CartaCapital,
, 16/01/17
Encarceramento em massa: ineficaz, injusto e antidemocrático
Embora muito se fale das consequências do neoliberalismo no plano econômico – que, nos países anglo-saxões, significou a desregulamentação das atividades de interesse público, as public utilities, e, na Europa, a transformação de serviços públicos antes sob a responsabilidade do Estado em atividades privadas, porém, regulamentadas –, há uma outra dimensão do Estado neoliberal que precisa ser observada, sobretudo nas Américas: a construção de um Estado autoritário e punitivista.
A ampliação do direito penal como instrumento de controle social, flexibilizando ou mesmo subtraindo os direitos do acusado – ou daquele que é perseguido pela justiça penal –, ocorre em várias partes do mundo por diferentes razões.
Aqui, no continente americano, tal fenômeno está intrinsecamente ligado à adoção do modelo neoliberal. O endurecimento das leis penais e a consequente superlotação das prisões é uma das engrenagens de um sistema que aprofunda a injustiça e a desigualdade e que, a fim de proteger os interesses das classes economicamente incluídas, segrega o pobre, então tipificado como bandido.
Como se sabe, na década de 1970, então sob o comando de Nixon, o governo norte-americano iniciou a articulação de um discurso de guerra às drogas que, mais tarde, se intensificou e se traduziu numa política de encarceramento em massa responsável por colocar os Estados Unidos no topo do ranking de aprisionados.
Em apenas dez anos, entre 1980 e 1990, o número de presos saltou de 514 mil para 1,2 milhão e continuou subindo nos anos 2000. Após a sanção da lei penal de 1994, pelo democrata Bill Clinton, o contingente de presos chegou a 2 milhões de pessoas, com predominância de negros e latinos.
A suposta “solução” para combater o tráfico de drogas e garantir maior segurança à sociedade foi importada pelo Brasil, que, da década de 1990 para cá, viu seu número de presos quadruplicar. Temos hoje a quarta maior população encarcerada do mundo, em termos absolutos, e a 34ª, em números relativos (para cada 100 mil habitantes).
Mais grave do que ocupar a quarta posição é o fato de que caminhamos para a primeira. Hoje são 608 mil presos e o número de detenções cresce 7% ao ano, segundo dados do último relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em 2015. O estudo aponta um crescimento de 161% no total de presos desde 2000, quando o País contabilizava 233 mil encarcerados. Se mantido esse ritmo, em 2022 computaremos 1 milhão de detentos.
Essa tendência e a persistência que se observa por aqui de manter e ampliar tal modelo – na última semana o presidente Michel Temer anunciou a construção de cinco novos presídios de segurança máxima – contrasta com as discussões e reformas feitas em várias partes do mundo. Até mesmo nos Estados Unidos se discutem maneiras de recuar e reverter o cenário atual, seja por razões humanitárias ou meramente econômicas.
Trata-se de uma política irracional, ineficiente e inviável economicamente, ainda mais em um país como o nosso, em grave crise e sem condições orçamentárias de arcar com o alto custo desse sistema. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cada preso custa ao Estado brasileiro 2,4 mil reais por mês. No Amazonas, onde 56 morreram no primeiro dia do ano, o custo é mais do que o dobro da média nacional, chegando a 5,1 mil reais por detento. A vultosa cifra em nada corresponde às condições em que vivem os aprisionados, classificadas pela ONU como “medievais”.
Ainda assim, aterrorizado diariamente pelo sensacionalismo midiático, o senso comum vê a prisão como única saída para conter a “bandidagem”, que ele acredita ser de alta periculosidade – o que não é verdade.
Aliás, aí está uma das maiores contradições do nosso sistema de justiça: o grosso da massa carcerária brasileira não é composto de assassinos perigosos, mas de pessoas sem antecedentes criminais, detidas por crimes não violentos e/ou de baixo impacto social, relacionados geralmente ao tráfico de drogas.
De acordo com uma pesquisa de 2012 do Núcleo de Estudos da Violência da USP, 62% dos presos em flagrante por tráfico em São Paulo portavam menos de 100 gramas de droga e 80,6% dos detidos eram réus primários. No Rio de Janeiro, conforme dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, 92,5% dos acusados de tráfico, em 2013, não portavam arma de fogo no momento do flagrante.
Recente relatório da organização Human Rights Watch aponta a Lei de Drogas, aprovada em 2006, como a principal responsável pelo incremento da população carcerária no Brasil. O documento mostra que, em 2005, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. Já em 2014, eram 28%.
