A libertação e concessão de asilo a Cesare foi uma grande vitória das forças democráticas brasileiras.

Jornal do Brasil, 23/08/2011
Battisti ganha documentos para começar 'vida normal' no Brasil

"Cesare Battisti pode agora levar uma vida absolutamente normal, sem nenhum risco", declarou o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
No dia 15 deste mês, Battisti foi à superintendência da Polícia Federal em São Paulo, onde foram colhidas suas impressões digitais e fotos. "Já posso abrir conta no banco e tirar o CPF", disse Battisti a seu advogado, quando deixaram a PF. O aval que leva consigo será substituído em alguns meses por outro, definitivo - o Registro Nacional de Estrangeiro.
Após ser condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana por quatro assassinatos na década de 70, Battisti fugiu para o Brasil em 2004. Preso em 2007, ficou detido por cerca de quatro anos, e solto após decisão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva ser aprovada pelo Supremo Tribunal Federal. O ex-ativista está em liberdade desde 9 de junho.
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Revista Piauí, Ed. 59 - Agosto.2011
Em liberdade
Na praia, a nova vida de Cesare BattistiPor Mario Sergio Conti

Quando chegam os jornais da capital, Battisti compra um e se senta à mesinha de um quiosque, à beira de um canal, e o lê da primeira à última página, mas de maneira desatenta. É a sua única leitura. Também não escreve quase nada. Usa um computador antigo com conexão lenta à internet para escrever e-mails a velhos amigos – na França, no México e na Itália, os países onde viveu –, com os quais retoma o contato. E também a brasileiros que não conhece, mas que ele sabe que se mobilizaram para que ele pudesse, novamente, ser um homem livre.
Não quer saber de ler livros ou escrevê-los. “Passei quase cinco anos lendo e escrevendo, e no momento quero fazer outras coisas”, ele disse. Por “outras coisas” entenda-se sobretudo cozinhar, de preferência ao som de blues, o seu gênero de música predileto. Ele mesmo escolhe o peixe recém-pescado, se possível uma tainha. Retira-lhe as vísceras, refoga e a leva ao forno. Prepara o arroz, uma salada e serve a refeição, para deleite dos eventuais convidados. Depois, lava a louça, arruma a cozinha – e está pronto para mais uma caminhada. A casa onde está lhe foi emprestada por um casal de amigos, que o visita esporadicamente, nos fins de semana. Ele não se sente só porque a gente do vilarejo o procura para conversar fiado e perguntar se precisa de algo. “Os brasileiros são formidáveis, não conheço povo mais alegre, simpático e sociável”, disse.
Não é de hoje que ele tem essa opinião. Depois de ter sido tirado da prisão, na Itália, por um grupo da organização na qual militava, o Proletários Armados pelo Comunismo, o PAC, ele viveu no México e na França. Na Cidade do México, criou uma revista cultural e um festival de artes gráficas que existe até hoje. Em Paris, foi zelador, editor e autor de romances policiais. Em 2004, o governo de Jacques Chirac extinguiu a doutrina Mitterrand, que garantia o asilo dos militantes que foram condenados por crimes políticos na Itália durante os anos de chumbo. Fugiu então para o Brasil, onde viveu três anos na clandestinidade. Passou temporadas em Belo Horizonte, Salvador e São Paulo, e se estabeleceu no Rio de Janeiro. Morou no Flamengo, em Ipanema e, a maior parte do tempo, em Copacabana. Como dependia de remessas esporádicas de seus direitos autorais, diversas vezes se viu sem 1 real no bolso.
“E aí aconteciam coisas surpreendentes”, ele lembrou. “O rapaz da banca onde comprava jornais me via olhando as manchetes e perguntava por que eu não comprava. Quando eu explicava que estava sem dinheiro, ele dizia para levá-los e pagar quando pudesse. No restaurante por quilo onde almoçava, acontecia a mesma coisa. Com a proprietária do apartamento que aluguei, a dona me deixava atrasar o pagamento. Nunca vi nada parecido, essa confiança e solidariedade, em nenhum lugar do mundo.”
Por isso, Battisti faz uma diferença entre a repercussão do seu julgamento na imprensa, que descambou para um xingatório ideológico de pouca racionalidade, e o que viu, e vê, nas ruas. “Eu fui pego numa disputa entre forças políticas italianas, com a qual já não tinha nada a ver. Eu não feri nem matei ninguém, apenas fiz aquilo que dezenas e dezenas de milhares de italianos fizeram naquela época: quis melhorar o país e, tantos anos depois, fui transformado num símbolo e, para alguns, num monstro”, ele disse. “Mas não quero falar sobre isso. Abandonei a política militante há décadas. É página virada.”

Por força da sua situação jurídica, Cesare Battisti não pode sair do Brasil. Não pode voltar à França, ao México ou à Itália, nem, por exemplo, ir a Cuba ou à Venezuela. O que não o incomoda nem um pouco. “Não tenho nenhuma vontade de sair do Brasil: até sonho em português”, disse. Ele ainda não sabe em qual cidade irá se estabelecer em definitivo. Se houver possibilidade, porém, viverá no Rio. “Nasci e cresci perto do mar”, contou. “Gostei de viver em Nápoles e Marselha, cidades que, de alguma forma, parecem o Rio. Eu adoro o burburinho de Copacabana, das ruas transversais à praia, cheias de vida, de moças bonitas e de gente simpática.”
A tarde caía no quiosque à beira do canal. “Ô piradinho! Ô piradinho!”, gritou o menino seu amigo, chegando com a irmã e os pais. Battisti os convidou a sentar e compartilhar uma cerveja. Conversou-se sobre a fauna e a flora das imediações: mangue, canais de água salobra, Mata Atlântica, garças, maritacas, catetos e peixes de dezenas de espécies. Battisti contou que vira golfinhos. O pai do menino disse que, não muito longe, era possível ver porcos selvagens e até onças. “Onças?”, perguntou Battisti, incrédulo. Imediatamente, o rapaz o convidou a participar de uma expedição para ver onças. “Se a gente fizer um acampamento e ficar lá uns três dias, garanto que você verá onças”, disse-lhe. “A gente leva uma barraca, comida, um fogãozinho e um garrafão de pinga; a única coisa chata são as muriçocas e pernilongos. Vai ser divertido.” Battisti topou na hora. “Os insetos não me picam: eu sou um caiçara”, falou.
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