Com a esperança entre os dentes
Carta Maior, 6/1/17
A esperança e as suas
consequências
Por Saul Leblon
O que o golpe e o fatalismo conservador tentam nos
explicar há oito meses é que a esperança que se alimenta de aspirações por mais
justiça e democracia é um atentado ao equilíbrio das contas nacionais, como o
perseguido agora pela PEC 55.
Enquanto a dissonância não retroceder, o ambiente
político não desanuviará, os mercados não vão relaxar, a incerteza e a crise
persistirão, advertem colunistas anexados a relatórios de bancos e vice-versa.
A esperança é disfuncional.
E, como ela, pleno emprego que a alimenta e a
potencializa ao ampliar o poder de pressão dos historicamente privados dessa
prerrogativa na vida nacional.
Até que a sociedade se convença de que um país é
como uma empresa com dono, sendo a população a sua mão-de-obra, a colisão entre
as expectativas afloradas nos últimos doze anos e a abrangência daquilo que os
mercados estão determinados agora a tomar de volta continuará a arrastar o
Brasil ao fundo.
Aqui e ali podem ocorrer cenas de barbárie e degola,
mas não é propriamente um desastre.
É uma compressão
deliberada para baixo.
Trata-se de uma
operação para devolver ao seu lugar os que emergiram na década de ‘voluntarismo econômico’, como conceituou mais de uma vez a
retirada de 30 milhões de brasileiros da miséria, e a ascensão de outros tantos
na pirâmide da renda, o principal líder do conservadorismo tropical, Fernando Henrique
Cardoso.
Não há
improviso: os custos em libras de carne humana nessa hidráulica regressiva são
calibrados matematicamente.
A intelectualidade liberal do PSDB tem perfeito
domínio do cálculo, conhece as variáveis e as suas consequências.
Economistas de banco monitoram as comportas da imersão
nacional no que se chama de ‘ajuste’ redentor.
São eles que
alimentam a pauta do jornalismo de
mercado com projeções e temas rapidamente adicionados à narrativa da vulgarização
neoliberal.
O que se veicula
é que até meados do segundo semestre de 2017 o desemprego atingirá a faixa dos
13% da população economicamente ativa.
A taxa atual é de 11,9% (dado do terceiro trimestre de
2016).
A legião de
brasileiros e brasileiras demitidos já reúne 12,1 milhões de pessoas, sendo 33%
maior do que o existente no mesmo período de 2015.
É o dobro do contingente computado há dois anos, no
final de 2014.
A espiral acaba de cravar um recorde: o Brasil tem hoje
a maior massa de desempregados da série histórica iniciada em 2012.
Não se sabe quantos dessa diáspora terminarão a
viagem em uma biqueira de droga, em uma penitenciária lotada ou alinhados ao
PCC, ao FDN, etc.
No
mercado financeiro, porém, considera-se desejável que esse feito vá além.
Trabalha-se com uma projeção de 13 milhões de pessoas
demitidas até o segundo semestre deste ano – quase um Portugal e um Uruguai
juntos de desempregados.
A população ocupada cairia então para 88,5 milhões de
pessoas em uma sociedade com mais e 200 milhões de habitantes.
Quando isso se consolidar, a principal linha de
resistência à ganância dos mercados em qualquer sociedade, verdadeira ponte
para o futuro em termos de inclusão social, reformas democráticas e
progressistas, terá sido aplastada da vida dos brasileiros.
Estamos falando do pleno emprego, esse anátema
keynesiano esconjurado pelas classes patronais de todo o planeta.
Meta obrigatória
do Banco Central dos EUA, aqui ele foi construído em
quatorze anos de governos do PT e sua demolição agora figura como o
imperativo obrigatório de todo o arsenal de reformas que o golpe preconiza para
o país.
Não por acaso, os ‘efeitos colaterais’ do desmonte são
naturalizados na mídia como um custo palatável face às vantagens que introduz
no coração da economia.
Quais?
Aquelas em que o Estado, o Parlamento, as leis e
regras de mediação em geral voltam a assegurar a reprodução da riqueza
existente, sem contestações estruturais à repartição social do excedente.
Uma guarnição
inédita de providências já tomadas e outras em curso cuidam de devolver os
desamparados à vulnerabilidade que blinda a manutenção da nova ordem.
Submeter um mercado de trabalho em frangalhos à
supremacia do negociado sobre o legislado é um exemplo desse arsenal.
A terceirização geral, outro.
A desproteção ao valor real do salário mínimo
insere-se na mesma matriz.
Dela fazem parte
também as novas dificuldades de acesso e de manutenção do valor das pensões e
aposentadorias - ademais do achatamento de recursos destinados à
universalização de direitos sociais, como a saúde e a escola pública.
