segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Embuste contra aposentadorias







Brasil 247, 30/01/17




Embuste contra aposentadorias




Por Paulo Moreira Leite





Toda vez que aparecer o vídeo de propaganda da reforma da Previdência em sua TV, é bom lembrar uma verdade elementar.  Queima de recursos públicos num governo que tem passado a faca em programas úteis para a maioria dos brasileiros com o argumento de que é preciso controlar gastos, a Reforma da Previdência pretende queimar verbas do Estado para alimentar uma fraude e embelezar um embuste. Tudo se resume a tentar convencer os brasileiros de que é preciso promover mudanças radicais num sistema de aposentadorias e pensões que, criado e aperfeiçoado desde a década de 1930, tornou-se um dos mais equilibrados e sustentáveis do planeta, como mostram dados que serão apresentados alguns parágrafos adiante.

O empenho publicitário do governo Temer envolve um cálculo banal. Aterrorizados com a possibilidades de serem punidos pela indignação de eleitores que serão atingidos no próprio bolso na hora de pagar as contas da velhice, os parlamentares podem ser convencidos a recusar o voto necessário para sustentar um projeto que equivale a uma traição aberta ao bem-estar da população,  em nome de premissas falsas e argumentos embelezados.

Reportagem de Lucianne Carneiro publicada no Globo, historicamente favorável à reforma da Previdência, exibe uma pequena amostra da situação no Chile e nos Estados Unidos, países que se encontram na vanguarda das mudanças privatizantes que Temer & Cia querem promover no Brasil. "Nos EUA, metade das famílias tem menos de US$ 5000 em sua reservas para garantir o futuro de suas famílias," diz a reportagem, referindo-se a uma soma equivalente a quatro - isso mesmo, 4 - salários mínimos para o cidadão gastar até o fim da vida depois que pediu aposentadoria. Já no Chile, escreve Lucianna Carneiro, "cerca de 80% recebe menos de um salário mínimo por mês e quase a metade (44%) se encontra abaixo da linha da pobreza." (Globo, 29/1/2017, página 36).
  
No Brasil, a situação mostra um quadro diferente.  A taxa de reposição, que compara àquilo que a pessoa recebe até o fim da vida ao se aposentar com o salário embolsado quando se encontrava no batente, equivale a 82,58% da renda anterior. É um número superior ao que recebem aposentados de países de perfil socio-econômico equivalente. Os mexicanos  conservam  28,4%. Os chilenos, 37,7%. Na Coréia do Sul, a reposição é de 46,9%. Em relação a outros países, os números do Brasil são inferiores a Argentina (87,5%) e Portugal (89,5%). A boa posição do país não significa que a maioria dos brasileiros tem direito a uma velhice no luxo e na riqueza. Mostra apenas que, ao longo de sua história, a Previdência foi capaz de adotar um sistema de entradas e saídas que não agrava as condições de sobrevivência da maioria - cuja base é o salário mínimo - na hora em que se aposenta.

Um fator essencial de equilíbrio é que a Previdência funciona pelo método distributivo, preservando a renda daqueles que se encontram no patamar inferior da pirâmide dos salários e reduzindo a fatia destinada às camadas mais altas, que mesmo assim se mantém em posição muito mais confortável. Enquanto trabalha, o brasileiro encontra-se num mercado onde a diferença entre o salário mais alto e o mais baixo chega a 14 vezes, em média - situação que coloca o país entre os dez mais desiguais do mundo em diferenças salariais. (Valor Econômico, 28/05/2013). Na Previdência, essa escala se reduz. A aposentadoria mais alta é de R$ 5.531,31. O piso é de R$ 937,6. Na calculadora, uma diferença de 5,9 vezes. Uma distância enorme: um apartamento de 50 metros quadrados comparado com outro de 300. Mas coerente quando se leva em conta o caráter desigual da sociedade brasileira - até porque representa um avanço na direção correta.

Lembrar a taxa de reposição é um dado essencial, num debate onde se discute o futuro de uma instituição pública que, como ensina a demografia, terá uma importância crescente na vida dos brasileiros. As aposentadorias de hoje mostram que, apesar de queixas e reprovações que todos podem fazer a partir de sua grande reforma, em 1966, quando ocorreu a unificação dos institutos de aposentadoria, a Previdência Social tornou-se um patrimônio da sociedade e uma conquista digna de ser defendida. Para tentar convencer os brasileiros a aceitar ideias estúpidas como aposentar-se após 49 anos de contribuição ou ignorar a dupla jornada de trabalho feminina para exigir a idade de 65 anos para aposentadoria de mulheres, tenta-se anunciar o apocalipse na próxima esquina.

