Jornal do Brasil, 28/03/2012 às 18h41
O céu está em festa, com a alegria e a inteligência de Chico Anysio e Millôr
Num espaço de menos de uma semana, a terra ficou mais pobre, e o céu, mais iluminado. Foram-se Chico Anysio e Millôr Fernandes, dois gênios das artes, das letras, do humor, do pensamento, da inteligência, da irreverência, do bom gosto.
Quando o Brasil ainda se recuperava, ou tentava se recuperar, da perda do pai de Painho, Azamuja, Alberto Roberto, Bozó e Salomé, entre tantos outros, vem a notícia de que Millôr Fernandes também partiu. Só nos resta imaginar como deve estar divertido lá em cima.
Autor de tiradas memoráveis, Millôr, assim como Chico, não se contentava com pouco: era desenhista, tradutor, jornalista, roteirista de cinema e dramaturgo. Enfim, um artista completo.
Chico Anysio e Millôr Fernandes durante encontro histórico em 2003
Em 1985, Millôr passou a ser dono de um espaço cativo na página 11 da editoria de Opinião do Jornal do Brasil. Suas frases e desenhos marcaram época, temperados com o habitual humor, sutil e enxuto. Sua participação no JB seguiu até 1992, e enriqueceu ainda mais nosso acervo. Quando deixou o jornal, ele não disse que estava indo embora: comunicou aos leitores que sairia de férias para descansar um pouco.
“Eu sou humorista contra vontade. Um teatrólogo, porque o Armando Couto me chateou tanto que escrevi uma peça. Vou fazer cinema porque no momento me considero um sujeito sem profissão. Em matéria de atividades, a de que mais gosto é ir à praia. Calço sapato 40, mas poderia calçar 42 do mesmo jeito – não me doeria mais nem menos. Nunca vi programa de televisão que prestasse. Sou, para mal ou para bem, um sujeito eclético. Gosto de todas as pessoas, de todas as coisas, de todos os esportes, gosto de ficar em casa, de conversar na rua, de ficar calado. Só não gosto mesmo de televisão, de rádio e de comer. Tenho 33 anos: na idade em que Cristo fez uma religião, eu só fiz o Pif-Paf. Acredito profundamente no corpo, mas sou um atleta frustrado. Como qualquer concretista, também leio cinco línguas ('como qualsiasi concretiste yo aussi read cinco languages'). Não sou católico, mas tenho minhas relações diretas com Deus. E... chega”.
Descanse em paz, professor. Muito obrigado, e divirta-se lá em cima.
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Brasil perde referência intelectual com morte de Millôr, diz Dilma
DE SÃO PAULO
A presidente, Dilma Rousseff, divulgou nota nesta quarta-feira em que destaca os talentos e elogia o desenhista, jornalista, dramaturgo e escritor Millôr Fernandes, que morreu na noite de terça-feira (27), aos 88 anos. Dilma afirma, na nota, que Millôr foi um gênio brasileiro, ícone do humorismo.
"Brilhante jornalista, com a mesma maestria tornou-se escritor, cartunista e dramaturgo. Autodidata, traduziu para o português dezenas de obras teatrais clássicas. Atuou em diversos veículos de comunicação, além de ter sido fundador de publicações alternativas", disse a presidente.
"Com sua morte, o Brasil e toda a nossa geração perdem uma referência intelectual", concluiu Dilma.
Ricardo Moraes - 13.nov.06/Folhapress | ||
Millôr Fernandes em seu estúdio em Ipanema, zona sul do Rio |
CONVALESCENÇA
Em fevereiro do ano passado, Millôr Fernandes sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico. Em novembro de 2011, ele recebeu alta após uma temporada de quase cinco meses internado na Casa de Saúde São José, em Botafogo, zona sul do Rio.
De acordo com a família, Millôr sofreu falência múltipla dos órgãos e parada cardíaca na noite de terça. O velório será aberto ao público nesta quinta-feira (29), das 10h às 15h, no Cemitério Memorial do Carmo, no Caju, na Zona Portuária do Rio. Após o evento, o corpo será cremado em cerimônia restrita à família.
Millôr deixa dois filhos, Ivan e Paula, frutos de seu relacionamento com Wanda Rubino. Dois de seus irmãos são vivos: Ruth, que mora no Equador, e Hélio, proprietário do jornal "Tribuna da Imprensa".
