso controlar e verificar que só se contrate gente com os papéis em ordem. Mas o sistema de verificação E-Verif é lento, complicado e tem muitos erros. Além disso, a tramitação tem que ser feita em linha, exigindo uma consulta telefônica e a espera de confirmação. Muitas pequenas empresas e empregadores não têm capacidade de fazer isso. São cerca de 10 milhões de trabalhadores que trabalham com um número falso da Previdência Social ou utilizam o número de outra pessoa, mas a imensa maioria paga impostos.
Os imigrantes irregulares subsidiaram com aproximadamente 200 bilhões de dólares o sistema de seguridade social. Esse dinheiro vai para um fundo, onde se acumula e se utiliza quando há solicitações. Mas os ilegais não podem solicitar e nunca terão direito a esse dinheiro ou à aposentadoria. Sem este dinheiro, o sistema de pensões dos EUA está quebrado.
Tradução: Katarina Peixoto
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