Em síntese: de um lado, joga-se a carga ao mar.
De outro, enxuga-se o acervo de boias e salva-vidas
disponíveis.
A
recessão embutida nessa travessia é um custo brando para quem pode manter o
capital ocioso em regime de engorda assistida, a juros de 13,75% ao ano.
Posta de joelhos a massa pobre e assalariada, o resto
escorre por gravidade.
Ao ataque maciço e abusado aos direitos inscritos na
Carta de 88 segue-se
o assalto e a alienação de patrimônio público indispensável ao comando soberano do desenvolvimento.
O que se acalenta é algo de dimensões ciclópicas.
O saldo final do arrasto que esse processo para o
fundo acarretará no mercado informal de trabalho, por exemplo, no universo dos
‘conta-próprias’, dos que vivem de bicos, dos que se defendem em diárias e dos
que nada tem a defendê-los, exceto o piso da exploração fixado pelo salário
mínimo, é imponderável.
Mas não é um tsunami genuinamente verde-amarelo.
O que se passa no Brasil, na verdade, é a tentativa de
engatar o país ao comboio de um capitalismo global em retrocesso acelerado rumo
ao ventre selvagem do sistema, nos primórdios dos séculos XVIII e XIX.
Mais que negar novos direitos, a desordem neoliberal -
sem forças de ruptura para sobrepujá-la, acelera a des-emancipação e o
desamparo do mundo do trabalho em todas as latitudes.
É disso que trata o mais recente filme de Ken Loach, por exemplo, que acaba de estrear no Brasil.
‘Eu, Daniel Blake’ conta a via crucis de um carpinteiro impossibilitado de trabalhar após
um ataque cardíaco.
O infortúnio coloca-o diante do desmonte do Estado do
Bem-Estar Social inglês, um dos mais avançados do mundo até Thatcher, substituído agora por um labirinto cuja finalidade é exaurir os
desamparados para abandona-los à própria sorte.
Em todo o mundo capitalista o Estado emite o mesmo
aviso.
O tempo em que o
destino de cada um dizia respeito ao interesse de todos se esgotou.
A desumanização do Estado brasileiro é parte dessa
debandada, abortada depois dos anos 90 por quatro derrotas sucessivas do PSDB
para frentes progressistas lideradas pelo PT.
É hora de recuperar o tempo perdido.
É tempo de
murici, que cada um cuide de si’, sugere
o ministro da Saúde, por exemplo, emulando o coronel Tamarindo na debandada das tropas republicanas em Canudos (1896-1897).
Visto pela lente desfocada do jornalismo oficialista o
lema Tamarindo vai melhorar a eficiência da economia e ajustá-la ao padrão
internacional.
À narrativa de gerência de banco, sobre o desastre
fiscal se a pobreza insistir em respirar, dispensa-se o tratamento respeitoso
atribuído às verdades científicas.
O resto é populismo e corrupção.
Para resistir à lobotomia é necessário recusar os limites
do raciocínio e os seus fundamentos.
Inclui-se aí transcender a disputa paroquial com
tucanos e assemelhados para redesenhar a pauta da política brasileira,
atualizando-a nas questões cruciais do nosso tempo.
Entre elas a defesa de valores e direitos universais,
inseparáveis da luta por um desenvolvimento que seja também a audaciosa escolha
por viver em um país de oportunidades convergentes, não de interesses
radicalmente contrapostos.
Quem adiciona ao interesse particular a sua dimensão
pública é a política, ora desqualificada pelos ‘gestores’ brancos e ricos que
se fantasiam de gari no amanhecer e fecham a noite na Ferrari blindada.
Para haver resgate da esperança nesse chão mole é
preciso assumir as suas consequências.
Não pode haver
esperança num país governado pela taxa Selic definida pela banca.
Não pode haver esperança num país envenenado pelo
monopólio de uma rede de televisão que interdita o debate e as alternativas do
desenvolvimento.
Não pode haver esperança em um país onde a classe média recolhe 12% de imposto, enquanto os muito
ricos recolhem apenas 7% aos fundos públicos.
Não pode haver esperança num país onde a plutocracia
rentista se recusa a pagar uma alíquota mínima sobre operações financeiras para
viabilizar a saúde pública.
Não pode haver esperança num país onde o sistema
político transformou parlamento em um assembleia contra o povo a serviço do
mercado.
Não se trata de negar os requisitos de previsibilidade
econômica, fiscal e financeira, sem os quais dissipa-se o chão do investimento
público e privado.
Mas, sim, de afirmar a prerrogativa das escolhas
soberanas da sociedade na composição e finalidades do desenvolvimento.
