segunda-feira, 1 de maio de 2017

"É um mito dizer que a CLT está ultrapassada"

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O Povo, 01/05/17


"É um mito dizer que a CLT está ultrapassada"



Por Wagner Mendes


Auditor fiscal do trabalho há 21 anos, Sérgio Carvalho se fez fotógrafo quando sentiu a necessidade de provar para a sociedade, por meio das imagens, que ainda existia trabalhador escravizado no Brasil. Na profissão de fiscalizador, o economista andou País afora e registrou a realidade sofrida de trabalhadores brasileiros no campo e na cidade.

A longa experiência na relação de trabalho entre empregado e empregador expõe a lucidez de Sérgio para discutir sobre o que está por vir especificamente com o avanço da reforma trabalhista no Congresso Nacional.

Ao O POVO, o auditor discute as condições de trabalho no Brasil, as reformas do presidente Michel Temer e o combate incessante do trabalho escravizador no Brasil.


O POVO - Fala-se muito na modernização do texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Há necessidade de atualização da legislação?

SÉRGIO CARVALHO - A CLT tem sido modernizada ao longo do tempo. Construiu-se um mito que diz que a CLT está obsoleta. E num ambiente de crise já tem toda a construção desse mito de que a CLT não serve mais para os dias atuais, junto com o movimento de globalização e desemprego. Ao invés de você criar uma forma de fortalecer a questão dos salários do trabalhador para evitar precarização em um momento de crise, o Estado está criando formas que vão ampliar essa precarização, seja através da terceirização, do aumento das horas trabalhadas, de acidentes de trabalho, entre outros pontos. Com a lei da terceirização (sancionada em março pelo presidente Michel Temer) aumenta o número de acidentes, aumenta o número de mortes, de doenças de trabalho e, por sua vez, aumenta o gasto do Estado. Eu acho que, antes de qualquer medida reformuladora, inovadora da CLT, precisava haver uma discussão ampla com a sociedade, com as entidades de trabalhadores, com as entidades do judiciário do trabalho, dos procuradores do trabalho, do juízes do trabalho... E essa discussão não está sendo feita. Por que esta reforma (trabalhista) está sendo votada em regime de urgência? Por que não se abre uma discussão ampla e irrestrita com a participação de todos os interessados? Para quem essa reforma está sendo implementada? Os trabalhadores estão na discutindo? É necessário que esta discussão seja ampla com a participação de todos os envolvidos: trabalhadores, empregadores e Estado. Infelizmente, isso não está acontecendo. Para chegar a quais pontos devem ser reformulados e alterados (pela reforma), esses pontos devem ser decididos dessa discussão com a sociedade.

OP - A reforma trabalhista, que foi aprovada pela Câmara dos Deputados na semana passada e deve agora ser apreciada pelo Senado Federal, pode trazer, em algum aspecto, benefícios para o trabalhador?

SÉRGIO - A reforma trabalhista é um duro golpe nos trabalhadores brasileiros, não tenho dúvida alguma sobre isso. Ela traz a precarização, o aumento da desigualdade social e dos acidentes de trabalho. No Brasil, temos cerca de 700 mil acidentes de trabalho por ano, e, de cada 10, 8 ou 9 destes acidentes acontecem em empresas terceirizadas. A terceirização vai ser ampla e irrestrita. O trabalhador terceirizado ganha em média um terço a menos que o trabalhador contratado pela empregadora. Ele trabalha cerca de duas a três horas a mais do que o trabalhador da empresa contratada. Ou seja, ele trabalha mais, ganha menos e ainda está sujeito a acidentes de trabalho pela própria falta de condição que a empresa terceirizada tem para oferecer ao trabalhador. Então, essa reforma traz de imediato essa precarização total das relações de trabalho, com perspectiva muito negativa de aumento dos acidentes, das doenças, das mortes, da diminuição dos salários e aumento das horas trabalhadas, e, também, aumento do trabalho escravo. Com essa reforma, não é o fazendeiro que contrata um “gato” para aliciar o trabalhador, seja aqui no Ceará ou na Amazônia, quem vai responder por aqueles trabalhadores, e sim o “gato”. Será que aquele que alicia tem possibilidade de dar condições de trabalho àquele funcionário, pagar o salário, assinar carteira, pagar os impostos? Para quem serve essa reforma?

