Em sequência, dois excelentes textos sobre segurança pública, violência, criminalidade e as UPPS.
25/11/2010 - 08h53
Para socióloga, Rio tem UPPs, mas não política de segurança
PLÍNIO FRAGA
DO RIO
DO RIO
A socióloga e ex-diretora do Sistema Penitenciário Julita Lemgruber, que está lançando o livro "A Dona das Chaves - Uma mulher no comando das prisões do Rio". Autora também de "Cemitério dos Vivos", estudo sobre o sistema carcerário, e "Quem Vigia os Vigias", sobre o controle externo na polícia, Julita Lemgruber escreveu seu novo livro em parceria com a jornalista Anabela Paiva. O resultado é uma reunião de histórias graves, tensas, humanas, mas também saborosas do período em que dirigiu os presídios do Rio, entre 1991 e 1994.
Julita Lemgruber - mãe do ator Rodrigo Candelot, que interpreta um político corrupto em 'Tropa de Elite 2' - acha que uma política de segurança pública necessita mais do que tropas. 'Não é só botar polícia na rua. É preciso planejamento das suas ações, implementação de uma estratégia e monitoramento do que faz. É um trabalho articulado. Você só planeja quando conhece muito bem a realidade.'
FOLHA - O Estado atribui os conflitos desta semana no Rio a ordens que partiram de líderes do tráfico que estão presos. Como lidar com isso? A sra. cita no livro frase de ministro inglês de que prisões são 'um modo caro de produzir pessoas piores'.
JULITA LEMGRUBER - O Brasil tem meio milhão de pessoas presas. A quarta maior população prisional do mundo. Meia dúzia está aí envolvida em dar ordem, em ter alguma responsabilidade no que acontece na cidade. Por causa dessa meia dúzia, amanhã já haverá deputado propondo medida legislativa de restrição. O [secretário José Mariano] Beltrame disse que tem de rever a legislação prisional. Isso prejudica milhares de pessoas que estão procurando cumprir sua pena, com bom comportamento para conseguir os benefícios legais. No fim, vão querer cortá-los. O que me deixa irada nessas horas é que as pessoas não percebem uma coisa: O Brasil não tem pena de morte. Esses homens e mulheres que estão presos hoje vão sair da cadeia algum dia. Se a gente trata essas pessoas com desumanidade, com crueldade, sem respeitar as famílias, tirando a possibilidade de contato dessas pessoas com o mundo aqui fora, estaremos criando monstros.
Os criminalistas falam na legislação do pânico. Sempre que há um crime que choca, sempre aparece algum deputado propondo uma legislação mais rigorosa. No mundo inteiro, sabe-se que não é com legislação que vai dar conta de reduzir criminalidade. Melhor exemplo disso é a legislação draconiana que temos a respeito de drogas. De que serve? Sou a favor da legalização do uso e da distribuição de todas as drogas. Só no Talavera Bruce há 60% das mulheres presas por tráfico de drogas. Qual é o poder dessas mulheres no tráfico do Rio? Muitas são pobres coitadas que são mulas, que recebem dois mil réis para levarem droga para a Europa ou de países latino-americanos para cá. Uma vez ou outra a polícia consegue prender lideranças do tráfico, mas em 99% dos casos são pessoas sem nenhum poder na estrutura do tráfico. E estamos entupindo as cadeias com esse tipo de gente. Querem tornar a legislação mais rigorosa ainda?
As ordens de presos a traficantes são passadas por meio de advogados e visitas de familiares. O que fazer?
Pesquisas mostram que quanto maior o contato do preso com sua família maior a possibilidade de ele não reincidir quando sair. Estimular o contato do preso com a família é fundamental. A legislação garante que o preso tenha acesso a seu advogado. A menos que as conversas com os advogados fossem monitoradas com o que a OAB se rebelaria os presos podem passar recados por meio dos advogados. Não estou dizendo que todo advogado tem comprometimento com a bandidagem. Conto no livro que no meu tempo havia advogados que faziam um périplo pelas cadeias. Fizemos um mapeamento mostrando que eles claramente atuavam como pombo correio. Fui à OAB, com uma lista de nomes. A OAB não fez nada, dizendo que é direito do advogado visitar seus clientes. Alguma coisa desse tipo você pode impedir. Mesmo em prisão de segurança máxima, é direito do condenado ser assistido por advogado. Está na Constituição. Pode, no limite, colocar um vidro para separá-lo do advogado. E como impedir a visita de familiar? Tem uma questão que tem de funcionar melhor: as áreas de inteligência das nossas polícias funcionam muito mal. Estão sempre correndo atrás do prejuízo. Não conseguem se antecipar. No sistema penitenciário, não é muito difícil trabalhar com a área de inteligência. Tem sempre algum preso 'vendendo' alguma informação, em troca de algum tipo de favor lá dentro. Num momento de crise, você pode montar um sistema de inteligência bem articulado entre polícia e prisões.
O que chama de 'legislação do pânico'?