Outro ponto é o próprio apocalipse - no caso, em função direta da reforma. Diz respeito aos 6,5 milhões de aposentados rurais. Num ambiente onde a informalidade, o trabalho familiar e outras particulares constroem um universo à parte, a Constituição de 1988 lhes assegurou um sistema próprio, que permite o pagamento de um salário mínimo a partir dos 65 anos para homens, 55 para mulheres. Foi uma decisão política, mais do que aceitável num país onde a agricultura já era responsável por uma imensa parcela do PIB, condição que se acentuou ainda mais nos últimos anos. Embora tenham sido criadas regras especiais de financiamento, como uma parcela de 2% sobre a comercialização de produtos rurais, as despesas, aqui, seguem maiores que as despesas, o que se explica tanto por alíquotas suaves demais como por uma tolerância imensa com a sonegação. Como era de se imaginar, a reforma Temer & Meirelles planeja resolver o problema à força, pelo sacrifício dos mais pobres: cobrar contribuições individuais pelos mesmos prazos que são exigidos dos trabalhadores urbanos. Em qualquer caso, a conta rural é menor do que os custos imensos dos programas de desoneração oferecidos as empresas a título de estimulo a investimentos que nunca se realizaram. Ou seja: sempre há uma opção política a ser feita. No caso específico, a ideia é passar a cobrar por aquilo que milhões de brasileiros recebiam de graça. Não fazia parte do orçamento. Qual o nome disso?

Diante da dificuldade incontornável de ter de mudar um sistema que está dando certo, o truque é criar medo do futuro.

Essa é a origem da teoria de que a Previdência tem um déficit enorme e incontrolável, que só pode ser coberto com mudanças de inspiração chilena, norte-americanas, mexicanas - você escolhe.
   
Entre os grandes grupos de previdência privada, ninguém está preocupado com o bem-estar das pessoas mas apenas com oportunidades de negócio, mesmo que o preço seja elevar a pobreza e ampliar a desigualdade. A política de redistribuição não faz sentido, aqui, pois o horizonte é favorecer investimentos individuais, como uma poupança ou aplicações em fundos de pensão.

No Planalto, a preocupação é política, naquele sentido pequeno de defender a própria sobrevivência. Isso explica a preservação dos privilégios do judiciário, que, em tempos de Lava jato, preserva suas pensões e vencimentos integrais. Também ajuda a entender a postura diante dos militares, beneficiados por um regime especial, o mais caro do Estado brasileiro, que garante uma permanência mais curta e o pagamento de uma promoção de patente após a saída. Permanece intocável. Ao multiplicar gestos de gentileza em direção às togas e aos tanques, o Planalto de Temer sinaliza aonde enxerga aliados que podem ajudá-lo a enfrentar tempestades que se avizinham.

A discussão sobre a sustentação da Previdência deve começar por uma constatação importante. Sua receita é muito mais ampla do que se costuma admitir. Mesmo cobrindo despesas que não dizem respeito à aposentadoria mas estão previstas na Constituição, como Saúde e Assistência Social, benefícios assistenciais importantes para o cotidiano da sociedade brasileira, num total que supera a marca dos R$ 100 bilhões, em 2014 correu uma sobra de caixa de R$ 35,5 bilhões -- contra receitas de R$ 658,4 e despesas de R$ 622,8. Em 2015, quando a economia desabou num dos piores momentos da história da República, em números redondos a despesa foi de R$ 683 bilhões bi contra receitas de R$ 694. Saldo positivo de R$ 11 bilhões, num ano em que as desonerações passaram de R$ 100 bilhões. Os números de 2016 não estão fechados. Não terão o mesmo aspecto risonho, o que não surpreende. No terceiro ano consecutivo de recessão, as demissões atingiram 1,5 milhão de empregos em carteira, o que cortou o principal alimento financeiro da instituição, responsável por mais de 85% do dinheiro recebido. Outras contribuições, que são um reflexo direto da economia, também encolheram.
  
Nenhuma surpresa aqui. Num aprendizado elementar sobre agruras e limites do desenvolvimento brasileiro, a experiência histórica ensina que não há saída fora do crescimento econômico e da distribuição de renda. A recessão que chegou a menos 6 na década de 1980 derrubou a ditadura de 64. O colapso cambial do segundo mandato esvaziou o cofre de Fernando Henrique e jogou o país num apagão de luzes, ideias e desemprego selvagem.

Numa opção consciente de assegurar uma política de austeridade prolongada, transformada em cláusula constitucional pela Emenda sobre o teto de gastos, o desempenho ruinoso do governo Temer & Meirelles pode conduzir o país a um resultado especialmente terrível para vovós e vovôs. Quebrar a Previdência antes de fazer a reforma, como a via mais rápida de abrir a exploração de um dos principais mercados de aposentados do planeta a grupos financeiros privados.

Seria trágico, mas é coerente, vamos combinar.

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