sábado, 7 de janeiro de 2017

Quando o Estado age como o PCC



Por aqui, presídios privatizados frequentam o discurso de políticos da direita, especialmente tucanos. Aécio Neves, em 2013, saudou a construção de uma prisão nesses moldes em Ribeirão das Neves (MG) como "exemplo de eficiência, planejamento e ousadia". No mesmo ano, o governo Alckmin anunciou plano para penitenciárias privadas.

Como sempre, são os promotores de projetos comprovadamente reprovados. Em agosto de 2016, o Departamento de Justiça dos EUA recomendou o fim do experimento em penitenciárias federais. A justificativa é que cadeias privatizadas "não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não representam economia substancial e não mantêm os mesmos patamares de segurança" das tradicionais.

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Folha.com, 6/1/17


Não foi acidente, presidente



Por Bernardo Mello Franco




Depois de três dias em silêncio sepulcral, o presidente Michel Temer decidiu falar sobre o massacre no Amazonas. Ele classificou a matança de 56 detentos como um "acidente pavoroso". A declaração apavorou especialistas que se dedicam a estudar as prisões brasileiras.

Após se omitir sobre uma chacina de repercussão mundial, Temer tropeçou na própria língua. Segundo o "Houaiss", a definição mais comum de acidente é algo "casual, inesperado, fortuito". O banho de sangue em Manaus passou longe das três coisas.

"A fala do presidente foi infeliz, absurda e irresponsável", me disse a diretora da Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu. "A palavra acidente dá a ideia de algo imprevisto. Este massacre era uma tragédia anunciada", acrescentou.

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, subordinado ao Ministério da Justiça, já havia alertado o governo sobre a situação. Um relatório de janeiro de 2016 descreve as cadeias amazonenses como barris de pólvora prestes a explodir.

"A ação da administração penitenciária é bastante limitada e omissa diante da atuação de facções criminosas", diz o texto. "Os presos basicamente se autogovernam nas unidades prisionais, afetando a segurança jurídica e, mais grave, o direito à vida das pessoas", prossegue.

O relatório oficial denuncia um "quadro sistemático de tortura", aponta o risco de rebeliões e enumera problemas causados pela privatização das penitenciárias.

Ao comentar a matança, Temer argumentou que "o presídio era terceirizado e privatizado e, portanto, não houve uma responsabilidade objetiva, clara e definida dos agentes estatais". Para a diretora da Human Rights Watch, o presidente perdeu outra chance de ficar calado.

"O Estado não pode abrir mão da responsabilidade sobre os presos sob sua custódia", disse Canineu. "Na verdade, quem mandava nas cadeias não era a iniciativa privada, e sim as facções criminosas", concluiu.

​Bruno Júlio e Michel Temer







Folha.com, 6/1/17



Temer escolhe assessores entre haters da rede?




Por Leonardo Sakamoto




''Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana.''

Na sua opinião, essa declaração sobre os presos mortos no Massacre de Manaus foi dada por:

a) Um hater da internet que, na opinião dos vizinhos, é um ''homem de bem'', ''pai carinhoso'', ''trabalhador exemplar'', ''pagador de impostos'', ''pessoa tranquila'', mas que, na frente do computador, torna-se capaz de matar com as próprias mãos com requintes de crueldade;

b) Um perfil falso de rede social criado para apoiar políticos ou movimentos que querem se vender como novos salvadores da pátria, mas defendem a tradição, a família e a propriedade, tentando mostrar que o problema do mundo é a defesa dos direitos humanos;

c) Um miliciano de um grupo que tomou uma área na periferia de uma grande cidade das mãos dos traficantes e obriga, com base em muita violência, o comércio e a população a pagarem por proteção (proteção contra ele próprio, no caso);

d) Um apresentador de TV ou um locutor de rádio que ganha dinheiro explorando a história de assassinatos e agressões, difundindo a narrativa de que a solução para a violência é mais violência e criando uma sociedade do medo sob a justificativa de ''mostrar a realidade'';

e) O secretário nacional de Juventude, responsável por elaborar, monitorar e implantar políticas de promoção da dignidade dos mais jovens, um cargo que, por natureza, deve trabalhar ideias novas e transpirar esperança.

A resposta é a alternativa ''e''.