OP - Pelo que foi colocado até agora da reforma, quais pontos podem ser objeto de maior questionamento por parte das categorias?

SÉRGIO - Além da terceirização, o negociado sobre o legislado pode trazer muitas consequências negativas porque o trabalhador brasileiro vai entrar na “mesa de negociação” de igual para igual com o negociador. Será que ele vai intermediar alguma coisa ou ele vai aceitar as condições impostas para permanecer no próprio emprego? Não tem acordo nenhum, não tem negociado, tem imposição. Todas as medidas visam a fragilização do trabalho, infelizmente. Eu não vejo nenhuma medida que eu diga ‘ah, vai ser benéfico para o trabalhador’. Até o controle da jornada de trabalho vai ser motivo de “negociação”. Se você tem o registro eletrônico, que é controlado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), isso também vai ser objeto de negociação porque pode vir um novo sistema, que está sujeito a fraudes com objetivo de burlar a legislação e dificultar ainda mais a verificação dessa jornada de trabalho pelas autoridades de fiscalização.

OP - As mudanças que os parlamentares estão votando em Brasília, da legislação trabalhista, prometem a criação de novos postos de trabalho em razão da crise econômica. O senhor acha que pode ter essa consequência?

SÉRGIO - Pode haver um aumento do emprego precarizado. O trabalhador contratado ser substituído pelo terceirizado, aumento das horas de trabalho... Se o objetivo mesmo fosse aumentar o emprego, era muito mais fácil se coibir a extrapolação da jornada, criando-se mecanismos de controle e fiscalização mais eficazes, e não você permitir a criação de novos meios alternativos de controle da jornada de trabalho. Eu, sinceramente, acho que pode acontecer esse aumento desse emprego precarizado, que é uma tragédia social para o País.

OP - Mesmo após décadas de CLT, ainda estamos muito longe de humanizar as relações de trabalho, de finalmente cumprir as leis?

SÉRGIO - É difícil porque a gente está vivendo um momento em que podemos perder várias conquistas alcançadas ao longo de 70 anos de CLT. Apesar de ter sido criada em 1943 pelo governo (Getúlio) Vargas, a CLT passou essas sete décadas sendo reformulada. Ela vem se adequando ao longo do tempo. Diversas normas que estão sendo colocadas hoje já foram objeto de mudança ao longo destes 70 anos. O que está acontecendo agora é que várias mudanças estão trazendo mais precariedade. É impossível ter um trabalho mais humanizado com mais precarização do trabalho. Elas apontam em direções opostas. Não tem como humanizar o trabalho se você está facilitando a precarização, aumentando a terceirização, você está criando condições para aumentar o trabalho escravo no Brasil, aumentar a jornada de trabalho. Deveríamos reduzir a carga de trabalho para se ter mais tempo com a família, para se ter mais tempo de lazer. Menos horas trabalhadas significam criação de emprego para mais pessoas. Aí, você vem com uma reforma que vai possibilitar o aumento da jornada de trabalho. Era para ser o inverso. Era para trabalhar no sentido de coibir a jornada extrapolada, a hora extra, como instrumento de criação de novas vagas de emprego. A humanização e precarização caminham em sentidos opostos.

OP - Essa precarização acaba gerando irregularidades no ambiente de trabalho, ou seja, à margem da legislação. Como a fiscalização tem atuado para coibir esse tipo de prática?

SÉRGIO - A fiscalização está sendo desmantelada ao longo do tempo. A gente tem um número cada vez menor de auditores fiscais em atividade no País. Estamos com cerca de 1,2 mil cargos vagos de auditores que se aposentaram ou morreram e o Estado brasileiro não realizou novos concursos para colocar esse número de volta de acordo com a demanda do País. O número de cargos criados por lei para auditores fiscais do trabalho está em torno de 3,6 mil, e, hoje, estamos com cerca de 2,4 mil para o Brasil inteiro. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) diz que o número ideal seria em torno de 8 mil auditores. Nós temos uma defasagem cada vez maior de profissionais que fiscalizam e protegem o direito do trabalhador, e isso dificulta muito.

