quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Santayana: Touraine elogia FHC e desdenha o Brasil


Jornal do Brasil, 17/11/2010


Por Mauro Santayana

A sociologia costuma amparar-se na abstração: vale-se de elementos estatísticos e da generalização dos comportamentos humanos. Seu pecado, já apontado por estudiosos, é o de, no exame dos fenômenos políticos, abandonar o fundamento ético das sociedades estatais, que é o da legitimidade do poder – como bem lembrou o filósofo alemão Manfred Riedel.

O sociólogo Alain Touraine é dos mais respeitados intelectuais contemporâneos, e se especializou na América Latina, ainda que conheça bem a realidade europeia e, cela va sans dire, a de seu próprio país. Prefere, sem embargo, a nossa modesta situação histórica à da Grande França, de que é cidadão. Esse, aliás, é um costume muito francês. Recordo-me de haver assistido a uma conferência de Régis Debray em Havana, em 1966, na qual o jornalista – que se considera filósofo – propunha “estratégia revolucionária para a América Latina”. Um jovem comunista cubano perguntou-lhe sobre o que proporia como estratégia revolucionária na França. Debray, que fizera recente viagem de alguns meses ao nosso continente, como jornalista, e a serviço da revista Revolution, ligada aos chineses, disse que não entendia bem a situação da França. O jovem levou o auditório às gargalhadas, ao indagar ao conferencista, que nascera em Paris, e ali vivera toda a sua vida, o por que não entendia da política francesa tanto quanto da América Latina, já que passara tão pouco tempo entre nós.

Não é bem o caso de Touraine. Mas é curioso que tenha vindo ao Brasil, a fim de participar de um seminário técnico sobre planejamento urbano, patrocinado pela Emplasa, uma empresa estatal do governo paulista, a fim de tratar da “decadência das sociedades ocidentais”.

São surpreendentes as declarações que fez aos jornais, porque elas revelam algumas contradições. Ao expor dúvida quanto ao nosso futuro, sob a presidência de Dilma Rousseff, afirma que, em oito anos de governo, “Fernando Henrique construiu as instituições”, como se o Brasil fosse um vazio institucional antes de 1995. O que Fernando Henrique fez foi exatamente destruir a Constituição de 1988, e a Constituição é a primeira das instituições republicanas. Ele se entregou, com entusiasmo, à globalização que, segundo o mesmo Touraine, significa “o fim da sociedade”, e só resta “o mercado puro”. O sociólogo brasileiro desmoralizou, ainda mais, o Parlamento, ao cooptá-lo a fim de estabelecer a reeleição, e desmantelar o sistema cautelar de proteção aos bens nacionais, ao “privatizar” as empresas estratégicas do Estado, doando-as aos escolhidos. O ex-presidente manipulou a opinião pública, mediante os expedientes que se conhecem, nem todos honrados, como são os meios de comunicação social, os intelectuais “orgânicos” ou solitários, e os centros acadêmicos. Disse ainda Touraine, em observação óbvia, que a Europa se tem dedicado, nos últimos 20 anos, a eliminar “significados”. E dá o exemplo: o desenvolvimento industrial foi eliminado pelo mercado financeiro, substituído pelo sistema de “o dinheiro pelo dinheiro”. Nessa particular eliminação de significado, como sabemos, o governo de Fernando Henrique foi perfeito.

Consideramos deselegante – e ofensiva – a sua afirmação de que o sistema político brasileiro “é horrível, corrupto”. A corrupção, que estamos combatendo, não é endemia brasileira, mas doença universal. Como outros costumes, esse também veio da Europa. Ele conhece muito bem isso, na França do passado – como no caso do Canal do Panamá – e na França sob o governo de Sarkozy.

Se o grande intelectual francês dedicasse ao exame do seu governo o mesmo interesse que dedica ao Brasil, na certa seria mais cético em relação ao seu país, do que com respeito ao nosso. É a modesta sugestão que podemos fazer à sua excepcional inteligência.


