sábado, 14 de janeiro de 2017

A dessimbolização do mundo






Justificando,  14/01/17



A dessimbolização do mundo



Por Rubens Casara*




O Estado Democrático de Direito, entendido como o modelo estatal[1] marcado por limites ao exercício do poder, de qualquer poder (político, econômico, judicial, etc.) encontra-se, na melhor das hipóteses, em crise ou, o que é mais provável, superado. A ideia de que os direitos e garantias fundamentais, as regras e princípios constitucionais e os tratados e convenções internacionais funcionariam como limites ao arbítrio e à opressão, aos poucos foi substituída pela construção de uma imagem desses “direitos” como entraves, dessas conquistas civilizatórias como meros obstáculos tanto à eficiência econômica ou repressiva do Estado quanto aos interesses dos detentores do poder político e do poder econômico.

Aos poucos, inicialmente de maneira tímida, e em seguida sem pudor, os direitos e garantias fundamentais passaram a ser relativizados. Dito de outro modo: os direitos e garantias, que ao longo da história foram conquistados e construídos como o conteúdo material da democracia[2], passaram a ser afastados, com a aquiescência do Poder Judiciário, que, no Estado Democrático de Direito, deveria exercer a função de garantidor da democracia.

Não por acaso, alguns chegam a falar em Estado Pós-Democrático para dar conta desse modelo de atuação estatal que não encontra limite na Constituição da República, na legislação internacional, nas leis infraconstitucionais e na ética. É o que ocorre, por exemplo, no neoliberalismo, em que a ausência de limites rígidos ao exercício do poder, com a relativização dos direitos e garantias fundamentais que dificultam a livre circulação de mercadorias, soma-se à confusão entre o poder político e o poder econômico.

O Poder Judiciário, na pós-democracia, ao abandonar a função de efetuar julgamentos direcionados à concretização dos direitos e garantias fundamentais, torna-se mero gestor de interesses políticos e/ou econômicos. Juízos acerca da legalidade ou ilegalidade de atos, bem como decisões que antes eram pautadas pela adequação à Constituição da República, foram substituídos por juízos voltados à satisfação de determinados grupos ou sujeitos, mesmo que em detrimento da maioria, em uma espécie sui generis de utilitarismo. Passou-se a “julgar” sem os limites típicos do Estado Democrático de Direito, sem a observância das “regras do jogo” que distinguem as democracias dos regimes totalitários.

Esses julgamentos, marcados pela relativização da legislação e da ética, são promovidos pelo Estado, através do Poder Judiciário, mas também pelo particular. Cada dia mais as pessoas se sentem autorizadas a julgar o outro e esse “julgamento” também não têm observado limites, nem jurídicos (uma vez que esses frequentemente constituem ilícitos civis e/ou penais), nem éticos.

Muitas vezes travestidos de ativismo político, outras acobertados por declarações em defesa da liberdade de expressão, esses julgamentos, sempre arbitrários e de antemão condenatórios, são proferidos todos os dias. Neles não há imparcialidade, entendida como equidistância dos interesses em jogo, possível. Típicos julgamentos de exceção, as figuras do acusador e do julgador se confundem, não existe uma acusação (a atribuição de um fato concreto) bem delimitada, nem a oportunidade do acusado se defender. Não há dialética, isso porque o julgador já carrega uma certeza. Neles, cria-se uma fantasia em torno do “acusado”, sem qualquer compromisso com a facticidade. Fatos são distorcidos, potencializados ou mesmo inventados: o importante é chegar ao resultado desejado pelo julgador. O acontecimento, o fato que se afirma querer julgar, perde importância para a hipótese, carregada de certeza, previamente formulada pelo acusador/julgador[3] a partir de preconceitos, ressentimento, inveja e, sobretudo, ódio.

Diante das modificações observadas na sociedade, com clara repercussão nos julgamentos, tanto profissionais quanto leigos, surge uma hipótese: a função de julgar modificou-se nas últimas décadas a partir da transformação do sujeito-julgador. De um julgador, típico sujeito da modernidade, que mirava (ou, ao menos, se preocupava em afirmar que buscava) a concretização de direitos a partir do respeito aos limites legais e éticos ao exercício do poder, a um sujeito que exerce poder sem limites rígidos, o que acaba por ser instrumental aos interesses dos detentores do poder político e/ou econômico.

