sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A síndrome do quepe


Médici e Pinochet: a dupla ideal para o Governo de uma guerrilheira

Valor Econômico, 2 de dezembro de 2010

Divã para livrar o país da síndrome do quepe

Por Maria Inês Nassif, em Valor Econômico

O período militar é um cadáver insepulto. A jovem democracia brasileira tem uma enorme dificuldade de lidar com seu passado. Nos momentos em que os conflitos políticos são de baixa intensidade, a tendência da sociedade é simplesmente jogar esse período negro da vida do país para debaixo do tapete. Quando são de média intensidade, o passado põe a cabeça de fora e lembra que continua no ar, como uma nuvem, e a chuva pode desabar a qualquer momento sobre nossas cabeças.
Em situações de grandes conflitos, como no recente período eleitoral, grupos sociais mais conservadores retiram do embornal um discurso que parece ter saído da boca de um general-presidente, com grande espaço para teorias conspiratórias dando conta de perigosas “ameaças comunistas”.
Como o uso do cachimbo normalmente entorta a boca, os movimentos políticos, desde o pré-64, voltam sempre para a lógica segundo a qual um lado sempre deve estar na ofensiva e o outro, na defensiva. A contaminação da oposição pelo velho udenismo trouxe junto o hábito de pedir a tutela dos quartéis, quando seu projeto político não consegue se viabilizar pelo voto.
Mas uma das coisas que alimenta a recaída permanente da elite brasileira ao conservadorismo –  e ao militarismo –  é o outro lado. O velho PSD, de Tancredo Neves, também permanece como padrão de comportamento político: a recusa a qualquer tipo de confronto, em especial quando pode resvalar na área militar. Os dois lados se alimentam de um consenso forjado sabe-se lá onde, de que a direita tem legitimidade para levar o confronto ao limite, enquanto, do centro à esquerda, os atores políticos tornam-se irresponsáveis se não estiverem sempre conciliando.
As Forças Armadas são peça central nas situações de confronto: não só assimilam apelos de tutela da democracia, como são a instituição que avaliza as pressões de um grupo minoritário – de direita – sobre o resto da sociedade. A lembrança do passado só vem à cena política quando serve a esse jogo de pressão.
O Ministério da Defesa, concebido teoricamente para submeter o poder militar às instituições democráticas, nem bem nasceu e parece estar contaminado pela visão udenista das Forças Armadas, que requer sempre uma ação pessedista, de conciliação, para evitar o pior. O ministro Nelson Jobim, que o governo Lula considera ter desempenhado um papel importante na consolidação do Ministério da Defesa, é tido como um ponto de equilíbrio não por ter assumido o comando das armas, mas por ter exercido um papel de mediador das pressões militares junto a um governo civil de esquerda.
O vazamento de documentos relativos ao ministro, pelo Wikileaks, trouxe à luz provas de que as forças militares continuam um capítulo à parte na história da democracia brasileira – e isso, mesmo quando o seu chefe é civil. Um ministro da Defesa que foi mantido e se fortaleceu nas brigas que comprou dentro do governo, com colegas mais comprometidos com visões não-conservadoras sobre os Direitos Humanos e sobre a forma de lidar com o passado autoritário do país, expôs as suas divergências com o Ministério das Relações Exteriores a ninguém menos que o embaixador dos Estados Unidos no Brasil.
Gentilmente, cedeu ao embaixador a informação, dada confidencialmente pelo seu chefe, o presidente da República, sobre o estado de saúde do presidente da Bolívia, Evo Morales. As inconfidências ganham os jornais dias depois de Jobim ter sido confirmado, na mesma pasta, para o próximo governo. Continua ministro de Lula e será o ministro de Dilma Rousseff.
O governo Dilma acena para a manutenção de uma situação em que o Ministério da Defesa – e portanto as Forças Armadas – não se integra a um governo legitimamente eleito, mas se mantém no governo com altíssimo grau de autonomia, graças a ondas de pânico criadas por grupos de direita. Paga o mico das inconfidências de “um ministro da Defesa invulgarmente ativo”, segundo definição do próprio Sobel em um de seus telegramas.
A falta de reação a ofensivas da direita tem seu preço. As Forças Armadas são um terreno fértil à pregação conservadora e a absorve com rapidez e clareza. Não deve ser à-toa que, depois de um processo eleitoral particularmente radicalizado –  onde prevaleceu a lógica do udenismo que confronta e apela aos quartéis e do pessedismo que concilia — que a turma que se forma este ano na Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) tenha se batizado com o nome do general Emílio Garrastazu Médici, presidente militar do período mais sangrento da ditadura.
Os militares se retiraram para os quartéis, mas é evidente que continuaram reproduzindo internamente uma ideologia altamente conservadora, que não afasta o papel de tutela sobre a sociedade civil. Isso aconteceu porque não houve uma contra-ofensiva capaz de colocar outra visão sobre o papel dos militares na sociedade e fazê-la dominante. A discussão do aprimoramento da democracia deve passar por uma profunda revisão do papel das Forças Armadas e por uma integração, de fato, da instituição nos esforços democráticos da sociedade.
A propósito: as consultas sobre os processos contra os adversários políticos da ditadura instruídos pela Justiça Militar podem ser consultados na Unicamp, que recebeu todos os arquivos reunidos pelo grupo Tortura Nunca Mais, abrigado na Arquidiocese de São Paulo, durante a ditadura. O grupo copiou os processos na Justiça Militar e, com base neles, fez um importante trabalho de denúncia de torturas e assassinatos de opositores políticos do regime. O trabalho final do grupo assume como legítima a ideia de que as denúncias de tortura por parte dos presos políticos, feitas no período à Justiça Militar, tornam sem valor as informações obtidas por esses meios. Para saber o que fizeram os presos políticos para se tornarem presos políticos, é mais garantido que se pergunte isso a eles hoje. Na democracia e em liberdade.
* Repórter especial de Política, para o jornal Valor Econômico
 
.....
 
