sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ainda há esperança


 

Jornal do Brasil, sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ainda há esperança


Por Mauro Santayana

AS DUAS TRAGÉDIAS des­ta semana, a de Tucson e a da Serra do Mar, trazem, em todo o seu horror, a centelha da es­perança. Os fatos do Arizona, embora tenham custado muito menos vidas, conduziam pres­ságios piores. Os desastres na­turais, ainda que se devam, em parte, à imprevidência dos homens e dos estados, não podem ser imputados à vontade desse ou daquele agente. À vida é uma concessão fugaz de razões imperscrutáveis que fizeram surgir tempo e espaço e, neles, essa fantástica aventura da energia convertida em maté­ria e dotada da consciência de si mesma. As tempestades, os vulcões, terremotos, ciclones - e prováveis impactos de aste­roides - escapam de nosso con­trole. Diante deles, nossa im­potência se converte em força e coragem, como nos revelam os belos atos de solidariedade destas horas de luto e pranto.
Nos Estados Unidos, embora de forma ainda tímida, começa a reunir-se a consciência da neces­sidade de convívio mais civiliza­do entre os interesses políticos e econômicos, que sempre se aproveitam dos piores senti­mentos para impor-se à socieda­de. Ali, a extrema-direita se mo­ve contra a assistência médica universal e os imigrantes pobres. O discurso de Obama, convocan­do a união, foi acolhido com res­peito. Mas o ódio que se cons­truiu e se manifestou de forma quase absoluta, nos anos 30 e 40, está, mais uma vez, de volta, e ensandecido, como revelam os atos do Te aParty, de Sarah Palin, Karl Rove e Murdoch. Nos últi­mos 65 anos, depois que o Jul­gamento de Nuremberg espan­tou o mundo com a ideologia do Terceiro Reich, que juntava ba­derneiros aos grandes banquei­ros, temos lutado, com algum êxito, contra a nova barbárie, mas não conseguimos dela nos livrar. O ódio ao outro permane­ce, e sofremos em ver que, em alguns casos, as vítimas de on­tem se transformam em cruéis perseguidores de hoje. Sim, pen­samos na Palestina.
Todos os homens teriam que visitar, pelo menos uma vez na vida, os campos de concentração que ainda restam de pé. Mais do que isso: deveriam ser de leitura obrigatória os rela­tos dos sobreviventes desses espaços de ódio convertido em razões de estado. Um desses inquietantes depoimentos é o de Robert Antelme, La espèce humaine. A mais clamorosa de suas experiências foi desco­brir, em um relâmpago da consciência, que os seus algo­zes pertenciam à mesma e úni­ca espécie humana.
"O reino do homem - diz An­telme - não cessa. Os SS não podem mudar nossa espécie. Eles mesmos são fechados na mesma espécie e na mesma história". E em outro momen­to forte, Antelme, resistente francês - e não judeu - reduz o SS a um ponto minúsculo no sistema, "encerrado, ele tam­bém, dentro do arame farpado, condenado a nós, fechado den­tro de seu próprio mito".
O Brasil, representado pela decisão da chefe de Estado, se une na busca dos mortos e fe­ridos nas encostas de Petrópo­lis, Teresópolis e Nova Friburgo. Todos os nosso recursos, humanos e materiais, serão em­pregados no Rio de Janeiro, de acordo com a decisão da pre­sidente Dilma Rousseff. Essas providências, é certo, serão to­madas também nas áreas atin­gidas em outros estados, como os de São Paulo e Minas.
É mais fácil sepultar as ví­timas dos desastres naturais do que as da bestialidade dos próprios homens. Os enviados para as câmaras de gás e os for­nos crematórios dos lager na­zistas-judeus, comunistas, es­lavos, ciganos - continuam in­sepultos, ainda que converti­dos em cinzas, como insepul­tos continuam os negros assas­sinados pela Ku-Klux-Kan, os líderes políticos como Gandhi e Allende, as vítimas de Tucson- e os brasileiros mortos em tempo que não se afasta de nossa memória dilacerada.
Apesar disso, não puderam assassinar a esperança. En­quanto formos capazes de re­mover os escombros, neles en­contrar vidas, e chorar pelos estranhos, seremos também capazes de combater o ódio e as injustiças, para a salvação da nossa espécie.

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