A declaração foi dada por Bruno Júlio (PMDB), secretário nacional de Juventude. Aliás, ex-secretário, pois as declarações dadas ao blog Panorama Político, do jornal O Globo, nesta sexta (6), tornaram insustentável a sua permanência no cargo, que foi entregue a Michel Temer.

É inacreditável, mas não passa um dia sem que alguma autoridade dê uma opinião estapafúrdia sobre o caso. Como José Melo, governador do Amazonas justificando as mortes, dizendo que ''não tinha nenhum santo''. Ou Michel Temer, presidente da República afirmando que foi um ''acidente pavoroso''.

Isso não é engano. Na prática, todos sabem que, ao dizer essas aberrações, externam o que uma boa parcela da população realmente pensa sobre isso. Alguns, como Bruno, até parecem acreditar realmente nisso.

O ponto é que quem ocupa um cargo público deve defender a lei e não fazer proselitismo com quem não dá a mínima para ela. O Estado não deve agir com os mesmos métodos de bandidos, mas também seus representantes não podem adotar discursos que insultem a dignidade humana.

Abrir uma exceção a isso é decretar a falência do Estado de direito. E, repito, isso não é defesa de bandido, mas de nós mesmos. Porque, sem isso, será a regra do mais forte.

Parte da população, em momentos de comoção, feito uma horda desgovernada, pede sangue. Afinal de contas, ''aquele bando de bandidos não são seres humanos porque desrespeitaram a lei''. E mesmo ''os que não mataram ou estupraram, matariam se pudessem'', não é mesmo? ''Devem apodrecer por lá''.

Tenho medo desse ponto de vista. Ele está presente em turbas ensandecidas que ignoram a lei e fazem Justiça por conta própria, não raro matando inocentes. Mas também em uma população com tanto medo de si mesma que acaba por ignorar as leis e se guiar por discursos que prometem o impossível: garantir a paz promovendo a guerra. Pois, no final das contas, essa guerra com ares de inquisição se estenderá a todos, sem exceção. Daí, ou você está do lado deles ou contra eles.

O que me lembra sempre de Oscar Wilde: ''Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe. O segundo de papa. O terceiro de povo''.

Em tempo, se você chutou ''a'', ''b'', ''c'' ou ''d'' no teste, não duvido que também tenha acertado. O que é desesperador.







Folha.com, 5/1/16


Quando o Estado age como o PCC



Por Vladimir Safatle




"Ali não tinha nenhum santo." Foi com tal sentença que o governador do Amazonas veio a público comentar o massacre que ocorreu em prisão de Manaus. De fato, santo lá não havia, como, ao que tudo indica, não há em nenhum outro lugar do mundo sublunar.

Os presidiários não são santos, você também não é, nem eu e muito menos o senhor governador.
Se estivéssemos em uma sociedade de santos, não haveria necessidade de justiça, nem mesmo de governo.

Se existe direito, justiça e governo é porque aqui também, ou seja, fora do presídio, não há nenhum santo, há seres humanos com suas trajetórias erráticas e seus acordos precários. A justiça é uma construção humana para lidar com humanos.

Por isso, é possível que a frase do senhor governador quisesse dizer outra coisa. Talvez algo como: "Quem estava lá era sub-humano, não há porque estarmos concernidos com suas mortes". Essa é uma estratégia que os governos brasileiros se eximem em implementar desde há muito, impulsionados por uma parcela da própria população.

Trata-se de espoliar massas inteiras de sujeitos de qualquer forma de humanidade. Se eles morrem, não haverá nem nomes nem histórias. Haverá apenas números: 60 presos mortos. Você nunca saberá quem são, se eles estavam lá por assassinar a ex-mulher, o filho e seus parentes ou por ter vendido meia dúzia de cigarros de maconha.

Você nunca verá seus rostos. Até porque, desde que entraram na cadeia, eles já estavam desaparecidos, eles já não existiam mais, dessubjetivados, prontos para uma morte indiferente patrocinada pelo Estado e aplaudida por "pessoas de bem".

Entender como o governo brasileiro funciona é entender como ele administra o desaparecimento e o direito de matar. Esta é sua verdadeira forma de governo.

Com uma mão ele massacra parte de sua população, com outra ele lembra, à outra parcela, que o medo espreita e que é necessário "ser ainda mais duro".

