Folha de São Paulo, quinta-feira, 18 de novembro de 2010
A Justiça e o Estado
KENNETH MAXWELL
Na terça-feira, dia 16, Kenneth Clarke, secretário da Justiça britânico, anunciou na Câmara dos Comuns que o governo do país havia aceitado acordo pelo qual cidadãos ou residentes do Reino Unido que tenham sido libertados da prisão na base dos EUA em Guantánamo (Cuba), onde estiveram detidos como terroristas islâmicos pelas autoridades norte-americanas, serão indenizados. O ponto importante é que esses acordos extrajudiciais evitariam que os processos fossem a julgamento.
Os serviços britânicos de informações, MI5 e MI6, se opuseram vigorosamente a fornecer documentos pertinentes aos casos e alegaram que os processos poderiam demorar anos e custar muito caro, com pagamentos estimados entre 30 milhões e 50 milhões.
Há 16 indivíduos envolvidos, o mais notório sendo Binjam Mohamed, que foi repatriado ao Reino Unido no ano passado e alega ter sido torturado na baía de Guantánamo.
Ele diz que o governo britânico estava ciente de sua transferência ilegal a Guantánamo e que nada fez para impedi-la. E alega que as agências de inteligência britânicas contribuíram com questões para o seu interrogatório.
Além disso, ele alega que o governo britânico estava ciente dos voos de transferência de prisioneiros do Afeganistão para instalações norte-americanas instaladas fora do território dos Estados Unidos. Acusou a Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana de enviá-lo do Paquistão ao Marrocos, onde seus órgãos genitais foram cortados com um bisturi. Mohamed afirma que as agências britânicas de inteligência foram cúmplices em sua detenção ilegal e nos abusos sofridos.
Em maio, o tribunal de apelações britânico determinou que, caso o MI5 e o MI6 obtivessem sucesso em seus esforços para ocultar provas, isso equivaleria a solapar "os princípios mais fundamentais".
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, concordou: "Nossa reputação como país que acredita nos direitos humanos, justiça, equanimidade e no Estado de Direito -de fato, muito daquilo cuja proteção é a razão de ser desses serviços- corre o risco de sair maculada". É fato que o acordo leva o Estado a assumir custos financeiros substanciais; mas a alternativa envolvia o risco de expor segredos de Estado, e o governo a considerava muito pior.
O jornal londrino "Daily Mail" definiu o acordo como "pagamento pelo silêncio". A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, alertou que a cooperação de segurança entre o seu país e o Reino Unido poderia ser prejudicada. Mas cabe lembrar que o presidente Barack Obama tampouco cumpriu a primeira promessa que fez ao assumir o posto, a de fechar a prisão da baía de Guantánamo.
KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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A hipocrisia dos torturadores
Jornal do Brasil, 18/11/2010Por Mauro Santayana
O governo conservador de David Cameron decidiu indenizar os cidadãos britânicos torturados em Guantánamo. A prisão em Guantánamo é, em si mesma, uma situação de tortura. Guantánamo se tornou expressão que abarca todo o processo de “combate ao terrorismo” promovido pelo governo norte-americano durante o mandato de Bush. Sob qualquer pretexto, pessoas foram sequestradas nas ruas, metidas em aviões sob o comando da CIA, recolhidas em prisões clandestinas em algum lugar do mundo – ou em navios em águas internacionais do Pacífico – onde começava o “interrogatório”. Em seguida, outros aviões as transportavam para Guantánamo, com escalas consentidas, em segredo, nos aeroportos militares espanhóis e portugueses. A Península Ibérica se encontrava, então, sob o domínio de governos conservadores, principalmente a Espanha de Aznar.
É um paradoxo esperançoso que caiba aos conservadores britânicos a iniciativa de reconhecer a ilegalidade de seus atos, entre tantos outros paises cúmplices dos Estados Unidos. Em suma, o trabalhista Blair cometeu o crime de mandar tropas ao Iraque e repetir as mentiras que “justificaram” a invasão; o conservador Cameron confessa a culpa nacional pela violação dos direitos humanos.
Bush defende a prática da tortura, segundo ele, moderada. Afirma que essa prática ajudou a salvar vidas americanas. Ora, a perda de vidas norte-americanas se deve, antes de tudo, à política imperialista dos Estados Unidos. O heroísmo da guerra da independência, nos setecentos, cedeu lugar à invasão brutal do México e às expedições aos países da América Central e do Caribe ao longo do século 19. O século 20 não foi diferente e o 21 se iniciou com o genocídio no Iraque e no Afeganistão. Nessas guerras não matam só os seus inimigos – só no Vietnã houve mais de 50 mil americanos mortos e 150 mil feridos.
Os Estados Unidos não podem viver sem guerras: a indústria bélica é a mais importante do país. Na produção direta de armamentos e nas atividades correlatas (como as da Nasa) está ponderável parcela da população economicamente ativa dos Estados Unidos, assim como em suas fileiras militares. Converter essas atividades em economia de paz, como prometeu Obama, não é fácil.
