terça-feira, 5 de agosto de 2014

Parem as máquinas: o ódio está insuportável





Segunda-feira, 4 de Agosto de 2014


Parem as máquinas: o ódio está insuportável



Por Alberto Dines



Em memória de Jean Jaurès (1859-1914)



Nas rememorações do centenário do início da Grande Guerra – surpreendentemente copiosas e ricas – faltou recortar a monumental figura do jornalista e tribuno socialista e pacifista Jean Jaurès, assassinado no dia 31 de julho de 1914, três dias depois de formalmente declarada.
Foi a sua primeira vítima: não caiu no campo de batalha, mas no Café Croissant, no bairro parisiense de Montmartre, a pouca distância da redação do L’Humanité (A Humanidade, jornal que fundou e dirigia havia dez anos), enquanto comia uma torta de morangos com os seus companheiros antes de retornar à redação para fechar a edição do dia seguinte. O assassino, Raoul Villain (vilão, em francês), era um jovem nacionalista alsaciano, insano e desequilibrado, que enxergava na guerra a única saída para retomar da Alemanha a sua terra natal. Indignado com a pregação pacifista de Jaurès, alvejou-o com dois tiros. A justiça francesa inocentou o assassino em 1919 e ainda obrigou a viúva a pagar as custas do processo.
Jaurès junta o humanismo e o pacifismo. A oposição à guerra, qualquer que seja a guerra e quaisquer que sejam os beligerantes, só é válida quando condicionada a paradigmas humanistas mais amplos. E quando se fala em pacifismo não se pretende o modelo místico tipo “paz e amor”. O pacifismo tem racionalidade, tem lógica e uma retórica absolutamente incompatível com a retórica do ressentimento e da violência.
Jaurès nos remete ao Caso Dreyfus do qual foi um dos mais veementes defensores, não obstante as torpes acusações vindas da esquerda radical por tentar inocentar um militar judeu e burguês. Respondia invariavelmente: socialistas devem combater todas as injustiças – contra trabalhadores ou contra burgueses.

Espiral do rancor
Lutar contra as injustiças também é tarefa da imprensa – talvez prioritária – razão pela qual Jaurès encarna como poucos o trinômio pacifismo-humanismo-jornalismo.
A guerra que nos horroriza neste momento entre o Estado de Israel e o Hamas na Faixa de Gaza não tem justificativa. Deve ser repudiada com firmeza, integralmente, sem vacilação: é uma barbaridade que precisa ser prontamente interrompida. A questão não reside na desproporção da retaliação aos ataques contra o território israelense: toda guerra é essencialmente desproporcional, a morte é absurdamente desproporcional diante do que a vida pode oferecer. Pretender simetrias em meio à barbárie é uma forma cínica de aceitá-la. A barbárie é inaceitável. Sobretudo quando praticada ou consentida por aqueles que foram suas vítimas preferenciais durante séculos.
Este horror pode ser desativado e já o foi em outras ocasiões (ver “Da Capo: do início”). O que deve nos ocupar neste Observatório é a perigosa intoxicação que está ocorrendo nos meios de comunicação, sobretudo nos informais, a blogosfera. O ódio brutaliza indistintamente, iguala o que odeia ao odiado, e por isso é altamente contagioso. Em termos morais, tão incontrolável quanto o ebola.
Está visível em nossa mídia formal (ou tradicional) um esforço para equilibrar a cobertura do conflito de Gaza, mas é preciso reconhecer que a louvável intenção resulta inútil. A emoção causada pela foto da criança morta não pode ser equilibrada ou compensada por outra foto ou notícia. O distanciamento e a neutralidade são impossíveis. Também a omissão. Não se pode ignorar ou minimizar o que está acontecendo. Mas estimular o ressentimento e o rancor só alimentará a espiral que fabrica guerras – mesmo nos antípodas.