Matar esses "60 presos" é visto, no fundo, como um direito soberano do Estado, como foi um direito soberano matar "111 presos" no Carandiru sem que isso tenha gerado maiores consequências, sem que houvesse rastos.

Não, não foi uma luta de gangues o que produziu o massacre em Manaus, mas uma política deliberada e pensada de administração da morte, feita nas pranchetas da omissão, do descaso, da perpetuação de condições medievais e da cumplicidade. 

Então virão aqueles que aplaudem o ocorrido, seja com aplausos explícitos, seja com satisfação implícita. "Ali não tinha nenhum santo", dizem todos. Os que aplaudem sempre estiveram lá, no mesmo lugar, desde as execuções públicas medievais, as torturas públicas de escravos em fuga até os massacres policiais de hoje, com o mesmo rosto de "fizeram por merecer".

Desde tempos imemoriais eles repetem o mesmo raciocínio que confunde justiça e vingança, que acredita estar seguro quando submetido a um poder sem limites, que dirá "se você não faz nada, nada acontecerá contigo".

Mas o que você precisa fazer para ser preso no Brasil? Pouco mais de 10% dos presos brasileiros estão lá por homicídio (simples ou qualificado). Os outros 90% são pessoas que cometeram furtos e roubos de toda sorte, pichadores, pessoas que "desacataram" a autoridade e, principalmente, sujeitos com problemas ligados a drogas que não tiveram um bom advogado ou um sobrenome capaz de libertá-los.

Ou seja, em larga medida, pessoas que deveriam estar fora de presídios, cumprindo outra forma de pena – e estariam cumprindo se não fossem de classes sociais massacradas.

"Tem pena, leve para casa", grita a turba. Mas, sabe turba, não, não temos pena. Temos indignação, o que é algo totalmente diferente. 

Não queremos levar ninguém para casa, queremos que o Estado brasileiro saia do banditismo que muitos aplaudem. Já os gregos sabiam, ao menos desde "Antígona": retirar a humanidade daqueles que o Estado julga criminosos é a forma mais rápida de destruir o próprio Estado, de fazer do Estado outro criminoso. 

O Estado brasileiro age como o PCC, decidindo soberanamente quem irá viver e quem será deixado para morrer. Como ele espera julgá-lo?









Jornal GGN, 7/1/17


“Governo” Temer não tem tutano para enfrentar crise penitenciária



Por Eugênio José Guilherme de Aragão*




Com golpe ou sem golpe, um fato é certo: a crise do sistema penitenciário brasileiro vem de longe e não pode ser debitada exclusivamente à conta desse “governo” que se instalou no poder depois do afastamento maroto da Presidenta legitimamente eleita, Dilma Vana Rousseff. Mas outro fato também é inegável: o tal “governo” não tem minimamente condições de lidar com esse problema. A razão é simples: a crise não se resolve “no pau”, como querem os brucutus sob o comando de Alexandre Moraes, e nem com fiscalização dos administradores penitenciários por juízes, com poderes pretensamente delegados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como quer sua presidente, Ministra Carmen Lúcia.

Isso é bem Brasil pós-golpe. Quando surge uma crise que causa comoção pública, a solução proposta é simples: mais “pau”, seja na forma de violência bruta ou na forma de mais poder de polícia. Políticas públicas, nem pensar! Desqualificam-nas como “coisa de petista gastador e incompetente”. Também, pudera! Os órgãos que poderiam formular essas políticas ou foram liquidados, ou foram desempoderados, com a alocação dos seus recursos para outras áreas. Menos Estado só pode levar à incapacidade da gestão pública para prevenir tragédias como as que tiveram lugar no Amazonas e, agora, em Roraima.

Nesse contexto, não pode deixar de ser lembrada a brilhante ideia do Sr. Alexandre Moraes, de desviar os recursos do fundo penitenciário para o Plano Nacional de Segurança Pública, desafiando decisão do Supremo Tribunal Federal de agosto de 2015, que determinou a aplicação urgente desses recursos, para pôr cobro ao “estado de inconstitucionalidade” vigente nos presídios. Esse propósito foi, por sinal, reforçado em 26 de abril de 2016, por meio de acordo de cooperação técnica entre o CNJ e o Ministério da Justiça, assinado, respectivamente pelo Presidente do CNJ de então, Ministro Ricardo Lewandowski, e o Ministro da Justiça à época, que era este que ora lhes escreve. Nos termos do acordo, ainda vigente, compete ao CNJ avalizar qualquer aplicação dos recursos do fundo penitenciário, por via de nota técnica. Não há notícia de que o colegiado de controle tenha se manifestado sobre o pretendido desvio de finalidade. Mas isso é só um detalhe, como tudo no “governo” que se instalou no poder. E talvez a atual Presidente do CNJ nem esteja a par desse detalhe!

