Jornal do Brasil, 01/12/2010
A paranoia americana
Por Mauro Santayana
Entre os documentos diplomáticos divulgados, há um, sobre o Brasil, que merece comentário especial. Os norte-americanos, ao analisarem nossa política estratégica, afirmam que há uma tradicional “paranoia” do Brasil com relação à Amazônia. O vocábulo vem a calhar, como dizem nossos irmãos portugueses. Paranoia, segundo os especialistas, é uma visão paralela da realidade, uma deturpação mental, que pode designar personalidade reduzida e atormentada pelo medo, mas também identificar alguém que se julga em plano superior, como um titã, ou um deus. Se partirmos dessa definição científica, os Estados Unidos são exemplo clássico de nação paranoica.
O que é a grande virtude dos Estados Unidos, a colonização do território pelos puritanos ingleses, e sua obstinação pela liberdade, pode ser entendido, também, como fragilidade. O fundamentalismo protestante, que se expressou na perseguição às bruxas e na violência contra os pecadores, é bem reconstituído por Nathaniel Hawthorne em A Letra Escarlate, e pela peça clássica de Arthur Miller The crucible (As Feiticeiras de Salém ). Nessa obra, Miller faz inteligente ligação entre a intolerância ensandecida dos peregrinos e a "caça às bruxas" do macartismo dos anos 50.
A paranoia norte-americana se revela na oscilação entre o medo e a megalomania, que lhes serve como escudo contra o sentimento de perseguição de que padecem. Enfim, em termos modernos de psiquiatria, trata-se de um temperamento bipolar, ou psicose maníaco-depressiva. Até mesmo na ficção, na fantasia, os Estados Unidos expressam sua paranoia, ao criar heróis como o super-homem, capazes de vencer a gravidade, blindar o corpo, ou adquirir a fisiologia da aranha e a força dos titãs.
É assim que se explica a preocupação da Secretaria de Estado dos Estados Unidos em conhecer a íris dos dirigentes paraguaios (e provavelmente de muitos outros políticos do mundo), além de suas impressões digitais e seu DNA: que perigo pode representar para os Estados Unidos o pequeno país mediterrâneo da América do Sul, com as dificuldades econômicas que todos conhecem?
Esse jogo dialético da paranoia, entre o medo e a megalomania, encontra expressão política clara em O Destino Manifesto. A ideia de que devem proteger-se contra os inimigos deve ser vencida pela ampliação de suas "virtudes", mediante a expansão territorial.
No mesmo ano em que John O'Sullivan criava a expressão na Democratic Review (1857), o presidente Buchanan (hoje marca de uísque) dizia, ao assumir o cargo, em março, que "a expansão dos Estados Unidos sobre o continente americano, do Ártico à América do Sul, é o destino de nossa raça, e nada pode detê-la". A expansão já se iniciara, com a usurpação da maior parte do México, na Guerra de 1848-49, e seria retomada por McKinley, na anexação do Havaí e na conquista das possessões espanholas no Caribe e nas Filipinas.
Os Estados Unidos se acham perseguidos pelo jornalista Julian Assange. É clara a ligação entre o seu trabalho e o pedido de que seja preso, sob a estranha acusação de estupro na Suécia.
A história da cobiça sobre a Amazônia é bem conhecida, para que não seja paranoica a nossa preocupação com a área. Essa cobiça levou-os e aos ingleses a criarem o Anglo-Bolivian Syndicate, que pretendia ocupar um enclave no noroeste amazônico, a partir do Acre.
Há mais coisas a vir, das revelações do WikiLeaks, e muitas delas, pelo que se anuncia, nos trarão constrangimentos, porque denunciarão atos de subserviência, talvez mesmo de traição explícita, de personalidades políticas brasileiras. Há quem veja nos vazamentos uma intenção deliberada de policy makers americanos, a fim de provocar a cizânia entre os países, que a sua paranoia identifica como eventuais adversários. Embora tudo seja possível, isso parece improvável.
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Jornal do Brasil, 1 de dezembro de 2010
Os ‘arcana imperii’ e a ribanceira da História
Por Mauro Santayana
É grave a revelação, entre tantas outras dos papéis do Departamento de Estado, da versão de um diálogo entre o embaixador Clifford Sobel e o ministro Nelson Jobim. De acordo com o documento, Jobim disse ao representante de Washington que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães “odeia” os Estados Unidos e que o Itamaraty é um obstáculo a uma aproximação maior do Brasil com Washington. Se realmente houve a conversa, nos termos da informação do embaixador ao Departamento de Estado, estamos diante de um fato muito sério. É conveniente duvidar de que Jobim, como ministro de Estado, possa se ter referido ao Itamaraty como se noticia.
Ele é ministro da Defesa de um país soberano, e deveria seguir as regras da Realpolitik, entre elas a de que, em princípio, todos os países devem ser tratados como amigos, mas, conforme as cautelas históricas, também como eventuais inimigos – sobretudo os mais poderosos. Se ele continuar no governo de Dilma Rousseff, como se dá por certo, como poderá reunir-se com os demais ministros da Defesa dos países da América do Sul, depois dessa revelação? Todos os países da América Latina já sofreram os golpes promovidos por Washington.
O político gaúcho é personalidade controvertida. Não é a primeira vez que se destaca no noticiário, pelo açodamento e incontinência verbal. Sua incursão em assuntos estranhos à alçada é conhecida. Mas, com toda a gravidade – que deve ser avaliada pela nova chefe de Estado – o episódio Jobim é apenas um detalhe nas revelações do WikiLeaks.
Os Estados Unidos, depois dos papéis do Pentágono, no caso do Vietnã, e dos documentos relativos à guerra no Iraque, sofrem golpe ainda mais severo em sua credibilidade política no mundo. Entre as informações já divulgadas, há algumas que irritam pelo desaforo, como a de solicitar aos diplomatas que busquem a imagem da íris, a identidade genética (DNA) e as impressões digitais de líderes estrangeiros.
Acossados pela rejeição do mundo, com a China em seus calcanhares; desconfiando de aliados que lhes pareciam firmes, como o Paquistão; dominados pelo capital financeiro, que arrosta as leis e faz e desfaz os poderes republicanos, a grande nação de Jefferson e Payne resvala pela ribanceira da História.
Os comunicados diplomáticos divulgados revelam um país amedrontado, que tenta defender-se amedrontando. Faz tempo que vêm caindo os seus arcana imperii, a que aludia Tácito e, com os segredos revelados, seu poder se desfaz. As mentiras do governo Bush, com relação ao Iraque e suas “armas de destruição em massa”, foram logo desmascaradas. É com lastro em seu poderio bélico, embora desmentido no Vietnã, como se desmente agora no Iraque e no Afeganistão, que eles ainda insistem em mostrar-se como senhores do mundo, ao dar ordens aos chefes de Estado para que atuem como vassalos de Washington. Mao disse, certa vez, que os Estados Unidos são um tigre de papel. Com as revelações do WikiLeaks, a metáfora parece confirmar-se.
Os grandes países do mundo procuram ignorar a seriedade das revelações. É provável que países como a Inglaterra, a França, a China e a Alemanha temam que os seus papéis secretos também venham a ser divulgados.
No que nos concerne, seja verdadeiro ou não o diálogo entre Jobim e Sobel, confirma-se o acerto da diplomacia independente, determinada por Lula. Os dois grandes executores dessa política de Estado, Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, cumpriram o seu dever de fidelidade para com o governo Lula, e, com fidelidade ainda maior, ao povo brasileiro que, ao longo da História, nos conflitos externos, nunca perdeu seu brio.
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