Pode-se perceber a substituição do julgador marcado pelo simbólico, pelo limite inscrito na subjetividade, pelo julgador em que o imaginário procura dar conta do laço social. Há, portanto, uma nova economia psíquica que gera um novo mal-estar, que como o antigo mal-estar denunciado por Freud, também diz respeito à relação entre as pessoas, aos discursos e modos-de-ser no mundo da vida.

, apenas para citar um exemplo dessa mudança, um distanciamento inédito entre o funcionamento social e o funcionamento da pequena família.[4] Os componentes da pequena família (pai, mães e irmãos) fecham-se e desconfiam daqueles que não integram esse núcleo familiar. Gera-se um antagonismo em relação ao social, antagonismo potencializado por questões de classes, de gênero, dentre outras, a ponto de se transformar, em determinadas circunstâncias, em ódio.

Conforme as demais pessoas se distanciam do ideal de eu, dessa construção imaginária que marca o sujeito, aumenta a desconfiança de que esses outros (em última análise, o restante da civilização) são os responsáveis pelo gozo a menos, pelas restrições e pelo que falta a cada um. As frustrações de cada um passam a ser de responsabilidade do outro, um outro muitas vezes indefinido. O ódio, que nasce da presença do outro, se faz presente até quando o outro se ausenta, isso porque o que conta é o imaginário, mais precisamente a imagem de um outro que atingiu, atinge ou pode atingir o sujeito. Existe o ódio porque existe a linguagem, existe a linguagem porque existe um terceiro. O ódio é, antes de atingir qualquer objeto, direcionado ao simbólico, o espaço da alteridade. Liga-se ao furo no imaginário, mais precisamente ao furo que se localiza na consciência narcísica.

Mas, o que teria produzido essa transformação do sujeito-julgador? A resposta mais crível, a partir de Lacan, é a de que foi o sucesso do capitalismo. O capitalismo consumiu o sujeito da modernidade, o sujeito anunciado por Descartes e descrito por Kant, Freud e Marx.

O sujeito moderno, e com ele o antigo sujeito-julgador, começou a desaparecer no momento em que a lógica capitalista substituiu, sem enfrentar resistência, o antigo escravo por pessoas reduzidas ao estado de mercadorias, pessoas tratadas como produtos[5] e, portanto, “consumíveis tanto como os outros”.[6]

Os julgamentos podem ser tidos como verdadeiros sintomas e, como todo sintoma, mudam de acordo com o discurso dominante na civilização. O capitalismo, com a hegemonia do discurso do capitalista, produziu um novo tipo de julgamento, um julgamento sem Lei, um julgamento “a céu aberto”[7], no qual o imaginário do julgador substitui a lei. Diante da ausência de Lei, não internalizada, o novo sujeito-julgador cria uma “lei”, que ele mesmo encarna, voltado a dominar o outro, tratado como objeto/mercadoria.

Dufour aponta que o capitalismo, após consumir os corpos (a noção de “corpos produtivos” é, nesse sentido, exemplar), passou a consumir os espíritos. Como se

o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), permitido pelo capitalismo, se consolidasse por um déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori quanto ao que se é verdadeiro ou falso, inclusive bem ou mal). É precisamente esse traço que nos parece propriamente caracterizar a virada dita ‘pós-moderna’: o momento em que uma parte da inteligência do capitalismo se pôs a serviço da ‘redução de cabeças’. [8]

A partir da diminuição de importância da pessoa, que cada vez mais desaparece diante do valor “mercadoria”, as explicações forjadas na modernidade, que procuravam dar cota de um mundo em que o ser humano não mais seria instrumentalizado, de um mundo em que a pessoa seria o centro de referência para todos os fenômenos, se tornaram obsoletas. Na atual quadra histórica, em que as pessoas são tratadas como objetos, as formas filosóficas pensadas na modernidade para explicar o sujeito, se ainda não foram abandonadas, são utilizadas de forma cínica. Só o cinismo e a perversão se mostram compatíveis com a forma como o outro é tratado na pós-modernidade, na pós-democracia.

