CartaCapital, 14/01/17
A condição
imprescindível
Por Dilma Vana
Rousseff
O Brasil caminha para um futuro incerto, a depender do governo
ilegítimo, que tem mostrado sua verdadeira face, frustrando as esperanças da
sociedade. A solução passa por eleições
diretas para presidente, substituindo o governo ilegítimo. Essa é a condição imprescindível para o
País sair da crise e retomar o rumo da democracia, do crescimento e da geração
de empregos.
Passaram-se apenas seis meses desde que o golpe
parlamentar interrompeu o meu mandato, consagrado por 54,5 milhões de votos. Tramaram um golpe que contou com o apoio de
oposicionistas, traidores e parte da mídia e lançou o País em um período de
incertezas e retrocessos.
Violentaram a Constituição de 1988, por meio de um golpe
parlamentar que fragilizou as instituições e precipitou o Brasil no abismo da
crise institucional.
Tudo é
possível quando um mandato presidencial
é desrespeitado. O impeachment sem crime de responsabilidade escancara
as portas para o avanço da crise política e institucional.
Daí os conflitos institucionais que se aprofundam e o choque entre
Legislativo e Judiciário. As relações de harmonia e equilíbrio entre os
Poderes, exigidas pela Constituição, estão comprometidas.
Em apenas 90 dias, muito do que alertei ao longo do
processo de impeachment tornou-se real. As contradições se acentuaram e
conturbaram o cenário político, econômico e social. As ações para estancar a
“sangria” da Operação Lava Jato têm se mostrado ineficazes. Movimentos sociais,
estudantes, professores e cidadãos sofrem com a repressão às suas
manifestações.
Assistimos,
estarrecidos, ocupações de escolas e universidades por jovens em defesa de seu
futuro serem coibidas com violência, enquanto manifestantes que invadem o
Congresso, pregando a volta da ditadura, são tratados com complacência. Os
sinais de deterioração dos direitos sociais estão evidentes.
Reconheço, ainda assim, que nenhum de meus mais
pessimistas prognósticos previa o escândalo gerado pelo episódio do apartamento
de luxo em área histórica de Salvador. E que isso merecesse do ocupante da
Presidência da República mais atenção do que os problemas reais do nosso povo,
como o desemprego crescente ou a paralisação das obras de integração do São
Francisco, para citar apenas dois exemplos.
A democracia
tem sido corroída pelo Estado de Exceção. A interrupção ilegal do mandato de
uma presidenta é o mais destruidor dos elementos desse processo, pois contamina
as demais instituições.
Daí a distorção dos fatos por setores da mídia
oligopolista, ou a decisão do Tribunal
Federal da 4ª Região que autorizou medidas excepcionais, como a suspensão da
lei e da Constituição em nome do caráter excepcional da Lava Jato.
Outro sinal é
a perseguição implacável ao presidente Lula, submetido à “justiça do inimigo”,
na qual a regra é destroçar a vítima.
Nesse cardápio, a PEC 55 destaca-se ao ensejar,
simultaneamente, o avanço do Estado de Exceção e o retorno do neoliberalismo.
Com um só golpe retira a população do Orçamento, reduzindo os gastos com saúde
e educação.
Ao mesmo tempo,
pelos próximos 20 anos, afasta de todos nós o direito de escolher por meio do
voto direto para “quem, como e onde” serão utilizados os recursos do Orçamento. Flagrantemente inconstitucional, a PEC viabiliza o retorno do neoliberalismo,
do Estado mínimo, feito por poucos e para poucos.
A reforma da
Previdência proposta pelo governo ilegítimo exige a idade mínima de 65 anos e
49 anos de tempo de serviço. Obriga jovens de 16 anos a largarem os estudos
para trabalhar, a fim de ter o direito à aposentadoria integral.
O objetivo é claro. Dar continuidade ao processo de
desmonte do Estado, iniciado por FHC e interrompido nos governos do PT.
Busca-se desmantelar o sistema de proteção social, iniciado com Getúlio Vargas,
atualizado na Constituição de 1988 e aprofundado no meu governo e no de Lula.
Irão se esforçar para desregulamentar a economia e
reduzir impostos sobre os muito ricos e privatizar as empresas do Estado. Além
de revirar o mercado de trabalho, “flexibilizando” os direitos dos
trabalhadores e tornando a aposentadoria privilégio de poucos.
Tais propostas voltam à ordem do dia, depois de
derrotadas nas últimas quatro eleições presidenciais. Por isso, o impeachment. O programa neoliberal do PSDB,
rejeitado no voto pela população, necessita que se suspenda a democracia para
ser executado.