Pausa
Daí a nobreza da proposição jauresiana de combinar jornalismo com pacifismo, jornalismo com humanismo, humanismo com pacifismo. Fazer barulho ou provocar celeumas era um artifício empregado nas melhores estirpes jornalísticas. Por arrogância alguns poucos ainda o utilizam. Está em vias de extinção. O pluralismo deve liquidá-lo em definitivo. O leitor-cidadão hoje quer outra coisa, quer singularizar-se, ser melhor, aperfeiçoar-se. E nesta esfera as religiões fracassaram ao produzir inevitavelmente uma arma de destruição em massa que atende pelos nomes de fanatismo e fundamentalismo.
Stop the presses, parem as máquinas, a expressão do jargão americano lembra os tempos do jornalismo dito “romântico” quando o editor ou o publisher dispunha-se a interromper a rodagem de uma edição para dar um furo formidável. Muitas vezes para corrigir um erro. As máquinas já não param como antigamente. Muito menos os teclados. Mas conviria tentar.





Terça-feira, 5 de Agosto de 2014​


Não se pode deixar de ver



Por Celso Vicenzi​




As imagens que chegam da Faixa de Gaza, bombardeada por Israel, com muitas vítimas entre crianças, mulheres e idosos, circulam como um grito impotente pelas redes sociais. Impossível manter-se impassível diante do uso desproporcional da força por parte do governo israelense. Tenho feito circular artigos e reportagens que falam dos abusos que ali são cometidos. Evito publicar imagens, mas compartilhei uma delas, recentemente, com várias crianças palestinas mortas, amontoadas, porque são o retrato cruel de como o terrorismo de Estado pouco se diferencia do terrorismo de grupos que usam a população civil como alvo. Sob o pretexto de buscar alvos militares, contam-se às centenas os “efeitos colaterais” que vitimam pessoas inocentes.
Tão logo publiquei a foto, surgiu um debate sobre o que é ou não “sensacionalismo”. A cena é forte, sim, mas há situações que não podemos deixar de ver. Mais que isso: temos a obrigação de olhar, com muita dor e indignação. Afinal, quantos civis ainda precisam ser mortos – e já são mais de mil, além de milhares de feridos – para configurar um massacre? Os álibis do governo israelense e de seus apoiadores são insustentáveis, embora a mídia de vários países ocidentais – o Brasil não é exceção – não canse de tentar legitimá-los.
O jornalismo deve poupar o cidadão – regra geral – de cenas violentas e desnecessárias. Mas há exceções porque a instantaneidade de uma imagem é fundamental para traduzir algumas tragédias humanas. O bombardeio dos Estados Unidos na Guerra do Iraque, a primeira a que assistimos ao vivo, com cenas aéreas das cortinas de fogo que se levantavam ao céu, sobretudo à noite, mais parecia um videogame high tech. A brutalidade, a essa distância, sem a visão de mutilações e mortes, tem menos chance de emocionar a opinião pública. Houve um enorme esforço das forças norte-americanas para impedir ao máximo o acesso dos jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas ao campo de batalha. Até a linguagem tornou-se asséptica. Falava-se em “ataques cirúrgicos”.


Imagens do “currículo”
O massacre que vem sendo perpetrado pela máquina de guerra de Israel contra a população civil palestina tem gerado muitas imagens brutais. Num mundo povoado por câmeras e quase anestesiado diante de tantos horrores de guerras, essas imagens ainda impactam as consciências de quem se nega a ser apenas testemunha de mais uma atrocidade.
Os Estados Unidos começaram a perder a Guerra do Vietnã quando pacatos cidadãos estadunidenses tomaram conhecimento do que seus concidadãos faziam em terras distantes. A chacina só começou a ter fim depois que, durante os telejornais, o sangue espirrou nas mesas de refeição de milhões de cidadãos em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos.
Não sou voyeur da crueldade humana, nem tampouco cego para a dor dos que imploram por socorro ou dos que morrem à míngua por injustiças em algum lugar do planeta. Foram as fotos de Don McCulinn, o primeiro fotógrafo a registrar a fome em Biafra, em 1969, que acordaram o mundo para uma catástrofe que precisava do apoio de outras nações. Não há como esquecer a imagem da menina Kim Phuc, correndo nua, gritando de dor com o corpo queimado pelas bombas de napalm, numa estrada perto de Trang Bang, no sul do Vietnã. Ou a execução, a sangue frio, com um tiro na cabeça, em plena rua de Saigon, de um vietcong – registro feito pelo fotógrafo Eddie Adams, em 1968.
Não há por que confundir. Sensacionalismo é a “exploração de notícias com o objetivo de causar sensação ou escândalo”. Ao exibir algumas cenas dantescas (como as valas com corpos de judeus mortos em campos de concentração nazista), o objetivo não é causar sensação. Primeiramente, é certo que causa indignação. Mas é também registro que permanece para que se possa tentar compreender, de alguma forma, o que e por que aconteceu. É também o testemunho para pôr no banco dos réus os responsáveis. São imagens que precisam fazer parte do “currículo” da espécie humana. Servem para lembrar-nos do quanto podemos ser ferozes e – paradoxalmente – inumanos em certas circunstâncias.