‘Com a esperança entre os dentes’ é o título de um livro do marxista, pintor, ensaísta, roteirista
inglês, John Berger,
falecido na primeira segunda-feira deste ano (02/01/017)
É uma legenda interessante para o Brasil dos dias que
correm.
O que Berger sempre disse de alguma forma, assim como
Loach em seus filmes, é que diante da marreta da des-emacipação social
em curso no capitalismo, o peso material das ideias assume renovada importância.
Longe de ser um escapismo idealista, trata-se de
reconhecer o salto necessário na organização do discernimento coletivo para que
a sociedade possa pensar o futuro longe dos critérios da régua opressora.
Não é um convite à pequena alegria dos édens isolados.
As chances
alternativas só se completam na prática transformadora, quando a esperança é levada a provar que pertence ao mundo através
da ação que devolve à sociedade o comando do seu destino.
Câmbio ajustado, poder de compra, consumo de massa,
crédito, financiamento, taxa de juro civilizada incluem-se entre os
ingredientes da difícil calibragem do desenvolvimento na vida de uma nação.
Mas a verdade escancarada na derrota progressista para
o golpe de Agosto é que a macroeconomia não basta - até porque ela será
sempre um reflexo das contradições que estilhaçam a sociedade capitalista.
A crise econômica não se explica nem se resolve nela
mesma.
Insistir nesse reducionismo, seja pela fé cega nos
mercados, ou a confiança na sua indulgência com a justiça incremental, adia
soluções e induz à repetição de equívocos.
Os riscos se equivalem: num extremo, descartar
qualquer opção ao ajuste draconiano exigido pelos mercados; no outro, propugnar
pactos com quem não os quer, sem ter a organização popular que os faça querer.
A fase alegre
dos consensos sempre foi efêmera sob o capitalismo; hoje mais que nunca.
O filósofo húngaro István Mészàros chama a atenção para as consequências desastrosas de se subestimar a
extensão de uma crise sistêmica inerente à supremacia rentista que solapa
direitos e esmaga a dimensão pública da vida.
Ele sublinha o esgotamento histórico de projetos que
ignorem ou minimizem a guerra social aberta decorrente da voracidade
financeira que invadiu o ambiente produtivo, social, psíquico e político
do nosso tempo.
A coisificação
que atribui o papel de sujeito às coisas –o dinheiro e o mercado entre elas—
e de coisa às pessoas tornou-se asfixiante.
A financeirização acentua os efeito da lente
desfocada, sujeitando a sociedade a uma leitura suicida dos requisitos
econômicos, sociais e ambientais à sobrevivência humana no século XXI.
A colonização dos partidos de esquerda pela película
embaçante do neoliberalismo é uma das dimensões da tragédia.
O ponto a reter, adverte o filósofo, é que isso não é um acidente
transitório na sala de comando do Estado ou na casa de força da democracia
liberal.
A determinante
do nosso tempo é que ‘a acumulação de capital não pode mais funcionar
adequadamente no âmbito da economia produtiva’, explica Mészàros em síntese iluminadora.
A nova hegemonia
rentista desembarcou para ficar com a sua bagagem de barbárie econômica,
demônios políticos e dissimulações ideológicas.
Até que seja
desautorizada politicamente, radicalizará e ao mesmo tempo renegará a
dependência última do sistema em relação à verdadeira fonte do valor: a
exploração do trabalho assalariado.
Deriva daí o pior dos mundos.
Esse que nos coage, de um lado, cuspindo desemprego estrutural
e legiões de precariados; e, de outro, regurgitando relações trabalhistas que
perseguem uma espécie de conjunção do regime escravo com o da liberdade em
pleno século XXI.
A sintonia do golpe com os ares do mundo se dá nesse
moedor de carne humana acionado aqui para destruir o pleno emprego herdado do
ciclo petista.
No ambiente global a moenda está alguns passos à
frente.
Novas formas de
exploração e de produção incluem jornadas flexíveis e terceirizadas para uma
mão-de-obra estocada em seus próprios domicílios.
Descarnado de
qualquer direito, nivelado à condição de matéria-prima inerte, o insumo humano
será requisitado do depósito quando a demanda assim o exigir: o patrão pagará
então e tão somente pelo seu tempo de uso.
Há 700 mil ‘insumos humanos’ desse tipo estocados
atualmente no capitalismo britânico, cujos desdobramentos Ken Loach disseca com
argúcia.
É essa bússola de eficiência que o golpe namora no
Brasil.
Rejeitá-la implica em devolver a transparência aos
desafios brasileiros.
Com a esperança
entre os dentes.
E as suas consequências desdobradas em um projeto de
repactuação do desenvolvimento para 2018.
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