A legislação do pânico não resolve nada. Em 1992, por exemplo, foi agravada a pena para sequestros. Nos anos seguintes, nunca houve tanto sequestro no Rio. Nos EUA, os Estados que têm pena de morte não tem criminalidade menor do que os demais. Não é o tamanho da pena que inibe a criminalidade, mas a certeza da punição. Aqui no Rio 8% dos homicídios são esclarecidos.
O discurso que a sra. faz costuma ser confundido como de proteção a criminosos.
A área de direitos humanos no Brasil sofre até hoje o resultado de uma discussão mal conduzida logo que acabou a ditadura. Brizola no Rio e Montoro em São Paulo começaram uma discussão de direitos humanos que foi mal conduzida. Fomos para o sistema penitenciário em 1983 achando que iria virar aquilo de cabeça para baixo. É uma instituição que tem regras arraigadas, que não se mudam do dia para a noite. Agentes diziam que defender os direitos humanos seria como cruzar os braços.
Direitos humanos são para todos ou ninguém terá direitos humanos. O tema não foi bem trabalhado. Acabou ficando a ideia equivocada de que direitos humanos são para beneficiar bandidos. Ficou essa ideia de quem defende direitos humanos defende leniência, 'cadeia mamão com acúçar', um certo 'laissez faire' na segurança pública.
Combater o crime dentro da cadeia parece esdrúxulo, não?
No Rio e em São Paulo, há uma relação grande entre o que acontece na cadeia e o que acontece fora. Como, em geral, a garotada que lidera do lado de fora é inexperiente e há lideranças presas muito respeitadas, claro que há ligação entre o que acontece lá dentro e aqui fora. Não é a mesma coisa em Minas Gerais, por exemplo. Mas não dá para generalizar medidas por causa de momentos como o atual. Medidas que prejudiquem uma massa carcerária que não tem nada a ver com isso. Quando o Beltrame diz que os problemas do Rio de Janeiro vêm de décadas, ele tem razão.
Qual a origem do problema?
Houve uma falta de continuidade na política de segurança pública.
O país tem presos demais?
O Brasil prende muita gente e prende mal. Menos de dez por cento dos homicídios são resolvidos. Quem é preso hoje? Usuário de crack furtando objetos de pequeno valor, por exemplo. As prisões estão coalhadas de garotos envolvidos em tráfico de drogas e crimes de pequena monta. Coalhadas de gente que podia estar sendo punido com uma pena que não é de privação da liberdade e um número enorme de homicidas andando pelas ruas. Meio milhão de presos é um investimento na própria insegurança. Cadeia não resolve. A noção de que punir é botar na cadeia tem de mudar.
Como vê a atual política de segurança do Rio?
A primeira discussão é sobre o que é política de segurança. No Rio, há uma política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), mas não uma política de segurança. Em nenhum momento sabe-se qual é a política de segurança do Rio de Janeiro para as áreas onde não há UPP. Eles conseguiram articular muito bem as estratégias das UPPs. Mas e aí? Há 13 comunidades com UPPs. Qual é a política de segurança para o resto do Estado? Falta política de segurança pública e não só no Rio. Discussão mais sofisticada e planejamento que pode revelar o que se poderia chamar de politica de segurança. Não é só botar polícia na rua. É preciso planejamento das suas ações, implementação de uma estratégia e monitoramento do que faz. É um trabalho articulado. Você só planeja quando conhece muito bem a realidade.
A queda de criminalidade em Nova York não ocorreu pela política de tolerância zero. Foi um trabalho policial sofisticado, com planejamento. Eles têm em tempo real tudo o que acontece na cidade. Os chamados 'hot spots'. Para planejar tem de conhecer muito bem a dinâmica da criminalidade, onde vai atuar a polícia, como articular Polícia Civil e Polícia Militar... Aqui o nível de corrupção é muito grave. O Rio de Janeiro tem um problema que remonta à época de ouro do jogo do bicho, quando havia corrupção generalizada na polícia. Os policiais se acostumaram a ganhar um extra. Foi do bicho para o tráfico.
Como avalia a gestão de Beltrame?
A gestão do Beltrame tem muitos méritos. Primeiro de ser absolutamente séria. É um grande mérito no cenário do Rio dos últimos anos. Já tive debate com Beltrame que a gente se estranhou bastante. Posso divergir dele, mas não posso questionar sua seriedade. Nos dois primeiros anos do governo Cabral, a violência da polícia chegou a níveis insuportáveis. Mais de mil mortes por ano. Eles se deram conta de que tinham de fazer alguma coisa. Acordaram que não se combate violência com violência. Há momentos como o que estamos vivendo que polícia tem de ir para a rua mesmo. Mas com muito cuidado. O risco é cair numa escalada de violência que não vai resolver.
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Um outro ponto de vista
UPP - Por uma construção conjunta
Da Redação Boletim IBASE
O encontro “O futuro da UPP: uma política para todos?" promovido pelo Ibase, Fundação Heinrich Böll e Clube de Engenharia ontem (24/11) foi um esforço de envolvimento da sociedade na discussão sobre segurança pública. O evento que contou com a presença de mais de 200 pessoas, entre elas inúmeras lideranças comunitárias, teve como objetivo reforçar a ideia que o tema da segurança pública diz respeito a todos os cidadãos e cidadãs e a necessidade de formular uma agenda democrática que seja capaz de construir uma política pública inclusiva.
