segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Encarceramento em massa: ineficaz, injusto e antidemocrático






CartaCapital, , 16/01/17



Encarceramento em massa: ineficaz, injusto e antidemocrático




Por Pedro Estevam Serrano




O ano de 2017 começa trágico no Brasil que, em menos de 15 dias, soma mais de 100 mortos em seus presídios. Guerra de facções, superlotação, condições degradantes de encarceramento ou quaisquer outras razões que possam ser apontadas como causas das chacinas a que temos assistido, o fato é que se trata de uma catástrofe anunciada, relacionada muito menos a fatores pontuais, do que à desigualdade histórica sobre a qual está fundamentado o modelo de sociedade que construímos. 

Embora muito se fale das consequências do neoliberalismo no plano econômico – que, nos países anglo-saxões, significou a desregulamentação das atividades de interesse público, as public utilities, e, na Europa, a transformação de serviços públicos antes sob a responsabilidade do Estado em atividades privadas, porém, regulamentadas –, há uma outra dimensão do Estado neoliberal que precisa ser observada, sobretudo nas Américas: a construção de um Estado autoritário e punitivista.

A ampliação do direito penal como instrumento de controle social, flexibilizando ou mesmo subtraindo os direitos do acusado – ou daquele que é perseguido pela justiça penal –, ocorre em várias partes do mundo por diferentes razões.

Aqui, no continente americano, tal fenômeno está intrinsecamente ligado à adoção do modelo neoliberal. O endurecimento das leis penais e a consequente superlotação das prisões é uma das engrenagens de um sistema que aprofunda a injustiça e a desigualdade e que, a fim de proteger os interesses das classes economicamente incluídas, segrega o pobre, então tipificado como bandido.

Como se sabe, na década de 1970, então sob o comando de Nixon, o governo norte-americano iniciou a articulação de um discurso de guerra às drogas que, mais tarde, se intensificou e se traduziu numa política de encarceramento em massa responsável por colocar os Estados Unidos no topo do ranking de aprisionados.

Em apenas dez anos, entre 1980 e 1990, o número de presos saltou de 514 mil para 1,2 milhão e continuou subindo nos anos 2000. Após a sanção da lei penal de 1994, pelo democrata Bill Clinton, o contingente de presos chegou a 2 milhões de pessoas, com predominância de negros e latinos.

A suposta “solução” para combater o tráfico de drogas e garantir maior segurança à sociedade foi importada pelo Brasil, que, da década de 1990 para cá, viu seu número de presos quadruplicar. Temos hoje a quarta maior população encarcerada do mundo, em termos absolutos, e a 34ª, em números relativos (para cada 100 mil habitantes).

Mais grave do que ocupar a quarta posição é o fato de que caminhamos para a primeira. Hoje são 608 mil presos e o número de detenções cresce 7% ao ano, segundo dados do último relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em 2015. O estudo aponta um crescimento de 161% no total de presos desde 2000, quando o País contabilizava 233 mil encarcerados. Se mantido esse ritmo, em 2022 computaremos 1 milhão de detentos. 

Essa tendência e a persistência que se observa por aqui de manter e ampliar tal modelo – na última semana o presidente Michel Temer anunciou a construção de cinco novos presídios de segurança máxima – contrasta com as discussões e reformas feitas em várias partes do mundo. Até mesmo nos Estados Unidos se discutem maneiras de recuar e reverter o cenário atual, seja por razões humanitárias ou meramente econômicas.
 
Trata-se de uma política irracional, ineficiente e inviável economicamente, ainda mais em um país como o nosso, em grave crise e sem condições orçamentárias de arcar com o alto custo desse sistema. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cada preso custa ao Estado brasileiro 2,4 mil reais por mês. No Amazonas, onde 56 morreram no primeiro dia do ano, o custo é mais do que o dobro da média nacional, chegando a 5,1 mil reais por detento. A vultosa cifra em nada corresponde às condições em que vivem os aprisionados, classificadas pela ONU como “medievais”.

Ainda assim, aterrorizado diariamente pelo sensacionalismo midiático, o senso comum vê a prisão como única saída para conter a “bandidagem”, que ele acredita ser de alta periculosidade – o que não é verdade.

Aliás, aí está uma das maiores contradições do nosso sistema de justiça: o grosso da massa carcerária brasileira não é composto de assassinos perigosos, mas de pessoas sem antecedentes criminais, detidas por crimes não violentos e/ou de baixo impacto social, relacionados geralmente ao tráfico de drogas. 

De acordo com uma pesquisa de 2012 do Núcleo de Estudos da Violência da USP, 62% dos presos em flagrante por tráfico em São Paulo portavam menos de 100 gramas de droga e 80,6% dos detidos eram réus primários. No Rio de Janeiro, conforme dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, 92,5% dos acusados de tráfico, em 2013, não portavam arma de fogo no momento do flagrante. 

