Extra, 22/05/17
O rato pariu uma montanha
Por
Felipe Pena
Tem que
manter isso aí, viu?
São onze
horas da noite e um presidente da república está comprando o silêncio de um
ex-deputado. O encontro acontece no porão do palácio, após o interlocutor
ultrapassar a cancela de segurança usando um nome falso como senha. O
interlocutor é um dos maiores empresários do país e carrega um gravador no
bolso.
Tem que
manter isso aí, viu?
O
empresário informa ao presidente que faz pagamentos mensais ao ex-deputado e a
um doleiro responsável por suas operações financeiras, ambos presos em uma
carceragem de Curitiba. Também conta que comprou dois juízes e conseguiu
infiltrar um procurador na equipe do ministério público que o investiga.
Ótimo! –
responde o presidente.
O
empresário precisa resolver pendências junto ao Conselho Administrativo de
Defesa Econômica, onde trava batalha contra uma estatal sobre o preço do gás
que é fornecido à sua empresa. Está disposto a pagar 5% de propina. Pergunta
quem pode ajudá-lo. O presidente indica um deputado cujo gabinete funciona no
Palácio do Planalto.
Posso
falar tudo com ele? – pergunta o empresário.
Pode. Ele
é da minha estrita confiança. – responde o presidente.
O
empresário deixa o palácio após conversar 36 minutos com o presidente. O
gravador registra o começo e o fim do diálogo marcando o horário da rádio CBN.
Não há cortes, não há edições.
Joesley
Batista, dono do grupo JBS, sabe o poder do material que tem nas mãos. Nos
próximos dias, ele negociará o acordo de delação premiada que acabará com o
governo golpista de Michel Temer. Também levará à lona o senador Aécio Neves,
articulador dos primeiros movimentos do golpe, logo após perder as eleições
presidenciais de 2014; e o deputado Rodrigo Rocha Loures, o tal homem da
estrita confiança do presidente.
Agentes
da polícia federal seguirão o deputado pelas ruas de São Paulo, onde ele
receberá uma mala com 500 mil reais de propina cujas notas estão marcadas.
Rocha Loures será filmado durante o trajeto.
Outra
equipe seguirá o primo de Aécio Neves, Frederico Medeiros, que também recebe
500 mil reais. O senador tem um motivo claro para a escolha de Frederico:
"tem que ser um que a gente mata eles antes dele fazer delação".
Frederico
continua vivo.
A
carreira de Aécio vira pó.
No dia 17
de maio de 2017, às sete e meia da noite, o jornalista Lauro Jardim revela toda
a história. Faz exatamente um ano que Temer demitiu o copeiro do Palácio do
Planalto, José da Silva Catalão. Agora é o próprio Michel que assina o aviso
prévio.
Na
cadeia, o ex-deputado Eduardo Cunha olha para a imagem de Temer na TV e
lembra-se da frase de Danton quando ia para guilhotina: "O que me consola,
Robespierre, é que atrás de mim virá você".
No dia
seguinte, 18 de maio, o presidente convoca a imprensa para dizer que não vai
renunciar. Inconscientemente, repete o gesto de Richard Nixon, quatro décadas
antes. Está nervoso, tenso. Não contesta as informações, apenas parte para o
ataque.
Ao ouvir
a gravação, Temer minimiza seu conteúdo e diz que a montanha pariu um rato. Mas
parece o contrário.
O rato
pariu a montanha. E é uma imensa montanha de crimes.
O
Sindicato dos Jornalistas de MG decreta o dia 18 de maio como "dia da
liberdade de imprensa em Minas Gerais" por causa da prisão da irmã de
Aécio, Andréa Neves, que perseguiu diversos profissionais durante os governos
da famiglia no estado. Frederico, o primo, também é preso. O senador é suspenso
do cargo.
Vejo
isentões e coxinhas envergonhados em todos os lugares. Fotos de artistas e
jogadores de futebol ao lado de Aécio desaparecem das redes sociais. Lembro-me
dos motivos que os levaram às ruas para pedir o golpe.
Nunca foi
pela corrupção.
Foi ódio
de classe mesmo. Com pitadas de misoginia.
As
pedaladas serviram apenas como pretexto para derrubar Dilma. Nunca serviram
para condenar Temer, que fez o mesmo. Talvez porque a presidenta fosse vista
constantemente numa bicicleta e Temer nunca tenha andado em outro veículo que
não fosse um carro importado.
Mas agora
é diferente. O crime existe e foi gravado. Os ratos começam a abandonar a
montanha. Leio o 'Discurso sobre a servidão voluntária', de Étienne
La Boétie, escrito na primeira metade do século XVI. O jovem Étienne diz que o
tirano só governa porque há pessoas que aceitam ser governadas por ele, mas
quando esta obediência voluntária cessa, cessa também o poder do tirano.
Os
coxinhas se cansaram do tirano.
Não tenho
a mesma certeza sobre Sérgio Moro.
Nos três
anos em que a operação lava jato foi comandada por Moro e a república de
Curitiba, nenhum tucano foi atingido. E, entre os caciques do PMDB, apenas
Eduardo Cunha foi preso. No final do ano passado, Cunha fez 21 perguntas a
Michel Temer. Elas antecipariam em muitos meses a sua queda, mas Sérgio Moro
barrou todas. O dono da JBS procurou o MP de Brasília porque talvez acreditasse
que Moro, mais uma vez, blindaria Aécio e Temer. E, principalmente, não
deixaria que o primo e a irmã do senador, que não têm foro privilegiado, fossem
presos.