É preciso dizer não à barbárie
O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado testemunhou, com sua câmera, muito sofrimento, ódio e violência. E aos críticos, que não veem sentido em registrar a desgraça humana, respondeu: “Este é o nosso mundo, precisamos assumi-lo. Não são os fotógrafos que criam as catástrofes, elas são os sintomas da disfunção do mundo do qual todos participamos. Os fotógrafos existem para servir de espelho, como os jornalistas. E não venham me falar de voyeurismo! Voyeurs foram os políticos que deixaram as coisas acontecer e os militares que facilitaram a repressão.” O comentário era sobre Ruanda, palco de um genocídio em 1994, mas vale para qualquer situação. O relato está no livro Sebastião Salgado – da minha terra à Terra, (entrevista à amiga Isabelle Francq, editora Paralela), no qual ele também afirma: “Ninguém tem o direito de se proteger das tragédias de seu tempo, porque somos todos responsáveis, de certo modo, pelo que acontece na sociedade em que escolhemos viver.
No caso presente dos ataques de Israel, é evidente a brutalidade e a insensatez de uma ideologia política e religiosa sustentada, principalmente, pelos Estados Unidos, uma das nações que mais se envolve em ações violentas por todo o planeta. Infelizmente, pela lógica do capital e da guerra (as duas coisas costumam andar juntas), seres humanos de determinadas etnias ou nações são atacados e exterminados em nome de vários interesses. O Estado de Israel tem incorporado e ocupado territórios palestinos pela força e mantido a população sob permanente estado de terror. A qualquer momento sente-se legitimado a usar a força de maneira desproporcional. E controla quase tudo que pode ou não pode fazer.
Não estivesse sob a proteção dos Estados Unidos e das principais nações do Ocidente, seus líderes já estariam sentados em um tribunal para responder por crimes de guerra. A certeza da impunidade, no entanto, só amplia os abusos contra os Direitos Humanos. O Estado de Israel tem o direito de se defender, mas não o de perpetrar massacres. Tem o direito de lutar contra inimigos que tentam golpeá-lo, mas não pode atacar alvos civis e matar mulheres, crianças e idosos. Palestinos têm o direito a ter de volta suas terras ocupadas por Israel. Palestinos têm direito a ter um Estado, conforme a Resolução 181 da ONU, que data de 1947 e jamais foi cumprida – em boa parte, pela intransigência israelense.
O século 20 presenciou, além de duas guerras mundiais, vários crimes de guerra em acertos de contas regionais que escandalizaram o mundo. Prova de que somos animais de uma ferocidade jamais vista anteriormente sobre a face da Terra e, por isso mesmo, a única espécie capaz de destruir milhares de outras espécies e de ameaçar a sua própria existência.
Diante da brutalidade que se verifica em Gaza, golpeada por milhares de mísseis a estraçalhar corpos humanos inocentes, não é justo que o horror se esconda por trás de uma linguagem diplomática, utilizada diariamente pela mídia para encobrir crimes de guerra. Não é justo pedir que tenhamos bons modos diante do terror. A violência cega. Por isso, mais do que nunca, é preciso ter olhos para ver. E dizer não à barbárie.

Celso Vicenzi é jornalista

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