Carta Maior, 26/05/2017
Os laços da grande família jurídica do Brasil voltam à tona com a Lava
Jato
Por Rodolfo Borges,
do El País
Nesta quinta, Mendes apresentou sua defesa a Carmen
Lúcia, devolvendo artilharia a seu ‘acusador’. “A ação do Dr. Janot é um tiro
que sai pela culatra. Animado em atacar, não olhou para a própria retaguarda”,
escreveu. O ministro se referia ao fato de a filha de Janot advogar para a
empreiteira OAS, uma das protagonistas da Lava Jato, comandada no STF pelo pai. “Se o
argumento do crédito fosse levado à última instância, talvez a atuação do
procurador-geral da República pudesse ser desafiada, visto que sua filha pode
ser credora por honorários advocatícios de pessoas jurídicas envolvidas na Lava
Jato”, escreveu Mendes.
Se os laços familiares dos dois magistrados parecem comprometê-los, talvez todo
o sistema jurídico nacional teria de ser visto com lupa. Na verdade, todas as
famílias de juristas brasileiros se parecem e, por vezes, se entrelaçam. Mas
cada uma delas enfrenta uma suspeita diferente de conflito de interesse. Neste
novelo jurídico, sobra até para os procuradores de Curitiba. Os irmãos Diogo e
Rodrigo Castor de Mattos também atuam em lados opostos da Lava Jato. O primeiro está sob o comando de
Deltan Dallagnol, enquanto o segundo se juntou à defesa do marqueteiro João
Santana. O Ministério Público Federal em Curitiba diz que o irmão procurador
não atua nos casos de Santana e que, além do mais, o escritório do irmão
advogado começou a atuar no caso após o fechamento do acordo de delação do
marqueteiro.
Os juristas brasileiros parecem de fato tomar cuidado com seus laços de sangue
— recentemente o ministro Luiz Fux ficou de fora da disputa entre Sport e Flamengo
pelo título do Campeonato Brasileiro de 1987, porque seu filho é advogado do
rubro-negro carioca —, mas as precauções não são o bastante para afastar as
suspeitas de quem enxerga promiscuidade entre juízes e defensores, ainda mais
quando as relações se repetem com tanta frequência.
No STF, sete dos 11 ministros têm parentes como donos, administradores ou
funcionários de grandes escritórios de advocacia, aponta levantamento do site Poder360.
Um oitavo, novamente o ministro Fux, tinha uma filha advogada que trabalhava em
grande escritório até o ano passado, quando ela deixou o posto para virar
desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — sob questionamento
formal de que não tinha qualificações para tanto e suspeitas de influência de
seu pai na nomeação. Assim, esse tipo de suspeita está disseminada por
praticamente todos os níveis do Judiciário nacional.
O cientista político Frederico de Almeida, professor da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), diz que essa dinâmica tende a se repetir em todos os
países, porque as faculdades de elite, que formam os maiores juristas, ajudam a
criar e até reforçam redes que já existem em nível familiar. Mas esse fenômeno
é mais intenso no Brasil. "No caso brasileiro, o mais peculiar talvez seja
que, por sermos um país muito desigual, com uma elite muito restrita e que se
reproduz há muito tempo e com pouca abertura para novos membros, essas redes
sejam mais intensas e fechadas aqui, ainda mais nos níveis superiores",
diz Almeida.
Em sua tese de doutorado, intitulada A nobreza togada, Almeida levantou
registros que essa prática se repete desde os tempos de monarquia no Brasil,
pela simples leitura das biografias dos magistrados. O currículo do ministro do
STF Francisco de Paula Ferreira de Resende (1832-1893), por exemplo, destaca,
com orgulho, o destino de seus rebentos na mesma seara. “Dois de seus filhos
alcançaram altos cargos na administração e magistratura do Brasil: Francisco
Barbosa de Resende, advogado e presidente do Conselho Nacional do Trabalho, e
Flamínio Barbosa de Resende, desembargador do Tribunal de Apelação do Distrito
Federal”.
Nada mais natural em uma área na qual as relações contam pontos no currículo.
No século passado, valia também enaltecer a ‘network’ com referências às
amizades de longa data, como no caso do ministro do STF João Martins de
Carvalho Mourão (1872-1951): "Foi redator, com Edmundo Lins (mais tarde
presidente do Supremo Tribunal Federal), Afonso de Carvalho (desembargador
aposentado do Tribunal de Apelação de São Paulo, do qual foi presidente),
Rodrigo Brêtas (peregrina inteligência, prematuramente falecido), Teodoro
Machado (depois conceituado advogado nos auditórios do Distrito Federal) e
Francisco Brant (depois diretor da Faculdade de Direito de Belo Horizonte), da
Folha Acadêmica, jornal literário que fez na época da faculdade”.
Fabiano Engelmann, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), diz que o parentesco sempre foi um fator facilitador. “A
ocupação de um cargo de assessor de desembargador, geralmente de algum parente,
sempre foi uma espécie de antessala para muitos oriundos de famílias jurídicas
que, posteriormente, seriam aprovados em concursos para a magistratura”, diz
ele. “Quando não há possibilidade legal do nepotismo diretamente, ele ocorre de
forma cruzada. Ou seja, um integrante da Justiça federal contrata o parente de
um colega da Justiça estadual, e assim sucessivamente", diz. Engelmann
lembra que há dezenas de outras formas em que as relações de parentesco atuam
no meio judicial, como na ascensão mais rápida nas carreiras públicas de
membros que são de 'famílias jurídicas'. “Obtém, assim, mais facilidade para
ocupar cargos de direção ou ser convocados para funções mais prestigiadas em
tribunais superiores”, completa.
Se as relações servem como referência e endosso — o que, é preciso ponderar,
ocorre em quase todas as profissões —, como assegurar que os laços entre
acusadores, defensores e juízes não interfiram em seus trabalhos? O problema
pode ser atacado por pelo menos dois lados, dizem os especialistas. Já existem
regras que impedem um mesmo escritório de advocacia de assessorar duas partes
de um mesmo conflito.
Nos Estados Unidos, contudo, a rigidez das bancas jurídicas é bem maior do que
no Brasil. Os norte-americanos criaram mecanismos internos de confidencialidade
e de responsabilização civil para evitar suspeitas. A ideia é permitir que
dentro de um grande escritório — composto às vezes por 300 advogados — os
juristas possam trabalhar em casos sem que um de seus colegas, parente de um
juiz ou procurador, por exemplo, sirva de motivo de questionamento para um
processo em que nem sequer atua, como tem ocorrido no Brasil.
Outro caminho é aumentar a fiscalização. “O problema principal parece ser a
inexistência de órgãos de controle efetivos, como existem para o Executivo”,
diz Fabiano Engelmann. Segundo ele, tanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) quanto o
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), além das corregedorias dos
tribunais estaduais, têm uma atuação muito tímida. “Seja por não disporem de
recursos suficientes de investigação, seja por arbitrarem punições muito
brandas. Parecem órgãos meramente formais, hoje capturados pelo corporativismo
dessas instituições e suas associações.”
Para Engelmann, há carência também de transparência sobre os casos investigados
e as punições impostas. Faltam, enfim, dados organizados e aprofundados que
possam ser acessados pelo cidadão brasileiro. “Isso tudo pode contribuir para
atenuar a ação do tráfico de influências familial e garantir a independência do
Judiciário”, sugere. Sem isso, o orgulho do pai juiz que vê sua filha virar
desembargadora ou sócia de um grande escritório de advocacia pode acabar
corroído por suspeitas de que, ainda que não tenha ocorrido conflito de
interesse, eles dificilmente conseguirão se defende.