Mas, vamos lá. A reação governamental nestes dois episódios trágicos do descalabro administrativo em nosso sistema penitenciário foi vergonhosa. O Sr. Alexandre Moraes logo achou um meio de afastar de si o cálice de vinho tinto de sangue. Culpou, primeiro, o governo do Amazonas pelo “acidente” (o Sr. Michel Temer insistiu muito no uso dessa palavra) em Manaus e, depois, constatando que, ali, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) é administrado pela obscura empresa “Umanizzare”, preferiu colocar a tragédia na conta da iniciativa privada. Claro que a “Umanizzare” reagiu prontamente, advertindo, em nota pública, que a segurança do complexo não era sua atribuição contratual, que se restringiria, grosso modo, ao “catering” diário. A segurança, disse a empresa, era de competência do executivo estadual. O governador do Amazonas, por sua vez, adotou discurso cínico. Como a sacudir os ombros, declarou que “não tinha nenhum santo entre os presos mortos”.

No caso de Roraima, o trato mais ou menos burocrático foi o mesmo. Curiosamente não se ouviu um pio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, tão cúpida em defender o congelamento de recursos orçamentários para investimentos sociais para os próximos vinte anos diante da Comissão Americana de Direitos Humanos. Houve referências, pelo Ministério da Justiça, a recursos que seriam transferidos para os estados, destinados à construção de novas penitenciárias, como se isso resolvesse a situação de premência experimentada pelo sistema. A governadora declarou que havia solicitado, em novembro passado, o apoio do governo federal e o uso da Força Nacional em Roraima, em caráter de urgência, para fazer face aos sérios riscos que vinha enfrentando na gestão do sistema penitenciário local. O Sr. Alexandre Moraes, mais uma vez, tentou tirar o corpo fora e afirmou que nada havia sido solicitado para o sistema penitenciário e, sim, tão-somente, para a segurança pública. Que vexame! A governadora foi obrigada a tornar pública sua missiva ao Sr. Alexandre Moraes, bem como sua resposta negativa, dada por escrito (Aviso n.º 1636/2016-MJ). Mentira tem pernas curtas e o nariz de Pinóquio cairia bem ao “ministro da [in]justiça”.

É deplorável a atitude dos que insistem em ser nossos governantes, mesmo sem voto e apoio da sociedade. E não causa menos náuseas o comentário cínico do governador amazonense. Empurrar a responsabilidade para outros e sequer ser capaz de um ato de humanidade para com os entes queridos dos cerca de noventa brasileiros assassinados em Manaus e Roraima às vistas grossas do poder constituído é de uma covardia sem igual. É verdadeira atitude de “hit and run”, coisa de moleque que bate no carro alheio e sai fugindo. A opinião pública espera até agora um gesto de humildade do “governo”, reconhecendo sua falta e propondo a indenização dos familiares. Ou, será que vão deixar por isso mesmo, que nem o moleque que bate no carro alheio? Será que os familiares vão ter de invocar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que nem no caso de Urso Branco, de impacto bem menor? Deve ser lembrado ao “governo” – e a Sra. Flávia Piovesan, que aceitou decorar a Secretaria Especial de Direitos Humanos, bem como o embaixador de trinta e um anos de carreira, cheia de méritos próprios, Silvio Albuquerque, sabem muito bem disso – que, já agora, não há sequer necessidade de esgotamento dos recursos domésticos para provocar a Comissão em Washington. A repetição de tais tragédias de mesmo formato e dinâmica configura uma prática administrativa abusiva por parte do Brasil, que indica serem as vias judiciais e administrativas internas ineficazes (art. 46 da Convenção Americana de Direitos Humanos).