Os norte-americanos se orgulham de se encontrarem à frente da civilização ocidental. Mas se trata de sociedade enferma. Nela, os velhos valores do Ocidente se amolgam diante do complexo industrial-militar, organizado para a guerra sob qualquer pretexto, e denunciado pelo presidente general Eisenhower. A forma violenta de viver o mundo se reflete na insânia dos assassinatos em massa, cometidos por pessoas aparentemente normais, e na crueldade de leis penais que chegam a condenar crianças à morte.
A indústria bélica se alimenta de conflitos e, onde é possível, os provoca, como ocorreu na guerra do Iraque contra o Irã, nos anos 80. Naquele conflito, os Estados Unidos açularam Saddam Hussein e o apoiaram com firmeza. Não há dúvida de que esses mesmos interesses voltaram a mobilizar-se, ao lado das grandes empresas de petróleo, para levar o terror ao Iraque e ao Afeganistão, usando dos argumentos falsos construídos pelos serviços de informação dos Estados Unidos.
Em editorial, o New York Times comenta a atitude de Cameron e o silêncio dos Estados Unidos diante das torturas cometidas por seus oficiais em Guantánamo e em outros lugares. Enquanto isso, os tailandeses entregam a Washington o cidadão russo Viktor Bout, modesto traficante de armas leves, acusado de abastecer “movimentos terroristas” no mundo. Os grandes não admitem a livre competição no mercado que dominam.
O governo conservador de David Cameron decidiu indenizar os cidadãos britânicos torturados em Guantánamo. A prisão em Guantánamo é, em si mesma, uma situação de tortura. Guantánamo se tornou expressão que abarca todo o processo de “combate ao terrorismo” promovido pelo governo norte-americano durante o mandato de Bush. Sob qualquer pretexto, pessoas foram sequestradas nas ruas, metidas em aviões sob o comando da CIA, recolhidas em prisões clandestinas em algum lugar do mundo – ou em navios em águas internacionais do Pacífico – onde começava o “interrogatório”. Em seguida, outros aviões as transportavam para Guantánamo, com escalas consentidas, em segredo, nos aeroportos militares espanhóis e portugueses. A Península Ibérica se encontrava, então, sob o domínio de governos conservadores, principalmente a Espanha de Aznar.
É um paradoxo esperançoso que caiba aos conservadores britânicos a iniciativa de reconhecer a ilegalidade de seus atos, entre tantos outros paises cúmplices dos Estados Unidos. Em suma, o trabalhista Blair cometeu o crime de mandar tropas ao Iraque e repetir as mentiras que “justificaram” a invasão; o conservador Cameron confessa a culpa nacional pela violação dos direitos humanos.
Bush defende a prática da tortura, segundo ele, moderada. Afirma que essa prática ajudou a salvar vidas americanas. Ora, a perda de vidas norte-americanas se deve, antes de tudo, à política imperialista dos Estados Unidos. O heroísmo da guerra da independência, nos setecentos, cedeu lugar à invasão brutal do México e às expedições aos países da América Central e do Caribe ao longo do século 19. O século 20 não foi diferente e o 21 se iniciou com o genocídio no Iraque e no Afeganistão. Nessas guerras não matam só os seus inimigos – só no Vietnã houve mais de 50 mil americanos mortos e 150 mil feridos.
Os Estados Unidos não podem viver sem guerras: a indústria bélica é a mais importante do país. Na produção direta de armamentos e nas atividades correlatas (como as da Nasa) está ponderável parcela da população economicamente ativa dos Estados Unidos, assim como em suas fileiras militares. Converter essas atividades em economia de paz, como prometeu Obama, não é fácil.
Os norte-americanos se orgulham de se encontrarem à frente da civilização ocidental. Mas se trata de sociedade enferma. Nela, os velhos valores do Ocidente se amolgam diante do complexo industrial-militar, organizado para a guerra sob qualquer pretexto, e denunciado pelo presidente general Eisenhower. A forma violenta de viver o mundo se reflete na insânia dos assassinatos em massa, cometidos por pessoas aparentemente normais, e na crueldade de leis penais que chegam a condenar crianças à morte.
A indústria bélica se alimenta de conflitos e, onde é possível, os provoca, como ocorreu na guerra do Iraque contra o Irã, nos anos 80. Naquele conflito, os Estados Unidos açularam Saddam Hussein e o apoiaram com firmeza. Não há dúvida de que esses mesmos interesses voltaram a mobilizar-se, ao lado das grandes empresas de petróleo, para levar o terror ao Iraque e ao Afeganistão, usando dos argumentos falsos construídos pelos serviços de informação dos Estados Unidos.
Em editorial, o New York Times comenta a atitude de Cameron e o silêncio dos Estados Unidos diante das torturas cometidas por seus oficiais em Guantánamo e em outros lugares. Enquanto isso, os tailandeses entregam a Washington o cidadão russo Viktor Bout, modesto traficante de armas leves, acusado de abastecer “movimentos terroristas” no mundo. Os grandes não admitem a livre competição no mercado que dominam.
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