Isso ocorreu devido à imprecisão da nova legislação, que não estabelece critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico. Assim, muitos usuários acabam sendo condenados como traficantes.
Por outro lado, entre 2005 e 2014, o número de homicídios aumentou 125%, enquanto o percentual de presos condenados ou acusados de homicídio nas prisões manteve-se na taxa de 10%. A imensa maioria dos crimes contra a vida, cerca de 90%, permanece, portanto, sem conclusão. O sistema de justiça prioriza o combate às drogas em detrimento de concentrar seus esforços em apurar homicídios, o que também atende à lógica de uma máquina punitivista que conta com a polícia mais letal do mundo.
O que há efetivamente no Brasil é a coexistência de um Estado de Direito instituído – que governa para os incluídos economicamente – e de um estado de exceção, ao qual estão submetidos os territórios ocupados pela pobreza. Essa aparente contradição entre a impunidade no campo dos homicídios e o endurecimento da punição aos crimes relacionados às drogas e crimes contra a propriedade, como roubos e furtos, corresponde, na realidade, ao interesse da elite incluída.
As vítimas dos casos sem conclusão – porque sem empenho efetivo de apuração por parte do poder público – são os pobres, pretos, moradores da periferia, muitas vezes, assassinados pelas próprias forças de repressão do Estado.
Temos uma estrutura judicial estabelecida não para realizar justiça de forma universal e democrática, mas sim para investigar os crimes que interessam aos incluídos, àqueles que estão, de fato, sob a proteção do Estado democrático de Direito.
O que mais causa espanto é a banalidade com que a questão é tratada. A ditadura, que foi um marco autoritário em nosso país, um regime típico de exceção, vitimou entre mortos e desaparecidos 434 pessoas, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade. As polícias militares estaduais matam 3,5 mil pessoas por ano.
Evidentemente que não se pode minimizar o que ocorreu durante a ditadura, um período amargo da nossa história. No entanto, quando se afirma que hoje há um grau muito maior de liberdades e garantias individuais do que naquele período, essa afirmação é bastante relativa, já que esses direitos não foram universalizados. As classes incluídas certamente usufruem dessa liberdade, mas os mais pobres continuam tendo seus direitos básicos sistematicamente subtraídos pelo Estado.
A principal mudança entre o momento atual e a ditadura não foi a garantia de liberdade e o acesso ao direito, mas a escolha do inimigo. Enquanto na ditadura o inimigo – elemento chave para a conformação do estado de exceção – era o militante comunista, que poderia estar inserido em qualquer classe social, hoje, o inimigo está socialmente localizado: é o pobre.
O instituto da prisão provisória é outro mecanismo que vem sendo largamente utilizado como instrumento de controle social. Segundo o já citado relatório do Infopen, em 2014, quatro em cada dez presos eram provisórios, ou seja, estavam detidos sem terem recebido uma sentença de primeiro grau. O documento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania relata ainda que 72% dos presos por tráfico no Rio, em 2013, ficaram detidos durante o processo e que, após o julgamento, menos da metade deles, apenas 45%, foram condenados.
Somando-se aos presos provisórios aqueles detentos cujos processos não foram concluídos, chega-se a quase dois terços da população carcerária. Ao contrário do que se pensa, entre 37% e 50% dos presos provisórios ou serão inocentados ou receberão penas de reclusão inferiores ao tempo que ficaram privados de liberdade. Isso significa que cerca de 20% dos presos estão presos injustamente.
Discutir penas e sanções alternativas para aqueles que não praticaram crime grave e violento e desbanalizar o uso da prisão provisória – que deve ser usada somente dentro dos parâmetros determinados pela Constituição – são medidas essenciais para que as injustiças, as carnificinas e toda a desumanidade associada à realidade das prisões brasileiras não se perpetue.
É preciso desmitificar a punição. Não aprisionar não significa não punir. Há mecanismos muito mais eficientes, baratos e adequados para responsabilizar aquele que comete um delito não violento.
A política de encarceramento, definitivamente, não pode ser considerada produto do Estado democrático, inclusive porque contradiz a ideia de um Estado de direito universal. É um erro no plano político, no plano moral e no plano orçamentário-administrativo.
Superlotar as prisões de jovens pobres, que não representam perigo real para a sociedade, não só não é efetivo para a redução da criminalidade como fatalmente produzirá ainda mais conflitos, mais injustiça e mais violência.
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