OP - No primeiro trimestre de 2017 o Brasil atingiu 14 milhões de desempregados. Esse crescimento do desemprego pode impulsionar a quantidade de trabalhadores escravizados no País?

SÉRGIO - O trabalho escravo é baseado num tripé. Você tem todo esse exército de vulneráveis, de trabalhadores desempregados e sem qualificação profissional, além do sentimento de impunidade e a omissão do Estado. Esses três fatores contribuem para o trabalho escravo contemporâneo. Recentemente, um juiz disse que se colocasse uma placa “precisamos de escravos” apareceria ali uma fila de trabalhadores. Esse exército de pessoas em condições de vulnerabilidade social total é o ambiente propício para a atuação dos maus empregadores. E aí você junta com esse sentimento de impunidade, com a deficiência da fiscalização, com a diminuição no número de auditores no País...

OP - O que caracteriza o trabalho escravo?

SÉRGIO - No Brasil, o trabalho escravo está definido no artigo 149 do Código Penal. Ele não se caracteriza por um conjunto de infrações trabalhistas, ele é mais do que isso. Caracteriza-se por um conjunto de situações que afrontam a dignidade do ser humano. O artigo 149, quando foi alterado em 2013, colocou quatro situações objetivas: trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e trabalho degradante. São esses quatro tipos. Só que a maioria deles, a maior parte dos resgates, é na modalidade do trabalho degradante. E o que é o trabalho degradante? É aquela situação em que o trabalhador é colocado em situações precárias de vida e de trabalho. Sem uma alimentação saudável, sem água potável. No meio rural, às vezes, o trabalhador é obrigado a beber água onde o animal bebe, vive em barracos, sem energia elétrica, sem instalações sanitárias, sem cama de proteção individual... Eu vi várias vezes, aqui no Ceará, trabalhadores vivendo embaixo de pés de cajueiros, ou então abarrotados em um pequeno quarto. Essa superlotação é comum. É uma situação que agride o ser humano enquanto pessoa, ele é explorado como coisa. Ele perde a sua dignidade. Antes, se pensava o trabalho como escravo apenas quando se limitava o direito de ir e vir. Hoje é muito mais que isso. O principal bem jurídico que está sendo defendido é a dignidade. Antes era a liberdade. A dignidade abrange tudo isso.

OP - Há essa consciência, por parte desses trabalhadores, de que estão sendo escravizados? Qual a reação deles após o resgate?

SÉRGIO - Existem várias situações. Há algumas em que o trabalhador se reconhece como trabalhador escravizado. Quando existem as denúncias, o trabalhador se sente protegido, ele sente sua dignidade e cidadania resgatada e isso é bem claro. Em outras situações, em que não ocorre a denúncia, ele só vai perceber que está sendo superexplorado quando a fiscalização chega e é esclarecida a situação em que ele está vivendo. Então, ele começa a perceber o quanto estava sendo explorado pelo empregador e já muda de lado. Em regiões onde geralmente não têm denúncias, depois que surge a primeira começam a estourar outras. Essa conscientização do trabalhador é necessária.

OP - O que acontece com esse empregador após o resgate dos trabalhadores?

SÉRGIO - Você tem as medidas administrativas que são realizadas e exigidas pela fiscalização do trabalho. A primeira coisa é suspender temporariamente aquela atividade. É feito o procedimento de regularização dos trabalhadores, resgate da cidadania com a emissão de carteira de trabalho, pagamento das verbas rescisórias acompanhadas pela equipe de fiscalização, emissão de seguro desemprego especial e a constatação das infrações onde é feito um relatório e enviado para os órgãos fiscalizadores.

OP - Números divulgados no ano passado mostram o Ceará na quarta colocação no ranking nacional entre os Estados onde mais se resgatou trabalhadores em 2015. Como estão esses números nesse ano?

SÉRGIO - Em 2016, a gente viveu um ano atípico. A fiscalização do trabalho praticamente parou no Brasil inteiro por reivindicação da campanha salarial, por melhores condições de trabalho, por novos concursos e as fiscalizações foram reduzidas drasticamente. Aqui no Ceará, realizamos apenas três operações e resgatamos apenas três trabalhadores na área urbana aqui da Região Metropolitana de Fortaleza.