 

Jobim: nos tempos de Jango?


Gilson Caroni Filho

O professor Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, escreveu, há 11 anos, que: uma parte do que de importante ocorre no mundo é em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos. E o dilema para a democracia daqui resultante é que os segredos só podem ser conhecidos a posteriori, depois de deixarem de ser, depois de produzirem fatos consumados que escaparam ao controle democrático". Referia-se ele, na época, ao Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), que vinha sendo negociado na surdina, entre os países desenvolvidos da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), por iniciativa dos Estados Unidos e da União Européia, com cinco países observadores, entre eles o Brasil de FHC. Tratava-se de uma carta magna das corporações transnacionais que não deixava aos países da periferia qualquer margem de soberania.
Graças ao vazamento do site Wikileaks, organização que confirma o surgimento de uma nova esfera informativa mundial, os fatos e manobras que permaneciam ocultos, na lúcida observação de Boaventura, se tornaram de conhecimento público, expondo, no caso brasileiro, o tamanho da queda que nos querem impor, ou a que estamos sujeitos.

Os telegramas de Clifford Sobel, ex-embaixador dos EUA no Brasil, dando conta dos serviços prestados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, a um país estrangeiro são emblemáticos. A presença de Jobim no futuro governo pode ter se tornado inviável. Mais do que nunca é importante lembrar a existência de uma relação íntima entre a intensidade da ameaça e a firmeza da resposta. Não há justificativa plausível, nem mesmo na lógica de uma estreita Realpolitik, para a continuação de Jobim à frente da pasta da Defesa. Um pequeno histórico se faz necessário quando mentalidades mórbidas voltam a atacar a soberania nacional, como se fosse praga e empecilho a ser removido.
Ao se abrirem os anos 1960, a diplomacia brasileira, refletindo tanto as novas realidades internacionais quanto a correlação interna das forças sociopolíticas, desenvolveu os seus primeiros esforços no sentido de divorciar-se do caduco alinhamento incondicional ao imperialismo, herança dos tempos da Guerra Fria. Foram dados, então, os passos do que, à época, ficou conhecido como "política externa independente"

O golpe de 1964 interrompeu esse processo. O regime emergente de 1º de abril, medularmente comprometido com o imperialismo estadunidense, acoplou à repressão no interior ("segurança nacional") o reacionarismo na política externa (fronteiras ideológicas). O posicionamento internacional daí resultante só poderia ter sido aquilo que que sabemos: a subserviência mais lamentável aos desígnios do Império - de que permanece, como triste exemplo, a nossa intervenção na República Dominicana, no bojo da sinistra "Força Interamericana de Paz".

Pouco a pouco, todavia, este posicionamento - lesivo à verdadeira soberania nacional, aviltante para uma república soberana - foi sendo ultrapassado pela realidade da vida. Entre as complicações de um mundo cada vez menos definível segundo o maniqueísmo dos “blocos" e as contradições do desenvolvimento das forças produtivas no país, a concepção das "fronteiras ideológicas" passou, de fato, à categoria de figura de retórica. Especialmente a partir dos primeiros anos da década de 70, os governos militares foram compelidos a descolar-se do jogo internacional do imperialismo.

E sempre que o fizeram, conflitando com sua política interna e com seu próprio discurso global, marcaram posições progressistas que lhes valeram significativos créditos entre a comunidade das nações. Basta pensar na postura brasileira em face da luta de libertação dos povos africanos, diante da Organização para Libertação da Palestina (OLP) e em relação às Malvinas.

A importância deste descolamento, conduzido consequentemente após a redemocratização, configurou o perfil que as forças democráticas reclamam para o Brasil: o de um país independente, com uma posição internacional e soberana e autônoma. Este cenário, evidentemente, é função da situação nacional. Somente um regime democrático, como o que temos hoje, assentado na mais ampla participação popular, pode aprofundar as tendências progressistas de nossa política externa. Vale dizer: a luta pela reorganização democrática da sociedade continua sendo conjugada à luta para sistematizar uma inserção internacional que corresponda aos interesses da maioria do nosso povo.

No limiar do futuro, a sociedade brasileira aparenta ser prisioneira do seu passado que, por ainda não ter sido dominado, ameaça se voltar contra ela. Pois é na hora do vôo livre para uma área ainda por construir, porém promissora, que a vontade não pode se distrair na desconfiança de que, mais uma vez, reiteramos antigos erros.

Quando disse ao diplomata americano que o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Samuel Pinheiro Guimarães, “odeia os Estados Unidos e trabalha para criar problemas na relação entre Brasília e Washington", Nelson Jobim se afigurou como triste personagem de uma geopolítica de vice-reinado.

Por aí, estaríamos condenados a viver em um território estranho à dialética, oscilando mecanicamente entre velhas sístoles e diástoles, vítimas de uma conspiração da nossa própria história. Cabe à presidente eleita avaliar se vale a pena apostar no atual ministro da Defesa. Por seu desempenho nos últimos anos e pelas confidências reveladas pelo site, Jobim está empenhado em uma aventura que lhe permita tomar o passado de assalto, obrigando o país a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível. Seria Jango o seu alvo?

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário