Sul 21, 16/01/17
Entrevista: Valdete Souto Severo, juíza do trabalho da 4ª
região, em Porto AlegrePor Fernanda Canofre
No começo do ano, Valdete Souto Severo, juíza do trabalho da 4ª região, em Porto Alegre, foi sorteada para avaliar uma liminar de sindicatos ligados a cinco fundações estaduais em vias de extinção, desde a aprovação do projeto apresentado pelo governo José Ivo Sartori (PMDB) em uma votação polêmica no final de dezembro, na Assembleia Legislativa. Os sindicatos pediam que as demissões — anunciadas com “urgência” pelo governo do Estado — fossem paradas até acordo coletivo. A magistrada acolheu o pedido. Ela não imaginava, no entanto, que teria ali um marco estranho em sua carreira.
Apesar de não ter sido a única juíza a determinar suspensão de demissões até acordo coletivo, no caso das fundações, Valdete foi a que mais sofreu ataques nas redes sociais. Fotos suas começaram a circular com adjetivos como “juíza de merda”, “puta safada”, “vagabunda”. Um site ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL) impulsionou a reação contrária à ela qualificando sua decisão como “de extrema esquerda”. Em seu perfil em uma rede social, a juíza se manifestou afirmando: “Não se trata, portanto, de concordar ou não com determinada decisão judicial. Trata-se de uma sórdida tentativa de aniquilação do que o outro representa em sua condição humana”.
Juíza do trabalho desde 2001, ela diz que sempre quis ser juíza, mas só optou pelo caminho trabalhista depois de atuar com outra magistrada, na área criminal, que havia sido servidora da Justiça do Trabalho e a incentivou. Durante a faculdade, enquanto acompanhava a juíza à tarde, Valdete ainda se dividia entre o curso de Direito à noite e dava aulas para crianças em idade de alfabetização pela manhã. “Uma correria! Eu sinto falta, adorava dar aula para os pequenos”, conta ela.
Mas na justiça do trabalho, ela parece ter encontrado sua vocação. Integrante do Fórum Nacional em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Afetados Pelas Terceirizações, Valdete também tem feito do combate às terceirizações uma de suas principais pautas e se tornou uma referência na área. Fora do país, ela conversou com o Sul21 por telefone sobre o significado da extinção de fundações no mundo do trabalho, os ataques que sofreu e por que a justiça do trabalho é vista como vilã no Brasil. Confira:
Sul21: Depois da publicação da ordem judicial proibindo demissões nas fundações estaduais até acordo coletivo, a senhora começou a sofrer ataques pela internet. Um texto que circulou em uma publicação vinculada ao Movimento Brasil Livre (MBL) a classifica como membro da “elite jurídica”, com “ideias de extrema esquerda”. Pode falar um pouco sobre essa situação?
Valdete Souto Severo: O MBL é um movimento organizado com objetivos específicos, dentre os quais auxiliar a promover o completo desmanche do arremedo de Estado social que duramente conquistamos no país. Então, faz parte disso atacar quem trabalha com os direitos sociais. Falar em “ideias de extrema esquerda” é risível. Aliás, essa insistência em rotular as pessoas que se opõem ao senso comum do capital como “petistas” ou “de esquerda” geralmente revela apenas um modo de tentar desqualificar o discurso. Talvez eu até quisesse ser assim identificada, mas sou juíza. Trabalho, portanto, desde o sistema, que é capitalista e que se insistirmos nesses dualismos reducionistas, alinha-se claramente à direita. A intensidade e a agressividade das manifestações contra a decisão, sem sequer fazer alusão aos termos dela, mas centrando forças em ofensas pessoais e misóginas mostra que o direito social realmente enfrenta um período de franca oposição e todos aqueles que o defendem estão na mira de quem o quer destruir. Esse episódio que ocorreu comigo já se repetiu com outros colegas. Estamos vivendo um momento de caça às bruxas bem perigoso. Temos que ter atenção a isso. É o fenômeno da reação da massa, que Hannah Arendt enfrenta tão bem em sua obra, acaba criando legiões de imbecis. Pessoas que ofendem sem conhecer, criticam sem ler, reproduzem pensamentos prontos, muitos dos quais as atingem, ou seja, concretamente significam perda até mesmo de direitos de liberdade, tipicamente liberais (ou “de direita” como querem alguns). Se alguém deve ser ofendido porque decide em um processo, também pode ser agredido na rua, linchado, e dai para frente perdemos os limites. Quem agride hoje, poderá ser agredido amanhã. Então, se revoltar contra isso é defender o direito de manifestação e de atuação profissional de todas as pessoas.
Sul21: A senhora é juíza do trabalho há 15 anos. Já tinhas vivido algo parecido antes por outros processos que julgastes?
Valdete Souto Severo: Já sofri pressão ou incentivo para alterar decisões de forma mais interna, corporativa, digamos assim, mas nunca ataques pessoais como desta vez.
Sul21: Qual foi a sua primeira reação ao se deparar com as mensagens que estavam circulando na internet?
Valdete Souto Severo: A primeira coisa que eu fiz foi falar com o meu filho, porque ele tem 16 anos e eu achei que poderia chegar até ele aquelas ofensas. E realmente, ele já tinha visto. Mas conversei, ele foi bem querido e me deu um apoio muito legal. Depois disso, eu não estava acompanhando nada, mas fiquei sabendo por um colega da Associação [dos Magistrados da Justiça do Trabalho] que me contatou dizendo que estava à disposição para alguma reação, na forma de nota ou até de ação que coibisse que as ofensas continuassem ocorrendo. Eu tentei não ficar olhando essas páginas, mas eu fiquei revoltada. Esse foi o sentimento. Eu não fiquei tão agredida assim pessoalmente, porque as pessoas que estavam falando ali não me conhecem e eram ofensas pessoais, não eram tanto em relação à decisão. Mas achei que tinha sim que tomar alguma atitude porque foi uma manifestação de misoginia. É machismo puro, é uma vontade de desconstituir o interlocutor sem dialogar. O sentimento é de revolta, fiquei muito indignada com o que aconteceu.
Sul21: A senhora acha que se o caso envolvesse um juiz, um homem, teria gerado o mesmo nível de ataque?
Valdete Souto Severo: Eu acho que não. Acho que tem uma questão de machismo muito forte. Quando uma mulher faz uma coisa que desagrada a primeira reação sempre é desqualificar e sempre é um ataque à feminilidade: “puta”, “vagabunda”, “safada”. Acho difícil acreditar que um homem sofreria esse tipo de ofensa se tivesse proferido uma decisão, que na verdade nem foi inovadora. Quando eu proferi a decisão nesses processos, outros dois colegas já haviam se manifestado nesse sentido e já havia inclusive uma decisão do Tribunal [do Trabalho] confirmando liminares similares àquelas que eu proferi.
Sul21: Na sua decisão, do dia 5 de janeiro, a senhora determina a suspensão imediata das demissões em cinco fundações estaduais encaminhadas à extinção até acordo coletivo. Quais os principais problemas que conseguistes identificar no que estava sendo encaminhado pelo Estado até a ordem judicial? As extinções, por exemplo, ainda não foram sancionadas pelo governador, apesar de demissões terem sido encaminhadas.
Valdete Souto Severo: Sim, as decisões não foram sancionadas. O problema é que a própria lei determina que seja feito em 180 dias, no máximo. Portanto, são iminentes. O problema maior que foi trazido nos processos é que o próprio governo do Estado se manifestou dizendo que providenciaria de forma urgente essas despedidas para evitar que a Justiça do Trabalho pudesse de algum modo intervir neste processo. Acho que o principal problema é que essas pessoas, contratadas por concurso público, na realidade, sequer poderiam ser despedidas sem uma motivação específica na forma de lei que já existe ou até do Artigo 7º da Constituição que eu referi na decisão. Nós poderíamos, inclusive, estar discutindo a própria constitucionalidade da lei que foi aprovada ao falar de despedida de empregados contratados mediante concurso. Só para lembrar, a decisão que eu proferi e que outros dois colegas, Maria Teresa [Vieira da Silva Oliveira] e Maurício [Schmidt Bastos] também proferiram, que estão sendo confirmadas pelo Tribunal, são decisões liminares. Ou seja, a matéria ainda vai ser apreciada pelo juízo competente, que é a Vara Especializada em ações contra o Estado, no caso de Porto Alegre é a 18ª, e serão confirmadas ou não. Então, são medidas que foram adotadas em razão da urgência que se revela na possibilidade desses trabalhadores ficarem sem a fonte de sustento.
Sul21: O líder do governo na Assembleia Legislativa, deputado Gabriel Souza (PMDB), escreveu em uma rede social que “as decisões judiciais determinaram aquilo que o governo já iria cumprir: Negociação para demissões”. Havia sinalização neste sentido, pelo que pudestes avaliar?
Valdete Souto Severo: Não havia sinalização, ao menos que fosse do nosso conhecimento, e o teor da lei aprovada não indica isso. Porque a lei determina o desligamento, a demissão dos empregados em 180 dias e não faz nenhuma referência à negociação com os sindicatos. Menos mal se essa é a sinalização do governo. Então ele está ratificando o que foi decidido pela Justiça do Trabalho.
Sul21: Uma das justificativas apresentada pelos juízes contra as demissões em massa – tanto na sua decisão, quanto nas demais e nas que votaram por mantê-las – é do impacto que isso teria nas categorias de trabalhadores, ligados a áreas específicas de cada uma das fundações. Pode explicar um pouco mais este argumento?
Valdete Souto Severo: Tem vários aspectos do eventual cumprimento dessa lei aprovada em dezembro. Da perspectiva pessoal e social, pensa: são mais de mil trabalhadores que vão perder a fonte de sustento. Quer dizer, isso numa comunidade pequena, porque nós estamos falando de Porto Alegre, tem um impacto pessoal, social, humano que é desastroso. São pessoas que têm uma identidade com essas fundações. Várias delas trabalham há décadas para essas fundações e simplesmente, de uma hora para a outra, vão ficar desempregadas e, vamos combinar, sem perspectiva de reposição no mercado. O trabalho que elas realizam é um trabalho muito específico, são pessoas qualificadas de áreas muito específicas. Não é fácil para elas serem recolocadas no mercado, é drástico para elas, dessa perspectiva.
A outra perspectiva é que as atividades realizadas por essas fundações – e é isso que acho que as pessoas não estão se dando conta – são atividades indispensáveis. O que a Cientec (Fundação de Ciência e Tecnologia) faz, por exemplo, tem que continuar sendo feito, porque são pesquisas científicas que importam para o Estado, para os consumidores. Não tem como abrir mão disso. Ou seja, isso significa que o que vai acontecer, com a extinção de uma fundação como essa, por exemplo, é que o Estado vai ter que contratar empresas privadas para realizar as mesmas tarefas. Isso vai significar gasto ainda maior, com certeza. Da perspectiva econômica, que é a grande bandeira do governo estadual, de que está economizando com a promoção dessas extinções, esse argumento é falacioso e perverso também, porque o que vai acontecer é que o que essas fundações fazem, porque não são fundações ociosas, vai ter que continuar sendo feito só que vai ser feito através da contratação de empresas privadas. E aí, certamente, com um encargo financeiro maior do que aquele já suportado pelo Estado hoje.
A gente às vezes não se dá conta, mas quando a gente fala de despedida, a gente está falando de tirar uma pessoa de onde ela se realiza como pessoa, de onde ela passa a maior parte do tempo dela acordada, de onde ela cria laços de amizade. Essa determinação contida nessa lei estadual vai tirar mais de mil pessoas do seu lugar no mundo. Essas pessoas vão perder as referências que elas têm, de tudo aquilo que elas construíram ao longo da vida, porque o espaço de trabalho, onde elas se realizam, vai ser simplesmente extinto.
Sul21: Voltando a uma questão que falávamos no início. As decisões que têm ido contra demissões em massa têm incomodado setores que as qualificam como decisões de “esquerda” ou contrárias ao “bem do Estado”. Como a senhora vê isso?
Valdete Souto Severo: Primeiro assim, “contrárias ao bem do Estado” depende do ângulo, de que Estado se está falando. Porque se o Estado realmente é aquele ente que deve respeitar e promover os interesses da sociedade, a decisão chancela o interesse do Estado. Se a gente pensa no Estado como algo que está colonizado por alguns, que agem em nome próprio como se não devessem atender os reclamos da sociedade, se fosse apenas uma empresa que devesse ter gestão eficiente, bom, então talvez seja possível pensar que as decisões contrariam o seu interesse imediato. Como eu falei antes, a extinção dessas fundações vai determinar a médio e longo prazo gastos maiores para o Estado do que estão tendo agora. Isso, aliás, já começou né? A gente teve a notícia essa semana de que o governo contratou cargos de confiança para fazer a transição e a extinção das fundações. Quer dizer, já está havendo gasto público onde deveria, supostamente, ter economia.
Quanto a classificar como “de esquerda”, é impressionante como isso virou um lugar comum, como as pessoas rotulam as manifestações como de esquerda ou de direita. A Justiça do Trabalho não nasceu e nunca atuou como um “órgão de esquerda”, no sentido de ser contrário ao Estado, à coisa pública, ou mesmo ao status quo, à sociedade capitalista. Pelo contrário, a Justiça do Trabalho quando nasce, no início da década de 1930, já se coloca como um instrumento de pacificação de conflitos entre capital e trabalho – ou seja, um instrumento da sociedade capitalista. Então não tem nada de transgressora, não tem nada de esquerdista neste sentido que se atribui à palavra, então não dá para entender muito, senão como uma forma de desqualificação do discurso essa afirmação.
Aliás, me parece que se tem utilizado isso: as decisões que contrariam interesses de grandes empresas ou do Estado são classificadas como “de esquerda” e aquelas que chancelam não recebem nenhum epíteto, não são rotuladas, como se não existisse “direita”. Existe o que é certo para quem recebe a decisão e o que é de esquerda, que acaba se equivalendo, na visão dessas pessoas, a estar equivocado. A gente precisa resgatar o sentido de esquerda e direita, que vem lá da Revolução Francesa, para compreender o quanto é equivocado se falar disso quando se está enfrentando decisões judiciais fundamentadas.
Sul21: A senhora é integrante do Fórum Nacional em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Afetados Pelas Terceirizações. Como a liberação da terceirização como atividade fim, que segue em tramitação no Senado, pode afetar as categorias que hoje não atuam sob esta lógica?
Valdete Souto Severo: De várias maneiras, porque a aprovação do projeto significa permitir a terceirização em todas as atividades e isso vai promover ainda mais desmanche na possibilidade de organização sindical, que hoje já está bastante afetada, seja porque não há garantia de emprego no Brasil, seja porque já há terceirização em vários setores. Além de determinar todas as consequências que a gente vem insistentemente demonstrando, redução de salário, precarização das condições de trabalho, aumento do número de acidentes de trabalho, impossibilidade de usufruir alguns direitos, como férias, porque se a prestadora troca a cada dois anos, por exemplo, as pessoas acabam não fruindo do direito às férias.
Sul21: Há um lobby muito forte no Congresso para aprovação do PL 4330 e uma tendência geral de terceirização de serviços, no Brasil. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por exemplo, o número de trabalhadores terceirizados é quase igual ao número de servidores técnicos da instituição. Muitos deles têm feito denúncias sobre situações precárias de trabalho e atrasos de pagamentos. O Brasil vive um momento de ataques aos direitos trabalhistas, tanto na imprensa, como em parlamentos locais, e também pela proposta de reforma encaminhada pelo governo Temer. Como a senhora avalia esta reforma e o cenário trabalhista atual?
Valdete Souto Severo: É isso mesmo, é um ataque que vem de todos os lados. A gente teve decisões do STF muito ruins para o direito do trabalho, no final do ano passado, tivemos leis aprovadas, entre elas um projeto de lei que é terrível e que foi idealizado pelo governo, portanto, se for aprovado no Parlamento, não vai sofrer veto, e todos eles com a mesma indicação: acabar com direitos – não só – mas especialmente trabalhistas. E a terceirização me parece, há muito tempo eu venho dizendo isso, o principal elemento desse desmanche.
Isso porque terceirizar, permitir várias empresas dentro de uma mesma empresa ou a existência de uma empresa sem empregados, é pulverizar os trabalhadores e suprimir direitos, como eu disse antes. Então, se a gente permite que a terceirização cresça ainda mais do que ela já existe hoje, vai encontrar muito menos resistência para alteração de outros direitos, como o direito à limitação da jornada, às férias, 13º e etc.
Tem sido muito difícil lutar contra isso, por isso que eu acho que esse ataque que eu sofri não é isolado, porque qualquer decisão, qualquer manifestação pública, qualquer ato em defesa de direitos trabalhistas têm sido atacado. Sempre atacado com muita ferocidade e no sentido de deslegitimar esse discurso, que não é um discurso novo. A construção de direitos trabalhistas é algo que vem sendo feito no Brasil e nos outros países ocidentais há pelo menos dois séculos, é algo que a História mostrou que é indispensável, inclusive para que essas pessoas que estão lutando hoje contra os direitos trabalhistas possam viver bem. Sem ter medo o tempo inteiro, sem ter que se fechar em condomínios e andar em carros blindados. Se a gente retira direitos sociais, o que acontece é que todo o nível de sociabilidade, as relações sociais em geral, não só daquele trabalhador com seu empregador, acabam perdendo também. A gente acaba vivendo em uma sociedade que é mais precária, que é mais violenta, que é mais miserável e isso afeta todo mundo.
O que o Brasil está vivendo agora, a Europa também está experimentando desde o início dessa segunda década. A gente tem acompanhado as alterações na legislação trabalhista na Itália, na Espanha, em Portugal, são sempre as mesmas leis. Esse projeto que foi apresentado no final do ano pelo governo é uma cópia, em alguma medida, de legislações que foram editadas nesses países. O que demonstra que é um movimento internacional, é por isso que é tão difícil de lutar contra esse movimento. Não é algo isolado, não é algo nosso. Nós estamos seguindo uma cartilha, que é uma cartilha que a gente sabe bem quem dita as regras desse jogo. É algo maior que o governo de um país específico, como o nosso.
Por outro lado, me parece que essa dificuldade nos traz um elemento positivo. Nas últimas décadas, já vinha ocorrendo desmanche dos governos trabalhistas. Desde a década de 1990 que a gente já não conseguiu superar essa ideia de que temos que recuar em termos de proteção a direitos sociais. A vantagem agora é que as cartas estão na mesa, não tem mais disfarce. É algo ostensivo. Se é ostensivo, nos dá elementos para lutar com mais força. Então agora nós sabemos qual é o objetivo, nós temos elementos e temos racionalidade suficiente para isso, muitas obras, muitos artigos, muitas manifestações de pessoas ligadas ou não à área de direito do trabalho. Me parece que agora temos condições de criar um discurso que demonstre, inclusive com fato históricos, a falácia dessa tentativa de retirar direitos trabalhistas e desse discurso que diz se tirar direitos a economia melhora. Historicamente não é assim. A economia se sustenta principalmente em direitos sociais fortes que permitam que as pessoas consumam, andem pelas ruas, sem o terror da barbárie sempre à espreita.
Sul21: Existe uma espécie de vilanização também da própria Justiça do Trabalho no Brasil hoje. É algo desta época?
Valdete Souto Severo: É. E é outra coisa interessante, como a gente consegue distorcer o discurso, porque a Justiça do Trabalho nasce e age para manter uma suposta paz social. Isso está inclusive na exposição de motivos da Justiça do Trabalho. O que isso significa? Paz social significa que o trabalho continua sendo explorado pelo capital, mas que tanto o trabalhador, quanto o empregador estejam em paz com essa situação de exploração. Então, a Justiça do Trabalho, historicamente, é um instrumento de preservação do capital. Claro que ela preserva o capital impondo alguns limites à lógica do capital, até porque historicamente se percebe – isso não só no Brasil – que se deixar as forças sociais agirem livremente, o capital acaba aniquilando o próprio trabalho. Consumindo a força do trabalhador até não ter mais força de trabalho para poder explorar. Então, a justiça do trabalho como instituição preserva essa relação sem pretender a alteração disso. Isso que eu quero deixar claro: não existe nada de transgressor na justiça do trabalho, o que ela faz é permitir que tudo permaneça como está.
Existe uma tentativa de eliminar, de extinguir a justiça do trabalho, o corte do orçamento que a gente viveu no ano passado é uma clara demonstração disso. Especialmente porque nos seus motivos o, hoje ministro, então relator, Ricardo Barros, deixa muito claro que está fazendo corte de gastos em função da atuação da justiça do trabalho. É um discurso que além de ser mentiroso tem uma visão muito estreita das coisas. Eu até tenho amigos empresários que comentam, será que eles estão se dando conta que se eliminam a justiça do trabalho não tem mais contenção, não tem mais espaço de diálogo, não tem mais ambiente de conciliação entre capital e trabalho, e que isso talvez seja muito pior pra quem emprega, do que pra quem depende do trabalho para sobreviver? A gente teria é que estar construindo um discurso de crítica à atuação talvez muito passiva da justiça do trabalho, que é bem verdade, hoje, nesse cenário de revés e de ataque aos direitos sociais, tem dado boas lições. Mas que historicamente não tem nada de efetivamente protetiva no sentido de alterar alguma medida de exploração do trabalho pelo capital. Só que é claro, o momento agora não é de fazer essa reflexão. O momento agora é de perceber que é uma instituição necessária tanto para quem trabalha, quanto para quem explora o trabalho.