A maior parte das pessoas presentes acredita na possibilidade de sucesso do projeto da UPP. Ele significaria a saída da violência armada das favelas e o seu fracasso teria impacto negativo. Para Luis Antônio Machado, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, inclusive do ponto de vista político, seria um equívoco combater a implantação das unidades. Segundo ele, elas contribuíram para a diminuição da letalidade, produziram expectativas de redução dos perigos urbanos e outros benefícios e têm apoio da sociedade. A iniciativa, no entanto, não é entendida por ele como uma política pública. “O que está em questão é a manutenção da ordem pública a partir da repressão. Isso não é política de segurança”, criticou. Cleonice Dias, liderança da Cidade de Deus, aponta na mesma direção: “Devemos aproveitar o momento de discussão de uma ação causal e construir uma política estruturante.”.
Embora a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) tenha sido instalada há apenas dois anos é possível fazer questionamentos fundamentais. Foi apontada a pouca clareza em relação aos critérios para implantação nas comunidades, sua ampliação e seu objetivo. Além disso, foi reivindicada a necessidade de aprofundamento do entendimento sobre sua capacidade em ser transformada em algo mais consistente, reforçando a articulação de política de saúde, educação, saneamento, entre outras.
Segundo o secretário estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, Ricardo Henriques, é exatamente a articulação das diversas políticas o desafio da secretaria. “Com a UPP social o que é possível fazer? Articular no território o conjunto de serviços e ofertas e de demandas desse território”, diz. De acordo com ele, os esforços estão sendo estabelecidos no sentido de fazer uma escuta atenta e crítica para que essas demandas sejam qualificadas e sejam traduzidas em agenda de necessidades.
“É preciso ampliar o debate porque a UPP parece ser um passo para chegar a algum lugar, mas esse lugar não está claro”, indica Itamar Silva, coordenador do Ibase. Para ele, o debate sobre segurança não pode ficar limitado à implantação ou não das UPPs. “A UPP é uma oportunidade única de aprofundar o debate sobre segurança na cidade, mas isso não deve bastar”, afirma. Em sua opinião, o apoio à iniciativa não deve ser incondicional, mas crítico. “É fazer a crítica para avançar”, aponta.
Algumas dessas críticas foram levantadas por moradores e moradoras de favelas e estão relacionadas com a coexistência de práticas novas e antigas por parte da polícia. Muitas intervenções revelaram a existência de ações de intimidação e utilização de códigos semelhantes aos anteriores à instalação das unidades, como pixações com a “marca” UPP ou questionamentos constantes sobre quem são e para onde estariam indo. Para Mônica Francisco dos Santos, liderança do Borel, muitas vezes essa polícia funcionaria como uma espécie de “controladora do particular”. “Temos que ficar o tempo todo nos justificando. E quando fazemos críticas recebemos como resposta de que antes o tráfico era pior”, desabafa.
Com as UPPs também outros fantasmas voltaram com força. É o caso das remoções, principalmente relacionadas a uma dinâmica imposta à cidade por conta dos megaeventos como a Copa 2014 e as Olimpíadas 2016. A relação entre UPP e os megaeventos seria uma questão pouco debatida na sociedade, embora essa dinâmica tenha impacto importante na cidade. “Vem alterar o desenho do Rio. Por conta da violência seguimos sem discutir que existe em marcha um controle desses territórios”, aponta Itamar.
Segundo ele, haveria pouco espaço para a discussão do papel que a segurança cumpre nesse momento. Além disso, a dinâmica de relação dos favelados com às remoções é entendida de forma simplificada como resistência ao estado e sua iniciativa de segurança.
Para Cleonice Dias, esse debate seria fundamental. “Queremos acreditar que esse programa de controle passe a ser uma política de segurança pública para o estado e que todos tenham segurança. Assim como esperamos que o direito à cidade se estenda a todos e que as remoções que hoje estão acontecendo em função dos megaeventos possam ser discutidas para que seja encontrada a melhor solução”, reivindica Cleonice.
O diálogo incipiente e, muitas vezes inexistente, entre moradores de favelas e poder público foi uma das críticas mais frequentes no encontro. A sua construção efetiva seria fundamental para a garantia de uma política pública sustentável. “Queremos construir essa cidade, somos moradores da cidade”, afirma Dona Marcia, moradora da Cruzada São Sebastião. Segundo Itamar, a capacidade da sociedade em incidir e comprometer o Estado com a política é que pode conferir fôlego a esse Estado para uma ação em longo prazo.
Porém, para uma atuação efetiva, esse diálogo deve ser qualificado e ambas as partes devem entender que essa não é uma relação sem conflitos. Na opinião de Mônica, é preciso um mediador “isento” entre a polícia e a favela. “Você não pode querer que dois atores historicamente antagônicos fiquem de mãos dadas em tão pouco tempo. Mas a possibilidade de construção da política se dá a partir do estabelecimento dessas relações.”
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