O sujeito crítico kantiano (que surge nos anos 1800), o sujeito revolucionário marxiano (o Manifesto Comunista foi publicado em 1848) e o sujeito neurótico freudiano (nascido nos anos 1900) não explicam o sujeito egoísta, despreocupado com o laço social, que se caracteriza por consumir acriticamente e agir sem limites. Da mesma forma, o sujeito-julgador que refletia, tinha dúvidas e procura a verdade para decidir de modo a criar um mundo melhor para todos caminha para a extinção, substituído que foi por um juiz narcisista, tendente ao ódio, acrítico, repleto de certezas e sem limites (um sujeito-julgador narcisista, acrítico e, na melhor das hipóteses, perverso, quando não psicótico).

Pode-se afirmar que as garantias absolutas e metassociais das relações humanas, em especial das trocas, tornaram-se desnecessárias[9]. Valores transcendentais ou morais, os grandes Sujeitos (Deus, Revolução, etc.) e as grandes narrativas, por dificultarem a livre circulação de mercadorias, precisaram ser reelaborados (pense-se na substituição da Teologia da Libertação pelas teologias da prosperidade construídas pelas igrejas neopentecostais), abandonados ou destruídos. Na lição de Gauchet, os atores sociais “se querem desligados e sem nada acima deles que impeça a maximização de seus empreendimentos”.[10]

Um mundo em que as pessoas não têm limites e que, ao contrário do que poderia se imaginar, os indivíduos não são livres, ou melhor, são levados a acreditar que a liberdade se resume à possibilidade de consumir qualquer coisa, sem limites, inclusive a eles próprios. Ao se perder a perspectiva crítica, não se sabe mais o que é o bem.[11] Por um lado, um esvaziamento do simbólico, com a progressiva perda dos limites e dos valores compartilhados que davam sentido e permitiam a vida em sociedade, já que hoje todos esses valores acabaram substituídos ou são tratados como se fossem mercadorias, do outro, uma modificação do imaginário, da imagem que se tem de si e dos outros, no qual a imagem-de-si passa a se identificar com a única lei a ser reconhecida. Identificação que só é possível em um ambiente de esvaziamento da linguagem, no qual se dá tanto a rejeição categórica, embora inconsciente, da tradição e dos valores construídos ao longo do tempo, quanto uma percepção afetivamente insensível do outro.

A lógica capitalista, de sempre buscar o lucro custe o que custar, fez com que todo valor atribuído às figuras transcendentes, fora do comércio, desaparecesse. Só tem valor o que pode ser negociado, o que pode gerar lucro. O valor simbólico, com toda a sua complexidade, é substituído pelo mero valor monetário atribuído às mercadorias, “de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental…) possa entravar sua livre circulação. Daí resulta uma dessimbolização do mundo”,[12] na qual as pessoas deixam de estar de acordo sobre os valores simbólicos transcendentes ao mesmo tempo em que aderem, sem reflexão, ao projeto de ampliação infinita da circulação das mercadorias.

Essa dessimbolização, que alguns preferem chamar de mutação do simbólico, traz modificações sensíveis na posição do julgador. Quanto menos limites tiver e mais “livre” (e acrítico) for o julgador, quanto mais esvaziada a linguagem, maior a possibilidade de que as decisões produzam arbítrios. O esvaziamento da linguagem leva a distorções nos julgamentos. Ao desaparecer o justo a priori, quando sequer os limites semânticos da Constituição da República, que deveria simbolizar o fundamento de validade de todos os atos estatais, são respeitados pelos membros do Poder Judiciário, o acerto/justiça do julgamento passa a depender do imaginário do julgador. Um imaginário autoritário produz decisões autoritárias, fundada na mera autoridade e em descompasso com os direitos e garantias fundamentais. O imaginário democrático, por sua vez, exige limites que cada vez mais estão ausentes do mundo. [13]

No plano da aplicação do direito, a Constituição da República deixou de ser cumprida, ou mesmo violada em um caso concreto, para ser simplesmente “relativizada”, eufemismo utilizado para significar que se tornou recusável, sempre podendo ser afastada a depender do julgador. Como toda figura transcendente, com a própria ideia de um “Contrato Social” que aos poucos também é abandonada no campo da teoria política pós-moderna, a Constituição da República tornou-se negociável, segundo a lógica das mercadorias, que são trocadas ou se tornam inúteis de acordo com o seu estrito valor de mercadoria.