O neoliberalismo pelo governo Temer, cujo
receituário é brandido pelos meios de comunicação e líderes da oposição tucana
como solução para o País, resultará em mais desigualdade. Tal modelo não tem
como conviver com a plenitude do Estado Democrático de Direito.
Em A Doutrina do Choque, Naomi Klein mostra que os
teóricos e políticos adeptos do neoliberalismo advogam o uso das crises para
impor medidas impopulares justamente quando os cidadãos estão impactados por
outros eventos.
Em nosso caso, a crise econômica e o impeachment
foram a oportunidade para a retomada do receituário neoliberal. Múltiplos
agentes políticos e empresariais se associaram para revitalizar um modelo que
dá sinais de esgotamento e profundas contradições em países da Europa e nos
Estados Unidos.
Chama atenção a sofreguidão dos militantes
empresariais encarnados no “pato amarelo”. Defendem que o único caminho diante
do conflito distributivo, acirrado pela crise, é o corte dos gastos sociais,
jogando o ônus da crise econômica exclusivamente nas costas dos trabalhadores e
da classe média.
Afastam a possibilidade de aumento de impostos num
país que tributa, sobretudo, ganhos de salário. Tal debate está interditado. Aí
não importa se a consequência é a queda ainda maior da demanda e mais crise ao
se derrubar o investimento público e o consumo, num quadro de anomia do
investimento privado.
Defendo que ajustes precisavam ser feitos. Ajustes
equilibrados, para melhorar a qualidade dos gastos e reduzir as despesas. O
limite da redução das despesas foi, porém, atingido.
Há necessidade urgente de reformas, não para retirar
direitos, mas, como a tributária, para
ampliar a arrecadação e alterar o caráter regressivo do nosso sistema de
impostos. Não podemos continuar a ser dos poucos países do mundo, em companhia
da Estônia, a não tributar dividendos ou taxar ganhos de capital.
Ainda há quem queira acreditar no milagre do corte
de gastos. Disseminou-se a ideia de que o golpe, travestido de impeachment,
rapidamente reverteria a crise e, a partir daí, bastaria cortar gastos. Ora, a crise fiscal nunca se deveu a uma
ampliação dos gastos. O Brasil enfrenta um problema fiscal que tem a ver com a
desaceleração econômica, responsável pela queda vertiginosa das receitas.
É necessário
reconhecer que desonerações efetuadas ao longo do meu governo, tanto aquelas
sobre a folha de pagamentos quanto as que incidiram sobre setores produtivos,
reduziram as receitas. Os resultados foram apropriados
pelas empresas na forma de aumento da margem de lucro.
Tais
desonerações também não produziram, na maioria dos setores, aumento da
capacidade produtiva e, consequentemente, da arrecadação futura, impondo ônus
excessivo à gestão fiscal do Estado. Por isso é necessária a revisão de tais
desonerações.
Mesmo assim, o País vai precisar de medidas que se
contraponham à crise. Durante meu
governo foram criminalizadas todas as medidas fiscais contracíclicas. A PEC 55,
pró-cíclica, vai eliminar agora todo e qualquer espaço para a política fiscal,
além de enrijecer a política monetária.
Lá atrás, as manobras dos golpistas foram bem-sucedidas. Vetaram, ao
longo do meu governo, todas as iniciativas para se reverter a crise,
instituindo a política do “quanto pior melhor” e as “pautas-bomba”. Pior.
Mobilizaram parte da população contra seus próprios interesses, cerceando a
ampliação de oportunidades e de direitos.
Em várias ocasiões, declarei que o golpe contra meu mandato era um golpe
contra a democracia, contra o povo brasileiro e contra a nossa Nação.
Apesar dos meus críticos, promovemos um inédito processo de redução da
desigualdade nos últimos 13 anos.
Foram as políticas de transferência de renda, de
valorização do salário mínimo, de ampliação do acesso a serviços públicos e do
incremento do investimento público que transformaram o Brasil e nos tiraram do
mapa da fome.
Inédito, esse processo não
garantiu uma efetiva transformação estrutural de nossa histórica concentração
de riqueza. E foi insuficiente, pois acabamos impedidos de avançar na
redistribuição da riqueza, na tributação dos mais ricos com impostos
progressivos, tema interditado no País.
A PEC 55 vai impedir que o povo se beneficie do
crescimento pelos próximos 20 anos com base no argumento da austeridade. Ao
estabelecer que os gastos públicos terão crescimento real zero, a PEC terá
efeito contracionista, puxando o crescimento do PIB para baixo.