OP - Nesses locais onde o índice de trabalhadores resgatados é alto é porque há uma maior incidência dos casos ou porque a fiscalização é mais atuante?

SÉRGIO - Tem as duas coisas. No ano passado tivemos três resgatados aqui no Ceará. Será que é porque diminuiu o número de trabalhadores sendo explorados ou porque não houve fiscalização? Como foi um ano atípico por falta de fiscalização, foi por conta disso (falta de fiscalização). Não houve redução. Então, não podemos afirmar que houve redução. A gente tem uma situação no Ceará muito difícil em relação ao número de auditores capacitados para atuar nessa área, e com número de auditores cada vez menor. Na região do Cariri, por exemplo, onde temos uma gerência no Crato, nós temos um auditor que é chefe e exerce atividade interna responsável por 57 municípios; na região de Sobral, nós temos um auditor também que é chefe, responsável por mais de 50 municípios. Se você não tem a presença do Estado, não tem como proteger os trabalhadores. A omissão do Estado é uma das causas do trabalho escravo hoje contemporâneo.


OP - Como a fotografia exerce esse papel de denúncia social?

SÉRGIO - O meu envolvimento com a fotografia se dá a partir do momento em que eu começo a participar dessas operações de combate ao trabalho escravo na região amazônica, no Pará, e no Maranhão. Esses trabalhadores são invisíveis e a fotografia exerce essa função de tornar visível o invisível, mostrar que aqueles trabalhadores vivem naquela situação e precisam ser protegidos. É uma forma de levar para a sociedade que ainda existem seres humanos em condições de trabalho do século XIX, enquanto que os empregadores vivem as benesses do século XXI. E a imagem é muito forte. A imagem consegue sensibilizar muito mais porque as pessoas, pela própria característica da fotografia — na relação imagem-realidade —, que mostra a situação que aquele trabalhador está sendo colocado. As condições são muito duras e a imagem vai sensibilizar a sociedade, autoridades, legisladores, empregadores, para que a gente possa mudar um pouco essa realidade, levar um pouco de melhoria para as condições de trabalho vividas desses trabalhadores. Quando você vai discutir com o empregador aquela situação daquele empregado, se você mostra a imagem de uma fotografia, aquilo fica incontestável. A fotografia exerce esse poder de conscientização. É melhor do que qualquer palavra porque não tem argumento contra aquela imagem. A imagem diz tudo, aquele trabalhador está sendo transformado em coisa. Como o empregador vai negar aquela situação que foi encontrada, fotografada dentro do seu estabelecimento?


Pergunta do leitor Rafael Pimenta, estudante universitário

RAFAEL - O aumento da flexibilidade empregatícia da reforma trabalhista, como o acordo se sobrepor à legislação e a aprovação da lei da terceirização, não é uma situação preocupante por dar ainda mais poder ao empresário sobre o empregado?

SÉRGIO - O que vai ocorrer é a precarização do trabalho, o enfraquecimento do trabalhador perante seu empregador. O trabalhador perde o poder. Você prolongar o contrato de trabalho temporário, você permitir a extrapolação além do que já é permitido, você dividir ainda mais as férias, a nova lei está permitindo até trabalho de grávidas em atividades insalubres. Onde vamos parar? A reforma é muito prejudicial aos trabalhadores como um todo.


Perfil

Formado em economia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Sérgio Carvalho é auditor fiscal do trabalho desde 1995. Ele viajou pelo Brasil fiscalizando as condições de empregabilidade. Tanto no campo quanto na cidade, Carvalho flagrou condições desumanas com que trabalhadores eram tratados em vários postos de trabalho. Foi aí que se tornou fotógrafo, de forma a registrar as péssimas condições nas quais as pessoas eram obrigadas a produzir. O auditor acabou publicando livros com fotografias de trabalhadores em regime de escravidão.


Rural vs Urbano

A partir de 2013, o número de trabalhadores resgatados em regime de escravidão no meio urbano superou os do meio rural.

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