BIOGRAFIA
Nascido no bairro do Méier, no Rio, Millôr nasceu Milton Fernandes em 23 de agosto de 1923, mas foi registrado em 27 de maio de 1924. Anos mais tarde, ao ler sua certidão de nascimento percebeu que o "T" se assemelhava a um "L" e o "N", inconcluso, parecia um "R", sugerindo a grafia Millôr em vez de Milton. Assumiu-se, então, Millôr.
Millôr perdeu os pais ainda criança --o pai morreu de intoxicação quando ele era bebê e a mãe, vítima de câncer, quando ele tinha dez anos.
Em 1938, aos 14, Millôr entrou no Liceu de Artes e Ofícios e começou a trabalhar profissionalmente na revista "O Cruzeiro". Naquele momento, se tornaria um dos principais nomes do jornalismo e das artes no Brasil. Registros constatam, inclusive, que, no período em que ele ficou no "Cruzeiro", as vendas subiram de 11 mil para 750 mil exemplares.
Foi também um dos criadores do jornal "PifPaf". Apesar de ter durado apenas oito edições, considera-se que a publicação deu início à imprensa alternativa no Brasil. Ele foi ainda um dos colaboradores de "O Pasquim", reconhecido por seu papel de oposição ao regime militar.
Com diversas aptidões --para o desenho, a prosa, a poesia, o teatro, a literatura e a tradução--, raramente se sentia frustrado. Foi premiado como desenhista (dividiu com seu ídolo Saul Steinberg [1914-1999] o primeiro lugar na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, em 1955) e requisitado como tradutor (de Shakespeare, Molière, Sófocles, Bernard Shaw).
Também escreveu peças célebres como "Liberdade, Liberdade" (1965), em parceria com Flávio Rangel, e que se tornou uma das obras pioneiras do teatro de resistência ao regime militar. A montagem foi encenada pelo Grupo Opinião, com Paulo Autran e Tereza Rachel no elenco.
Acervo UH/Folhapress | ||
O desenhista, jornalista, dramaturgo e escritor Millôr Fernandes em outubro de 1970 |
Millôr Fernandes publicou mais de 50 livros a partir de 1946, boa parte compilando textos humorísticos e desenhos feitos para a imprensa. Entre eles, "Fábulas Fabulosas" (1964) e "A Verdadeira História do Paraíso" (1972). Veja outras de suas publicações aqui.
Entre os múltiplos talentos de Millôr também estava o de roteirista. Foram mais de dez roteiros criados para o cinema, individualmente --"Modelo 19" (1952, mais conhecido como "O Amanhã Será Melhor"; "Amor para Três" (1960), "Ladrão em Noite de Chuva" (1960); "Esse Rio que Eu Amo" (1962), "Crônica da Cidade Amada" (1965), "O Menino e o Vento" (1967) e "Últimos Diálogos" (1995)-- ou em parceria, como "O Judeu" (1995), com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, e "Mátria" (1998), com Carneiro e Jom Tob Azulay. Em "Terra Estrangeira" (1995), dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, participou com diálogos adicionais.
Millôr foi uma das primeiras personalidades brasileiras a ter espaço na internet, inaugurando seu site, que segue no ar até hoje, no ano 2000. No Twitter, tem mais de 368 mil seguidores.
POLÍTICA E JORNALISMO
Seu humor crítico e inclemente lhe traria problemas também com governantes, desde o presidente Juscelino Kubitschek (que censurou seu programa "Treze Lições de um Ignorante", na TV Tupi Rio, após uma piada com a primeira-dama) até os militares que atacaram "O Pasquim" - jornal que ele ajudou a criar - durante a ditadura.
A política também causaria o fim de seu primeiro período como colaborador da revista "Veja" (1968-1982), quando se negou a cessar o apoio público a Leonel Brizola nas eleições para governador do RJ em 1982.
Em setembro de 2004, voltaria à "Veja", mas sairia cinco anos depois - seu contrato não seria renovado após Millôr questionar (a princípio extrajudicialmente) a publicação de suas colunas antigas na edição digital da revista.
Na Folha, Millôr Fernandes assinou uma coluna semanal, no caderno dominical "Mais!", entre julho de 2000 e agosto de 2001.
Foi neste período que escreveu texto que lhe rendeu processo do deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), após dizer que seu projeto de restringir termos estrangeiros na língua portuguesa era "uma idioletice".
Com MARCO AURÉLIO CANÔNICO
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