O mais trágico é que resultará na redução per
capita dos gastos sociais federais. Como
trata apenas de gastos primários, a proposta não
contém uma só medida voltada às despesas financeiras, como os juros da dívida
pública.
Arbitrando de
forma autoritária o conflito distributivo em torno da alocação do Orçamento, a
PEC é contra a maioria da população. Retira dos cidadãos o direito de, a cada
eleição, escolher o programa de governo expresso no Orçamento e, com isso, os
caminhos para o desenvolvimento. É hoje um dos pilares do Estado de Exceção
implantado no Brasil.
Renascido
como fênix depois de quase 13 anos, o neoliberalismo do consórcio Temer-PSDB é
coerente com o fato de nossas grandes empresas produtivas terem se tornado
financistas. Que acreditem e defendam o ideário neoliberal não surpreende.
Mas que se somem na defesa de uma proposta que
diminui o crescimento econômico e promove a retração do mercado consumidor só
se entende diante da elevada rentabilidade obtida com o giro financeiro. Sem
dúvida, um dos maiores desafios ao
desenvolvimento no Brasil tem sido a contaminação dos setores produtivos pelo
giro da dívida pública.
A importância
que o resultado financeiro assumiu para o desempenho de nossas grandes
empresas, inclusive secundarizando eventuais limitações de competitividade,
explica o desinteresse com que o setor produtivo tratou a queda dos juros em
2012 e 2013. Serve também para entender o engajamento desses segmentos a
favor do golpe, atraídos, entre outras questões, pela perspectiva de reformas e
medidas fiscais.
A interrupção da normalidade democrática e o
caminhar rumo ao Estado de Exceção são as bases jurídicas para a retomada do
neoliberalismo. Não são as bases para “ordem, progresso e retomada do
crescimento”, como prometeram antes do golpe. É o contrário. Ainda que setores
da mídia mostrem com parcimônia os dados sobre a situação, o aprofundamento da
crise está explícito.
A realidade
sempre se
impõe. Está cada vez mais evidente que os golpistas acreditaram no que
propagandeavam e subestimaram os fatores que levaram à crise econômica: o
fim do superciclo das commodities, a desaceleração da China, o fraco
crescimento dos países desenvolvidos, o fim da política de expansão monetária
dos Estados Unidos e a queda de arrecadação.
Minimizaram, sobretudo, as graves e nefastas
consequências econômicas da crise política por eles criada. Tais fatores não se
alteraram com a conclusão do impeachment. A “sangria“ continua e passa a
ataque mortal. A crise agravou-se com a ilegitimidade, os escândalos de
corrupção e as falsas profecias.
Agravou-se tão rápida e profundamente que a
instabilidade gerada no atual governo e entre as instituições permite antever a
possibilidade do golpe dentro do golpe: a eleição indireta para presidente, que
não produzirá estabilidade ou segurança institucional.
Afasta a esperança e se revela mais um ataque à
democracia, incapaz de conduzir à recuperação econômica.
A intolerância e o ressentimento diante da falta de
sintonia entre as expectativas do povo e as entregas do governo minam a
legitimidade da democracia. Para a população, primeiro vem a perda de poder,
pelo desrespeito aos resultados legítimos da eleição.
Depois, a cassação de direitos, por meio de reformas
que promovem retrocessos e exclusão. Quando as teses econômicas dominantes
impedem a priorização de investimentos sociais, os governos deixam de responder
às necessidades dos eleitores.
A política torna-se irrelevante para a vida dos
cidadãos. Daí o risco da anti-política virulenta, em que argumentos são
substituídos por slogans e sensacionalismo. Por isso, se o golpe
destruiu o presente do Brasil, cabe a nós lutarmos pelo futuro.
A saída não é a marcha da
insensatez golpista, mas a participação popular. Está na convocação imediata de
novas eleições para presidente, como propus anteriormente. Junte-se às diretas,
é hora da reforma política, proposta por mim em 2013.
Não há como sair da crise sem redefinir o sistema
político, carcomido por práticas fisiológicas e corruptas, combalido pela
fragmentação de partidos e pela lógica do imediatismo que não leva em conta os
interesses do País.
Esse é o caminho para conter o retrocesso e garantir
que a vontade do povo prevaleça quando se define o nosso destino. Reitero: o
momento é grave, mas ainda há tempo de salvar a nossa jovem democracia e
promover a retomada da economia. A palavra é legitimidade. Um banho de
legitimidade para lavar a alma do Brasil.
Para isso, Diretas, Já!
Nenhum comentário:
Postar um comentário