O esvaziamento da linguagem, consequência necessária da dessimbolização, afeta a qualquer discurso e a qualquer julgamento. O discurso do capitalista, vislumbrado por Lacan e que se tornou hegemônico, não faz laço social, uma vez que é dirigido não às pessoas, mas a objetos, tanto a objetos tratados como mercadorias, quanto a pessoas tratadas como objetos. Diante do imperativo “consuma!”, o sujeito, que ocupa uma posição de dominado, faz nexo com objetos e não com pessoas.

Nasce, portanto, em razão do excesso de capitalismo, do sucesso do capitalismo na sua forma neoliberal, uma nova subjetividade, uma nova economia psíquica. Um sujeito forjado a partir da mercadoria, que existe e só se justifica em razão da mercadoria. Um sujeito que é lançado no mundo para consumir e ser consumido pelo mercado.

Esse novo sujeito, essa nova economia psíquica construída para atender ao projeto neoliberal de criar o desejo de consumo ilimitado do indivíduo como forma de aumentar os lucros dos detentores do poder econômico, impôs-se da constatação da inconveniência do sujeito crítico, para o qual nem tudo é negociável (vale lembrar que na Metafísica dos costumes, Kant já esclarecia que existe o que não tem preço ou equivalente, o que é pura dignidade). Um sujeito que não se deixa levar pelas promessas de felicidade do mercado não serve ao projeto neoliberal.

De igual sorte, o sujeito revolucionário marxista, marcado pela solidariedade, pela formação dialética e portador de um projeto de transformação social, não interessa ao neoliberalismo. Na ideologia neoliberal se defende a busca da satisfação individual mesmo que as custas da felicidade da maioria. Não há espaço para projetos coletivos ou para sujeitos preocupados com a construção de um outro mundo possível. Se para o sujeito marxista a felicidade estava ligada à libertação de todas as formas de dominação, no neoliberalismo se dá a redução tanto da ideia de felicidade à dimensão de apropriação de mercadorias quanto da ideia de liberdade à de consumo.

Por fim, com Melman e Lebrun, pode-se constatar que se deu a passagem de uma economia psíquica fundada no recalque e, portanto, na neurose (que gerava o homem neurótico freudiano) para uma economia psíquica fundada em uma cultura que desconsidera limites e, portanto, produz sujeitos perversos (que “desmentem” os limites), quando não psicóticos (que não possuem limites).[14]

Essa mesma economia psíquica, avessa à crítica, às preocupações sociais e aos limites, leva a uma nova espécie de sujeito-julgador. Um julgador adequado ao mundo pós-moderno e ao Estado pós-democrático.

Cada cultura forma sujeitos. Mudanças culturais formam novos sujeitos. Cada sujeito, em cada época, constrói um Outro, pensado como um grande Sujeito (aquele que garantiria a existência do sujeito falante) a que se submeter. A pessoa, ao nascer, torna-se “sujeito de” e “sujeito a”. Ao longo do tempo, exerce direitos ao mesmo tempo em que se submete a um Outro, um Outro com estrutura de ficção. Submeteu-se à grandes Sujeitos, à Natureza, aos Deuses, ao Deus, ao Estado, à Ideologia e, agora, na pós-modernidade acredita não se submeter a nada, acredita não depender mais de grandes Sujeitos e estar submetido apenas ao Eu. Trata-se, porém, de um Eu imaginário, um “ideal de Eu”, que ignora estar submetido ao Mercado. Um Eu idealizado e prepotente que produz leis, mas desconhece que suas leis estão submetidas às leis do mercado. Um Eu “livre” para consumir e até para criar um novo Deus, que reaproveita o significante “Cristo”, mas substitui o “amor ao próximo” pela teologia da prosperidade. Um sujeito que desconhece a lei do significante e para quem falta limites.

O esvaziamento do simbólico é também um estado avançado da destruição do Outro, ou melhor, uma mutação no Outro. Às mutações do simbólico correspondem alterações no imaginário. O Eu imaginário passa a ser a sede da lei, mas não a lei perdida com a dessimbolização. Não se trata de uma lei carregada de história e de valores, mas de uma farsa: uma lei sem valor de lei, uma lei que só existe no imaginário do sujeito e que passa a ser utilizada contra os semelhantes. Esse julgador pós-moderno que despreza a Constituição e faz a lei que acredita ser a solução para todos os (seus) problemas é, na verdade, um juiz fora-da-lei.