Recente relatório da organização Human Rights Watch aponta a Lei de Drogas, aprovada em 2006, como a principal responsável pelo incremento da população carcerária no Brasil. O documento mostra que, em 2005, 9% dos presos no Brasil haviam sido detidos por crimes relacionados às drogas. Já em 2014, eram 28%.

Isso ocorreu devido à imprecisão da nova legislação, que não estabelece critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico. Assim, muitos usuários acabam sendo condenados como traficantes.

Por outro lado, entre 2005 e 2014, o número de homicídios aumentou 125%, enquanto o percentual de presos condenados ou acusados de homicídio nas prisões manteve-se na taxa de 10%. A imensa maioria dos crimes contra a vida, cerca de 90%, permanece, portanto, sem conclusão. O sistema de justiça prioriza o combate às drogas em detrimento de concentrar seus esforços em apurar homicídios, o que também atende à lógica de uma máquina punitivista que conta com a polícia mais letal do mundo.

O que há efetivamente no Brasil é a coexistência de um Estado de Direito instituído – que governa para os incluídos economicamente – e de um estado de exceção, ao qual estão submetidos os territórios ocupados pela pobreza. Essa aparente contradição entre a impunidade no campo dos homicídios e o endurecimento da punição aos crimes relacionados às drogas e crimes contra a propriedade, como roubos e furtos, corresponde, na realidade, ao interesse da elite incluída

As vítimas dos casos sem conclusão – porque sem empenho efetivo de apuração por parte do poder público – são os pobres, pretos, moradores da periferia, muitas vezes, assassinados pelas próprias forças de repressão do Estado.

Temos uma estrutura judicial estabelecida não para realizar justiça de forma universal e democrática, mas sim para investigar os crimes que interessam aos incluídos, àqueles que estão, de fato, sob a proteção do Estado democrático de Direito.

O que mais causa espanto é a banalidade com que a questão é tratada. A ditadura, que foi um marco autoritário em nosso país, um regime típico de exceção, vitimou entre mortos e desaparecidos 434 pessoas, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade. As polícias militares estaduais matam 3,5 mil pessoas por ano.

Evidentemente que não se pode minimizar o que ocorreu durante a ditadura, um período amargo da nossa história. No entanto, quando se afirma que hoje há um grau muito maior de liberdades e garantias individuais do que naquele período, essa afirmação é bastante relativa, já que esses direitos não foram universalizados. As classes incluídas certamente usufruem dessa liberdade, mas os mais pobres continuam tendo seus direitos básicos sistematicamente subtraídos pelo Estado. 

A principal mudança entre o momento atual e a ditadura não foi a garantia de liberdade e o acesso ao direito, mas a escolha do inimigo. Enquanto na ditadura o inimigo – elemento chave para a conformação do estado de exceção – era o militante comunista, que poderia estar inserido em qualquer classe social, hoje, o inimigo está socialmente localizado: é o pobre.

O instituto da prisão provisória é outro mecanismo que vem sendo largamente utilizado como instrumento de controle social. Segundo o já citado relatório do Infopen, em 2014, quatro em cada dez presos eram provisórios, ou seja, estavam detidos sem terem recebido uma sentença de primeiro grau. O documento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania relata ainda que 72% dos presos por tráfico no Rio, em 2013, ficaram detidos durante o processo e que, após o julgamento, menos da metade deles, apenas 45%, foram condenados.

Somando-se aos presos provisórios aqueles detentos cujos processos não foram concluídos, chega-se a quase dois terços da população carcerária. Ao contrário do que se pensa, entre 37% e 50% dos presos provisórios ou serão inocentados ou receberão penas de reclusão inferiores ao tempo que ficaram privados de liberdade. Isso significa que cerca de 20% dos presos estão presos injustamente.

Discutir penas e sanções alternativas para aqueles que não praticaram crime grave e violento e desbanalizar o uso da prisão provisória – que deve ser usada somente dentro dos parâmetros determinados pela Constituição – são medidas essenciais para que as injustiças, as carnificinas e toda a desumanidade associada à realidade das prisões brasileiras não se perpetue.

É preciso desmitificar a punição. Não aprisionar não significa não punir. Há mecanismos muito mais eficientes, baratos e adequados para responsabilizar aquele que comete um delito não violento. 

A política de encarceramento, definitivamente, não pode ser considerada produto do Estado democrático, inclusive porque contradiz a ideia de um Estado de direito universal. É um erro no plano político, no plano moral e no plano orçamentário-administrativo.

Superlotar as prisões de jovens pobres, que não representam perigo real para a sociedade, não só não é efetivo para a redução da criminalidade como fatalmente produzirá ainda mais conflitos, mais injustiça e mais violência.

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