Sobre a Líbia e a Síria
Tariq Ramadan (*)
Contrariamente à Tunísia e ao Egito e suas mobilizações não violentas, na Líbia o movimento de massa se transformou em guerra civil total com armas pesadas utilizadas pelos dois lados. A OTAN, que inicialmente justificou seu engajamento em nome da proteção dos civis, ajudou os rebeldes a ganhar combates e avançar no terreno. Nós sabemos que agentes norteamericanos e europeus aconselharam a oposição no plano militar quanto a melhor estratégia a adotar para derrotar Kadafi e seus filhos. Isso ocorreu depois que a França, seguida por trinta países, reconheceu oficialmente o Conselho Nacional de Transição enquanto representante legítimo do novo Estado líbio. Esse Conselho, presidido por antigos membros do regime, anunciou por três vezes, de modo errôneo, que tinha prendido os filhos de Kadafi. Sendo assim, a questão é a seguinte: como se pode depositar confiança tão rapidamente em um Conselho tão curioso quando todos os sinais mostram que se trata de um grupo de pessoas e de visões muito contraditórias?
É possível, efetivamente, que noites sombrias tenham ficado para trás, mas quem pode prever dias ensolarados no futuro. A Líbia é um país rico e estratégico. A intervenção estrangeira não aconteceu por acaso. Quem controlará sua riqueza e como ela será utilizada e/ou repartida entre as companhias petroleiras transnacionais ocidentais (que tomarão o lugar, por exemplo, do governo chinês, que tinha contratos com a Líbia e se opôs à guerra)? Podemos esperar um processo democrático verdadeiro e transparente? Nada é menos certo e não há nada garantido, pois segue difícil de avaliar o nível de autonomia das forças de oposição.
A Líbia foi controlada por um ditador imprevisível e pode permanecer sob controle de uma pseudo-democracia não transparente. Nossa alegria de ver tombar o ditador não deve cegar nossa prudência quanto ao que está sendo preparado para a Líbia. Nosso dever moral é estar ao lado daqueles que reivindicam a liberdade sob um regime democrático que exerça um controle total sobre as riquezas do país. Na Líbia, a partida está longe de ter acabado.
Na Síria, ela não terminou tampouco. Mais de 2.500 pessoas já foram mortas pelo regime de Bachar al-Assad, que está mostrando sua verdadeira face. Entre as vítimas, estão adolescentes, mulheres e mesmo refugiados palestinos. Ao impedir os meios de comunicação internacionais de cobrir os protestos e reprimindo a palavra, o regime pensava que seria capaz de reprimir em silêncio. Sem aliados ocidentais, sem a OTAN, sem a “comunidade internacional” e sem armas, os sírios continuam a dizer “não desistiremos!”, e dia após dia eles se manifestam e protestam. Dia após dia eles são mortos, com as mãos desprovidas de armas e o peito aberto inocente na frente. Não devemos ser ingênuos quando ao movimento de oposição: há uma estranha mistura de forças e interesses políticos (como aqueles que se reuniram na Turquia a fim de organizar e coordenar a resistência).
Nós devemos prestar homenagem à coragem dos sírios, nossos irmãos e irmãs em humanidade. Seu movimento não violento prevalecerá, mas outros sírios morrerão nesta caminhada. O movimento de não violência sírio demanda aos muçulmanos, neste mês do Ramadã, orar no dia 28 de agosto pelos desaparecidos e pelos mortos. Oremos e nos juntemos com outras pessoas dotadas de consciência, crentes ou não crentes, lembrando a sorte de pessoas inocentes que lutam por sua liberdade e por sua dignidade. Sejamos dignos enquanto seres humanos manifestando nosso apoio à dignidade de seus mortos.
(*) Suíço de origem egípcia, neto do fundador da Irmandade Muçulmana, do Egito, Tariq Ramadan é doutor em Literatura, Filosofia e Estudos Islâmicos. Há vários anos, dedica-se ao debate sobre as relações do islamismo com a Europa e o mundo. Atualmente é professor de estudos islâmicos na Universidade de Oxford, na Universidade Doshisha (Japão) e na Lokahi Foundation (Londres). Também é presidente da organização “European Muslim Network” (EMN), sediada em Bruxelas. (Artigo disponível na página do autor: www.tariqramadan.com)
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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