Sul21: Muitos representantes de classes empresariais argumentam que direitos trabalhistas, no Brasil, são “excessivos”. São mesmo? Como eles se classificam em comparação com o que é aplicado em outros países?
Valdete Souto Severo: Outra tremenda falácia, porque na verdade a gente não tem um direito principal que é o direito contra a despedida. A ausência dessa garantia contra a despedida compromete o exercício de todos os outros direitos trabalhistas. Se a gente pensar na realidade de alguns países da Europa, por exemplo, para despedir tem que ter uma motivação lícita e essa motivação vai ser discutida no poder Judiciário. No Brasil, a gente ainda diz que é possível despedir sem dizer o motivo. Ninguém tem como exercer direito algum, durante o trabalho, nem se insurgir contra redução de trabalho, aumento de jornada, nada, porque pode ser despedido a qualquer momento sem qualquer motivação. Então, se não há exercício do direito durante o vínculo, se quando o vínculo termina ainda tem prescrição, a gente não pode dizer, por mais que se crie leis trabalhistas protetivas (e a gente nem tantas assim) que há um direito do trabalho muito protetivo no Brasil.
Valdete Souto Severo: O que o livro trata é de uma transgressão não no sentido de descumprir a legislação, mas ao contrário, no sentido de cumprir a legislação trabalhista até suas últimas consequências. A análise que eu faço ali é de que se a gente levar a sério tudo o que o direito do trabalho determina, na realidade do Brasil, por exemplo, o que vai acontecer é que o próprio sistema vai se revelar insustentável. É a proposta de um caminho, para quem não está satisfeito com o sistema tal como nós temos hoje e com a exploração do trabalho pelo capital, uma medida é a aplicação irrestrita dos direitos trabalhistas.
O que a gente percebe, observando a jurisprudência, é que os direitos trabalhistas não são completamente aplicáveis e as propostas que eu faço ali são, por exemplo, que não se pronuncie prescrição enquanto não houver efetiva garantia de emprego – que na realidade é uma tese que já foi aprovada pelos juízes do trabalho, enquanto nacional – que se respeite efetivamente o limite máximo de 8 horas por dia, portanto, não se aplique nenhuma legislação que fragilize esse limite que é o máximo de trabalho por dia. Além de outras questões pontuais, mas que na realidade são exemplos do que pode ser feito para um uso nesse sentido de transgressor, num sentido mais psicanalítico de transgressão, como aplicação efetiva dos direitos trabalhistas. Tudo parte do pressuposto do direito do trabalho como um instrumento da sociedade que a gente tem, ele não foge da regra, ele existe para que as coisas permaneçam como são, só que ele impõe limite. E esses limites não são levados a sério justamente porque se fossem tensionariam o sistema. A ideia do livro é essa, se a gente quer tensionar o sistema sem romper com tudo, sem fazer terra arrasada, comecemos pela aplicação integral dos direitos trabalhistas.
Sul21: Qual seria a saída para que se aplique isso?
Valdete Souto Severo: A saída é essa, mais simples do que a gente pensa: aplicar a legislação. Se a Constituição diz que o máximo é 8 horas, qualquer pessoa que trabalha além de 8 horas tem que receber hora extra. Se a Constituição diz que tem que ter um ambiente salubre, condições insalubres de trabalho tem que ser rejeitadas como algo natural. A gente tem que parar de considerar que o descumprimento de direitos trabalhistas é mero, como dizem alguns processos, inadimplemento contratual. Não é. Na verdade, é uma ruptura com um pacto que se fez, que é necessário para viver minimamente bem. A proposta é aplicar o direito trabalhista sem transigir, como se tem feito, sem permitir, por exemplo, conciliação que implique renúncia e aí por diante.
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