----------

A grande mentira

Jornal do Brasil, 19/10/2009

Por Mauro Santayana 

 

As manifestações populares ocorridas contra a ajuda do Tesouro aos ladrões de Wall Street (o qualificativo é de Timothy Egan, em artigo publicado pelo New York Times) revelaram que os Estados Unidos se encontram divididos, mais do que nunca, entre ricos e pobres. Os sacrifícios recaíram, como sempre, sobre os que trabalham e produzem bens tangíveis, não sobre os que tiram lucros das nuvens.

A grande bolha, inflada pela mentira, não foi a dos empréstimos hipotecários; foi o próprio mercado financeiro. Relembremos a maior lavagem cerebral da história, mediante o alinhamento dos formadores de opinião (menos alguns) na refundação, nos anos 90, do velho liberalismo, alicerçada na ficção de que o Estado deveria retirar as rédeas sobre a economia e deixá-la entregue às "leis" do mercado. Com essa desregulamentação, de acordo com Egan, "Wall Street recebeu luz verde para atuar como um cassino".
Em meados da década de 70, diante da crise do petróleo, as teses de Friedrich Hayek, de 1944, contra a intervenção do Estado no mercado e o planejamento keynesiano da economia, passaram a ser rediscutidas. Enfim, o que se contestava era o welfare state, que taxava os lucros do capital em favor da sociedade. Essa política distributiva fora conquista dos trabalhadores do Ocidente, amparada na Revolução Soviética. Os países capitalistas se viam obrigados a ceder um pouco, a fim de conjurar a revolução mundial.

A crise da malograda globalização dos anos 20 eclodiu na queda da Bolsa de Nova York em 1929. A bancarrota, associada à grande desigualdade social daqueles anos, levaria Roosevelt, ao assumir o governo em 1933, à intervenção vigorosa - e planejada - no mercado, com a regulation até mesmo do funcionamento de lavanderias. Com isso, ele reergueu a economia e preparou a nação para a II Guerra Mundial.
Embora cercado de intelectuais destacados, o então governador de Nova York e futuro presidente tinha ouvidos mais atentos para um homem aparentemente inexpressivo, modesto assistente social, Harry Hopkins. Hopkins levara para o governo a solidariedade para com o povo trabalhador e miserável da América. Do diálogo entre os dois nasceria – antes mesmo que Keynes publicasse sua teoria sobre o emprego, os juros e o dinheiro – a arquitetura do New Deal, primeiro no Estado de Nova York, com o programa de ajuda aos desempregados, e, mais tarde, na Casa Branca, com a "Lei de Reconversão Industrial". Os economistas, que participaram do planejamento da revolução rooseveltiana, colocaram sua inteligência acadêmica a serviço de uma férrea vontade política.

Collor iniciou a entrega da economia à nova ordem, mas o impeachment e o breve governo de Itamar interromperam o processo. Coube a Fernando Henrique, desmontar o Estado em favor do "mercado" internacional. A globalização da economia, com suas exigências, entre elas as da desnacionalização das grandes empresas privadas brasileiras (como a da Metal Leve), da abertura do mercado financeiro aos bucaneiros (como na entrega do Bamerindus ao HSBC) e da privatização das estatais, foi saudada pelo intelectual como um novo Renascimento – sob as luzes do Consenso de Washington. A nova ordem exigia a internacionalização do sistema financeiro. Uma de suas providências emblemáticas foi a salvação de banqueiros temerários e fraudadores, mediante o Proero que lhe permitiu transferir ativos de alguns bancos nacionais aos estrangeiros, abrindo-lhes o mercado sem reciprocidade. Com o exemplo dessa rede protetora, outros aventureiros se estabeleceram, como os controladores do Opportunity, entre eles alguns de seus auxiliares mais diletos, como Pérsio Arida e Elena Landau. Espera-se ato de contrição do ex-presidente.
Timothy Egan registra que só 10% dos mutuários de empréstimos hipotecários se encontravam inadimplentes: os outros 90% estavam em dia com seus compromissos. "Como poderia esta minoria de maus empréstimos arruinar o capitalismo ocidental?"– pergunta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário