sexta-feira, 5 de maio de 2017

Frescobol, esporte e literatura




Frescobol, esporte e literatura


Por Fernando Moura Peixoto*




“Não sei de nenhum outro esporte com essa coisa tão bonita como o frescobol: os dois jogadores não ficam um contra o outro, mas são parceiros na construção de um mesmo movimento de precisão. Como se fosse uma dança.” 

“Não tem contagem de pontos, não tem duração de partida, não tem fora de campo, não tem regra, não tem nada demarcado. É o puro prazer da elasticidade do corpo, da precisão do gesto, da dosagem da força.”

“Sem ter que ficar grudado de suor, porque o mar está sempre ali para um mergulho refrescante, de raquete e tudo, entre uma bola e outra.” 

“Tem que ser junto da água, porque na areia escaldante lá de cima, em pleno verão, é impraticável. E deixa de ter o frescor da água respingada, perde até a razão nome.”


Ana Maria Machado (1941-), escritora, jornalista, pintora, professora, tradutora e imortal da Academia Brasileira de Letras.



A origem do frescobol

Praticamente ao acaso, decorrente de “uma brincadeira de moleque de praia”, o frescobol surgiu em 1945, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, quando o paraense Lian Pontes de Carvalho se divertia na beira da praia com um amigo, batendo numa bola de tênis com uma tabuinha – a Segunda Guerra Mundial terminara havia pouco.

O novo esporte teve como berço o trecho praiano compreendido entre o Copacabana Palace Hotel – ‘o Palace’, como era cognominada então a suntuosa construção em estilo neoclássico projetada pelo arquiteto francês Joseph Gire (1872 – 1933), e inaugurada em 13 de agosto de 1923, uma segunda-feira, na Avenida Atlântica – e a Rua Duvivier, o pedaço de areia popularmente chamado de Posto Dois e Meio.


Lian, Milton e os precursores

Além de Lian, os pioneiros jogadores foram Milton Cavalcanti o grande divulgador do frescobol -, que trazia raquetes feitas no estaleiro em que trabalhava em Niterói – Geraldo Éboli, Bertoldo, Virgílio Carneiro, Leopoldo, os tenistas campeões Armando Vieira e Júlio de Abreu, Jorge ‘Cavuca’ Cavalcanti (campeão de tiro), Maria Lafond e os adolescentes Nei Ribeiro de Lemos, Zênio José Abdon, Carlos Magno e Haroldo Hage Nicolau. E ainda Jeremias de Souza, Jorge ‘Maresia’, Nilson, ‘Barão’, Lauro Barbosa Ferreira, Américo Castro e Moacyr Moura Costa. Além dos guarda-vidas locais ‘Jonga’, Sebastião e Emilson.


O Clube dos  Cafajestes

Revivi o som d'aquela bolinha vermelha,
o eco da coitada,
que rebolava ao sabor de cafajestes
à beira d'água,
prostituta entre inglórias raquetadas,
que por esporte com ela se divertiam
até cansar,
ao fresco, sem recompensa,
a disputa não valia nada.

Abilio Fernandes (1943-), escritor, poeta e teatrólogo.


O frescobol floresceu ao lado do famoso ‘Clube dos Cafajestes’ – um grupo divertido de rapazes de classe média, ou cheios da grana, e mulherengos, reunidos na Confeitaria Alvear (na Atlântica com República do Peru), liderados pelo ardoroso botafoguense Eduardo Henrique Martins de Oliveira (o aviador Edu, comandante da Panair do Brasil, morto num acidente aéreo em Porto Alegre, em 28 de julho de 1950), pródigos em aprontar confusões onde estivessem – e alguns de seus integrantes eram também aficionados do novo esporte: Carlos Peixoto, Carlinhos Niemeyer, Mariozinho de Oliveira, Newton Barbosa, os irmãos Oldar e Darcy Fróes da Cruz e o próprio Edu – o saudoso Edu [para quem Fernando Lobo (1915 – 1996) e Paulo Soledade (1919 – 1999) compuseram ‘Zum-zum’, em póstuma homenagem, um sucesso no carnaval de 1951].


Primeiras raquetes e bolas


Lian Pontes de Carvalho morava no edifício de número 1496, na Avenida Atlântica, esquina de Rua Duvivier – demolido, deu lugar a um modernoso hotel. Dono de uma fábrica de móveis, pranchas e esquadrias de madeira na Rodovia Presidente Dutra, confeccionava as raquetes, vendidas na praia com o apoio dos guarda-vidas. 

Sem a perspicácia de patentear a modalidade esportiva que inventara e as raquetes que produzia – lamentaria o fato mais tarde –, chegou a comercializar boa quantidade delas para uma loja do centro da cidade, A Exposição, no Largo da Carioca, a primeira a estimular o uso de crediário, com o slogan: "Basta ser um rapaz direito para ter crédito na Exposição".

Os que não podiam comprar ou mandar fazer suas raquetes em serraria cortavam pedaços de madeira nas obras dos prédios em construção na Avenida Atlântica. E lhes davam forma e acabamento, aparando-os, árdua e pacientemente, com lixa, lâminas de serra ‘tico-tico’ e cacos de vidro – o famoso jeitinho brasileiro já em ação. 

Utilizava-se o pinho e, depois, o cedro na manufatura das raquetes, rústicas e pesadas. Com o passar do tempo, os cabos foram encurtados e as raquetes pintadas ou envernizadas para protegê-las da água.

Jogava-se com bolas de tênis, descascadas, hábito que perdurou até o ano de 1976, quando se começou a adotar as bolinhas norte-americanas de ‘racquetball’, trazidas inicialmente por Sebastião Sarago, piloto de helicópteros. Em borracha pressurizada e na cor preta, elas iriam revolucionar o frescobol, tornando-o mais ágil, dinâmico e vibrante.


A difusão do frescobol

Sempre polêmico, o frescobol se estendeu ao Leme e ao Posto Seis, qualificado como ‘jogo de raquetes’ ou ‘tênis de praia’, amado por quem jogava e detestado pelos que frequentavam a praia. Em 1950, proibido pela polícia em Copacabana, transferiu-se para o Arpoador, e logo, para a Praia do Diabo, que viria a se tornar a grande ‘academia de frescobol’ durante mais de trinta anos, pois lá, sua prática era tolerada e, de certa maneira, liberada.

Ainda na década de 1950, propagou-se pelo Castelinho, Ipanema e Leblon, alcançando ainda a Ilha do Governador, Paquetá e Niterói. Sofreu então campanha contrária da imprensa e pelos incomodados com o recente esporte, apelidado, pejorativamente, de ‘coisa de frescos’ e ‘jogo de frescos’, e logo, ‘frescobol’.


Frescobol dicionarizado

Os ‘frescobolistas’, no entanto, não se importaram – afinal de contas, só queriam jogar em paz – e adotaram o nome, reconhecido e dicionarizado por mestre Aurélio Buarque de Holanda (1910 – 1989):

“Frescobol, s.m. (Bras.), jogo para dois parceiros, praticado ao ar livre, especialmente nas praias, no qual se utilizam raquetas e bolas de borracha: ‘Caiu n’água, escalou rochedos, participou de partidas de frescobol’ (Malu de Ouro Preto, in Vozes da Cidade, p.79). (Pl: frescobóis)”.

Há, entretanto outra versão, mais palatável, para a denominação do esporte. Seria frescobol porque é jogado na beira da água, ou seja, no fresco. A Enciclopédia Barsa, já em sua primeira edição, de 1964, registrou o frescobol na parte relativa aos jogos de praia:

“O tênis é outro esporte que se transferiu para a praia. Na indispensável adaptação, as raquetas são de madeira e a bola, de borracha (...). A designação do jogo recebeu também uma adaptação regional: frescobol”.


Repressão e intolerância

A intensa repressão policial e as campanhas negativas de parte da imprensa só fizeram contribuir para a propagação cada vez maior do frescobol. Todos sabemos que a melhor forma de se incentivar um hábito e transformá-lo em paixão ou vício, é proibindo-o. O que não é considerado lícito sempre despertou a paixão humana.


Em 1981, indignados com a discriminação ao seu esporte, os humoristas frescobolistas J. Praiano e Maurício Ramos ‘sepultaram’, na areia da praia de Ipanema, sob duas raquetes em ação, os colunistas que combatiam o jogo Zózimo, Swann, Ibrahim e Informe JB –, em uma charge, registrada pelos jornais à época. E a ‘profecia’ da dupla parece que se concretizou: “Os cronistas mundanos passam, mas o frescobol fica”.


A paixão pelo frescobol

O frescobol é um dos esportes mais difundidos nas praias brasileiras. Joga-se praticamente em todos os estados. No exterior há jogos similares. No frescobol não existem adversários, e sim parceiros, que preparam as jogadas, alternando-se no ataque e na defesa.

Além da dupla – na longa (‘longo’), média (clássico’) e curta (‘carioquinha’) distâncias –, joga-se o ‘dois-um’ (trinca), o ‘três-um’ (três batendo e um defendendo) e o ‘dois-dois’ (duas duplas). É um esporte solidário, sem a preocupação de se marcar pontos ou vencer. A definição do que deve ser o frescobol é bem expressa pelo raquetista Max ‘Índio’ Serva:

“No frescobol o objetivo não é levar o parceiro ao erro, mas sim, ter a capacidade de acertar a bola com força e precisão na raquete do outro jogador.” 

“Há uma nítida diferença de estilos entre um atacante e um defensor. O atacante dá força à bola e o defensor amortece, devolvendo-a, de preferência, a uma altura um pouco abaixo do peito do parceiro.”

“O atacante tem que estar preparado para bater em qualquer área da circunferência que o braço traça em volta do corpo. A batida, por sua vez, deve ser de forma que possibilite a defesa por parte do companheiro.” 