Na
quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal julga o recurso do presidente para
suspender o processo. Logo saberemos o que mudou no grande acordo nacional.
Podemos apostar na queda do tirano que alterou o currículo do ensino médio por
decreto, sem consulta à população? Podemos apostar na queda dos que defendem o
neofascismo do projeto Escola Sem Partido? Podemos apostar no fim das
contrarreformas que retiram direitos dos trabalhadores?
Sim e
não.
O tirano
cai, mas o golpe continua.
Este é o
país que liberta um branco milionário condenado por corrupção e mantém preso um
negro pobre condenado por porte ilegal de pinho sol.
Este é o
país que usa uma projeção de PowerPoint como prova.
Este é o
país do rato que pariu a montanha.
E só há
uma maneira de escalar:
Diretas
já!
Diretas!
Já!
*Jornalista
e escritor. Doutor em Literatura pela PUC, com pós-doutorado pela Sorbonne, é
autor de 15 livros.
"Para que as coisas permaneçam iguais,
é preciso que tudo mude.”
Folha.com, 19/05/17
Devemos obedecer a um governo ilegítimo?
Por
Vladimir Safatle
Devemos
obedecer a um governo ilegítimo? Devemos aceitar ordens de quem, de forma
explícita, se mostra capaz de servir-se do governo para impedir o funcionamento
da Justiça ou para fazer passar leis que contrariam abertamente a vontade da
maioria? Essas perguntas devem ser lembradas neste momento. Pois a adesão
pontual do povo a seu governo não se dá devido à exigência da lei, mas devido à
capacidade dos membros do governo de respeitarem a vontade geral.
Essa
capacidade está definitivamente quebrada. Não. Na verdade, ela nunca existiu.
Se quisermos ser mais precisos, devemos dizer que apenas se quebrou a última de
todas as aparências. O desgoverno Temer não consegue nem sequer sustentar uma
aparência de legitimidade. Cada dia a mais desse "governo" é uma
afronta ao povo brasileiro. O que nos resta é a desobediência sistemática a
todas as ações governamentais até que o "governo" caia.
Temer
entrará para a história brasileira não apenas como o primeiro vice-presidente a
ter conspirado abertamente contra sua própria presidenta até sua queda final.
Ele será lembrado como o primeiro presidente a ser pego operando diretamente
casos de tráfico de influência (o caso de seu antigo ministro da Cultura sendo
obrigado a liberar uma licença para viabilizar o apartamento de Geddel Vieira)
e de pagamento para silenciar presos.
Exatamente
no mesmo momento em que esse senhor exigia do povo brasileiro
"sacrifícios" ligados à destruição de condições mínimas de trabalho e
garantia previdenciária ele pedia ao dono da Friboi que continuasse a dar
mesada para presos ficarem calados. O mesmo que entregará o país com 14 milhões
de desempregados e mais 3,6 milhões de pobres garantiu lucros recordes para os
bancos brasileiros no último trimestre.
Agora,
alguns acham que o Brasil deve seguir então "os procedimentos legais"
e empossar o investigado Rodrigo Maia para que convoque uma eleição indireta
para presidente.
De todos
os disparates nesta República oligárquica, este seria o maior de todos. Em um
momento como o atual, o país não deve recorrer a leis claramente inaceitáveis,
ainda mais se levarmos em conta a situação em que vivemos. Afinal, como admitir
que um presidente seja escolhido por um Congresso Nacional de indiciados e
réus, fruto de um sistema incestuoso de relações entre casta política e
empresariado que agora vem à tona?
Uma das
bases da democracia é não submeter a soberania popular nem a decisões
equivocadas feitas no passado, nem a instituições aberrantes. O povo não é
prisioneiro dos erros do passado, mas sua vontade é sempre atual e soberana.
Ele pode desfazer as leis que ele mesmo fez e destituir instituições que se
mostram corrompidas.
Por essa
razão, o único passo na direção correta seria a convocação extraordinária de
eleições gerais, com a possibilidade de apresentação de candidaturas
independentes, para que aqueles que não se sentem mais representados por
partidos possam também ter presença política.
Que o
Brasil entenda de um vez por todas: em situações de crise, não há outra coisa a
fazer do que caminhar em direção ao grau zero da representação, convocar
diretamente o povo e deixá-lo encontrar suas próprias soluções. Toda democracia
é um "kratos" do "demos", ou seja, o exercício de uma força
("kratos") própria ao povo em assembleia. Essa é a única força que
pode abrir novos horizontes neste momento.
Pois que
não se enganem. Como já dissera anteriormente neste espaço, Temer não existe.
Esse operador dos escaninhos do poder, acostumado à sombras e aos negócios
escusos, sempre foi politicamente ninguém.
Quem
governa efetivamente é uma junta financeira que procura reduzir o Estado
brasileiro a mero instrumento de rentabilização de ativos da elite
patrimonialista e rentista. A mesma junta que impõe ao país
"reformas" que visam destruir até mesmo a possibilidade de se
aposentar com uma renda minimamente digna. Ela tentará continuar no governo
independentemente de quem seja o manobrista no Palácio do Planalto. Ela tentará
o velho mote: "Tudo mudar para que nada mude". Mas, para isso,
precisará deixar o povo afastado de toda decisão política.
*Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo).
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