Aliás, convém lembrar ao Sr. Alexandre Moraes que, do ponto de vista da responsabilidade internacional do Estado brasileiro, é absolutamente irrelevante se a violação a direitos consagrados consuetudinariamente ou em tratados tenha partido do governo central ou de agentes de governos periféricos, como estados e municípios. Para o efeito de responsabilização, o Estado é um monólito e sua organização interna, unitária ou federativa, não interessa ao direito internacional. Aqui a Convenção Americana contém até uma cláusula expressa: o art. 28, em seu parágrafo (2), estabelece que “[n]o tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com sua constituição e suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção”. Em outras palavras: vire-se o governo federal para fazer os estados cumprirem com as obrigações internacionais assumidas pela diplomacia nacional! Transferir a culpa ao governo estadual pode até aliviar a consciência do chefe do grupo que se assenhorou do poder em Brasília, mas é tapar o sol com a peneira, pois nada resolve, do ponto de vista jurídico.

Quanto ao cinismo do governador do Amazonas, sequer mereceria comentários. O Sr. José Melo adotou a linguagem do esquadrão da morte. Para ele, bandido bom é bandido morto. Um Estado que faz da execução sumária de indefesos sob sua custódia um instrumento de política de contenção de crimes é mais criminoso do que aqueles que pretende punir, pois covardemente usa seu monopólio de violência contra quem não pode ladeá-lo. Não interessa se um cidadão cometeu crimes ou não: sua dignidade não é menor por isso e, se ele estiver em mãos do Estado, este é responsável por sua incolumidade. Ser ou não ser “santo” não é critério para medir a proteção a todas e todos devida. E José Melo, cassado em janeiro de 2016 pelo TRE-AM por denúncia de compra de votos nas eleições de 2014 e mantido temporariamente pelo mesmo tribunal dois meses depois, também não parece ter a santidade exigida para jogar a primeira pedra nos presos assassinados sob a custódia do Estado, por ele representado no Amazonas.

Incrível é que, em pleno século XXI, depois de treze anos de democracia inclusiva, coisas tão óbvias ainda tenham de ser ditas. Como regredimos! Como nos embrutecemos! Não que motins graves não tenham acontecido antes e mesmo durante os governos democráticos do passado. Mas a resposta foi outra. Ninguém tentou se safar. A responsabilidade foi prontamente assumida. Na Corte Interamericana se produziu um acordo que manteve a Penitenciária de Urso Branco sob observação por alguns anos. O Brasil se tornou parte do Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura, criou seu mecanismo doméstico de implementação e se submeteu à Subcomissão de Prevenção da Tortura. Enfim, os governos democráticos tinham consciência da dimensão do problema e se esforçaram no alinhamento com padrões internacionais de garantia de direitos.

Agora não. É um empurra-empurra de gentinha medrosa, comprovando a incapacidade desse “governo” de lidar com crises. Deveriam reconhecer que destroçaram a máquina administrativa que poderia dar respostas. Falam em construir mais prisões, o que soa como discurso infantil. Prisões não se constroem de um dia para outro e, portanto, não são uma resposta adequada à urgência vivida. Prisões são caras para serem mantidas e o governo federal pode até repassar recursos aos estados para a construção, mas se não os passar, também, para a gestão, é como se não fizesse nada. Há, no país, prisões novinhas, prontas e vazias por falta de dinheiro para colocá-las em funcionamento. O que se verifica é que, muito mais importante que novas unidades, é vital saber gerenciar as existentes. Nesse tocante estamos na Idade da Pedra.

Uma penitenciária não pode ser um depósito de gente pobre, feia e esquecida; não pode ser um tanque de decantação da merda social. O dever do Estado é prevenir novos crimes e isso só é possível com tratamento adequado aos que estão sendo investigados ou que foram condenados por ter sido demonstrada, “além de qualquer dúvida razoável”, a prática de crimes. Por tratamento adequado deve-se entender recuperar chances perdidas de reconhecer nesses indivíduos com dívidas na justiça cidadãos dignos, ensinando-lhes um ofício, dando-lhes educação mínima, oferecendo-lhes condições de curarem suas feridas na alma e, sobretudo, dar-lhes, depois, uma nova chance. Sem políticas públicas de inclusão social esses resultados nunca serão atingidos.