“Toda essa sequência de jogo tem que ter um ritmo, que é importantíssimo. Não se pode jogar uma bola lá no alto, outra cá embaixo, depois uma do lado direito e outra no esquerdo.”

(Ipanema 1983: Foto FMP)
 (Zênio José Abdon, saudoso amigo Zeninho, parceiro de frescobol,
um dos pioneiros do esporte, a quem é dedicado este trabalho)


Millôr frescobolista


“Quando muita gente insiste muito tempo que você está errado, você está certo.”

Millôr Fernandes (1923 – 2012)


Nascido no subúrbio carioca do Méier, residente desde os anos 1950 em Ipanema, desenhista, jornalista, escritor, tradutor, dramaturgo, poeta e filósofo, Millôr Fernandes (1923 – 2012) – a quem erroneamente alguns atribuem a criação do frescobol – era sempre contundente na defesa do seu esporte predileto:

"E pro frescobol, nada? Tudo! O mais belo esporte. Ágil, elegante, simples, se joga seminu (a) junto do mar.” 

“Além disso, tem uma superioridade indiscutível sobre qualquer outro esporte. É esporte mesmo, praticado pelo simples exercício do espírito lúdico.”

Até hoje, felizmente, não apareceu nenhum idiota pra inventar contagem de pontos no frescobol. O único esporte em que ninguém ganha.” 

Segundo o jornalista e escritor Alberto Villas (1950-), Millôr “gostava do frescobol porque juntava todos os prazeres em um só esporte: estava na praia, fazia exercícios, tomava sol, brisa, banho de mar e depois umas e outras”. E havia também a paquera das belas praianas, outro grande atrativo do frescobol que Villas, mineiro de Belo Horizonte, deixou de mencionar.



Frescobol e casamento

Mineiro de Boa Esperança, Rubem Alves (1933 – 2014), escritor, educador, psicanalista e teólogo, em crônica intitulada ‘Tênis vs Frecobol’ – publicada no livro O Retorno e terno(1992) –, compara um perfeito entrosamento de um casamento à parceria do jogo de frescobol.

“O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca.”

“Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la.” 

Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre.” 

“O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir…” 

“E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…” 

Texto na íntegra em vídeo no link da Comunidade Siloé Oficial:




Praticidade do frescobol   
     
Barato, fácil de ser praticado, dispensa campos delimitados e roupas especiais. Excelente exercício físico e ótimo entretenimento, quem joga frescobol com frequência e intensidade aprimora o tempo de resposta dos reflexos e mantém-se em forma.

Nos meios frescobolísticos confraternizam-se todos, não havendo diferenças sociais, econômicas, políticas, raciais ou regionais, nem discriminação de sexo. E muito menos, abismo de gerações. Entre os adeptos do frescobol estão, desde crianças e adolescentes, até pessoas com mais de 60 anos, misturando-se estudantes, artistas, desportistas, militares, jornalistas e profissionais liberais.


Campeonatos e escolinhas

Em janeiro de 1988, a Ilha do Governador – composta por quatorze sub-bairros do município do Rio de Janeiro, e integrante da zona norte – fez história, sediando o primeiro certame de ‘frescobol competição’ do país. A partir deste pioneirismo, outros torneios aconteceram, paulatinamente, nos estados brasileiros, exitosos.

Bolinha vai, bolinha vem, o frescobol é pra se ‘bater’ bem. E ingressou no século 21 sendo ‘lecionado’ em academias de ginástica, escolinhas nas praias, e nas comunidades, em quadras, para jovens menos favorecidos – frescobol já se aprende com régua e compasso. E muita improvisação. Depois das ‘escolas de samba’, as ‘escolas de frescobol’. Existem associações e federações do jogo, que é disputado em campeonatos por todo o Brasil e mundo afora. Frescobol virou moda, outrora combatido, hoje incentivado.


Patrimônio cultural imaterial

Sem sombra de dúvida – principalmente quando pinta aquele sol abrasador de verão na orla marítima – o mais carioca dos esportes, comemorado em 10 de julho (o seu dia), e considerado em 2015 “patrimônio cultural imaterial da cidade”, o frescobol expressa muito bem o conceito de ludicidade do ser humano diante da vida.


*Nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Jogou frescobol durante 30 anos na Praia de Ipanema (1962 – 1992), com passagens pela Praia do Diabo e Posto Seis. Conhecido então como o maluco do frescobol’, por tentar regulamentar sua prática e transformá-lo em esporte oficializado. 

Empreendeu um périplo em redações de jornais alternativos e lojas de material esportivo buscando obter patrocínio para um campeonato – em vão. Em 1983/84 escreveu e publicou na mídia impressa “Frescobol, Um Esporte Como Outro Qualquer, cujos dados são utilizados em sites e blogues sobre o jogo sem que lhe deem o devido crédito. O trabalho encontra-se disponível na internet no link:

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