A crise aguda do sistema penitenciário deveria ser uma oportunidade para pensarmos sobre o modelo de sociedade que queremos. Facções, bandos e quadrilhas são instrumentos de um mercado informal paralelo rentável de drogas, manejados por aqueles que não têm chance no mercado formal e, por isso, ou se envolvem no crime, ou mantêm-se na sua miséria de sempre, com parquíssimas e penosas perspectivas de melhora. Claro que em todo grupo social existem, também, os conformados com sua condição de miseráveis e, portanto, sem vontade de resistir; mas existem, igualmente, os inconformados, cheios de justos ressentimentos e dispostos a “chutar o pau da barraca”. Torná-los conformados “na porrada” não resolve o problema de que padecem e sempre exporá a sociedade a rompantes violentos de uns e outros, cada vez mais numerosos, que não aceitam sua condição. Faremos como as avestruzes? Enterraremos nossas cabeças na terra e ignoraremos esse “lixo humano”? Para não sermos incomodados, preferiremos nos enclausurar entre muros altos e fios de alta tensão? O problema é que a maioria dos brasileiros não pode se dar esse luxo, nem sequer imaginar circular com seus cheirosos filhinhos em carros blindados ou helicópteros sobre os centros urbanos. Precisamos que todos vivam em segurança e com qualidade, senão os verdadeiramente encarcerados serão os que moram fora das penitenciárias e estas serão administradas pelos que vivem dentro delas, correndo soltos e organizados em facções, bandos e quadrilhas. Ninguém conseguirá mudar esse quadro se não olhar de frente para ele.

O fundo penitenciário tem recursos para iniciar a virada. Mas não confundamos política penitenciária com política de segurança pública, porque aquela é muito mais ampla do que esta. Precisamos de gestores penitenciários, de arquitetura penitenciária que tornem realidade o que se impõe na Lei de Execuções Penais, uma das mais progressistas no direito comparado, mas relegada à condição de ser “só lei”. Isso não se faz com juízes do CNJ criando mais uma instância de controle dos administradores, até porque inexiste norma que permita ao colegiado intromissão na atividade do Poder Executivo ou intervenção da jurisdição dos juízes das Varas de Execuções Penais. Não podemos usar a crise para dela “tirar uma casquinha” com palpites soltos e improvisados, a empoderarem mais ainda esse ou aquele ator do serviço público.

A casta judicial e a do ministério público são os maiores responsáveis, com seu cego punitivismo, pela tragédia que já há muito se anunciava: como as prisões não lhes dizem respeito, seguem entupindo-as com o “lixo humano” até o sistema enfartar. A saída da crise pressupõe, pois, mudança de atitude dos órgãos empenhados na persecução e jurisdição penais, carentes de uma política criminal que os faça priorizar alguns ilícitos sobre outros e não fingir que obedecem cegamente ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, sem distinção. Precisam ter consciência de que não é mais possível tolerar seu descaso diante da proporção de 80% dos presos sem condenação, no aguardo da justiça andar. Para dar conta de sua carga, não devem se refugiar na desculpa de que estão sobrecarregados. Juízes e membros do ministério público, no Brasil, mui bem remunerados, não têm horário de expediente controlado e nem sempre se ocupam oito horas diárias com seus processos. Que se mude seu método de remuneração e se pague por metas de produtividade, para vermos se os processos não andariam mais rápidos! Não se duvide de que isso seria capaz de mudar a cultura de trabalho e adequaria os agentes a orientações de instâncias superiores, até como meio de cultivar a economia processual. Deixariam de ser luminares, para efetivamente serem parte de uma engrenagem articulada que oferecesse aos cidadãos segurança jurídica.

Salta, porém, aos olhos que isso tudo só um governo legitimado pelo voto pode fazer, pois o grupo que se assenhorou do poder não tem tutano nem estofo para desafiar, com autoridade, o ambiente de sinecura[EdA1]  no judiciário. Até porque muitos deles não são melhores do que os assassinados, esperando, contudo, à diferença deles, em liberdade e aboletados em cargos públicos de alto escalão, que a justiça, em seu passo de cágado, os chame para pagar por seus pecados. Ficarão, até serem removidos de sua situação de ilegitimidade, a arrumar desculpas para seu fracasso, usando a pura negação da responsabilidade, a sugestão aleatória de medidas decorativas, o preconceito social contra os encarcerados ou o cinismo bandido de quem acha que os mortos não são santos.



*Subprocurador-Geral da República e Professor Adjunto da Universidade de Brasília, foi Ministro de Estado da Justiça no governo legítimo de Dilma Vana Rousseff.

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