Com o desaparecimento dos Grandes Sujeitos, daqueles totens (símbolos construídos e repletos de significados) e das grandes narrativas que “explicavam” e organizavam o mundo, bem como dos grandes projetos coletivos que influenciavam no desejo, com o enfraquecimento do grande Outro, que é o enfraquecimento da função simbólica, substituído que foi pelo Mercado, ou mais precisamente pelas representações imaginárias adequadas à livre circulação de mercadorias, o novo sujeito, que ama mercadorias e usa pessoas, não cria obstáculos ao projeto neoliberal.

A ausência de um grande Sujeito, ou mesmo de qualquer exterioridade capaz de impor limites, em um mundo que se quer completo e no qual se pretende um gozo sem limites, acaba com a possibilidade de um controle mais efetivo ou mesmo de direcionamento do ódio. Assim, o ódio escapa por toda parte, atinge qualquer pessoa ou coisa, em especial aquelas que antes exerciam a função do grande Sujeito. Há um ódio aos limites, um ódio ao pai, um ódio ao conhecimento, um ódio à democracia, um ódio à Constituição da República, etc. O ódio é sempre um negócio coletivo, como explica Lebrun, isso porque o ódio se origina com a civilização, como percebeu Freud, ou, como prefere Lacan, porque o ódio estruturalmente é um ataque ao significante que funda a linguagem e ao Outro.[15]

Se a neurose figurou como a principal estrutura clínica do sujeito da modernidade, que era um mundo com limites (graças a naturalização com que se dava a aceitação do “não”), a rejeição do “não” de um terceiro, que marca a pós-modernidade como um mundo sem limites, faz com que surjam perversos e psicóticos. Mas, não é só. Há, também, no atual momento a potencialização do narcisismo. Na nova economia psíquica, a referência deixou de ser externa (o Pai, o Estado, Deus, a Constituição, etc.), ou seja, afastou-se do “ele/ela” para se fixar no “Eu”. Se não há lei ou valor transcendente, cabe ao Eu definir o que fazer ou o que é liberdade. De igual sorte, cresce uma consciência distorcida de “igualdade”, na qual todos se sentem autorizados a fazer e a falar de tudo, isso porque todos se sentem admiráveis e oniscientes, razão pela qual negam a necessidade de esforço e dedicação para se formar como sujeito. O esforço de estudar, o conhecimento específico que diferenciava, também perde valor, em especial se esse conhecimento não pode ser facilmente convertido em mercadoria.

Se o “não-do-pai”, que fundava o simbólico, é rejeitado, não se instaura a alteridade. O outro, o semelhante (igual e rival), torna-se mais um objeto para o sujeito. Em suma, no funcionamento da dinâmica social, pode-se “constatar o enfraquecimento, senão o próprio desaparecimento, do que ontem ainda constituía norma comum, daquilo a que nos referíamos fora e também dentro de cada um de nós e que era habitualmente transmitido pela tradição”[16] e, em especial, o desaparecimento do respeito aos limites. Na era da ausência de limites, a democracia e a cultura perdem substância. Os julgamentos tornam-se manifestações narcísicas e os julgadores tendem à perversão, como última defesa contra a psicose.


*Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ.


[1] Não existe, em concreto, um exemplo histórico “puro” de Estado Democrático de Direito. Trata-se de um modelo ideal que se caracteriza pela justificação do poder a partir do respeito a limites. No Brasil, o Estado Democrático de Direito sempre foi precário, com os direitos e garantias fundamentais respeitados de forma seletiva, mas até pouco tempo os agentes estatais ainda tentavam justificar suas atuações a partir do respeito aos limites democráticos. Hoje, naturalizou-se a violação dos limites éticos e legais, como se observa, por exemplo, das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que relativizaram o princípio da presunção de inocência e os direitos sociais titularizados pelos trabalhadores e respeitados desde a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).  
    
[2] Democracia em sentido material é, para além da participação popular na tomada das decisões políticas, a concretização dos direitos e garantias fundamentais.

[3] A essa figura, que funde as funções de acusar e julgar pode-se chamar “inquisidor”.

[4] Nesse sentido: FLEIG, Mario. Apresentação. In LEBRUN, Jean-Pierre. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre: CMC, 2010, p. 6.

[5] Nesse sentido: DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005, p. 9.

[6] LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 

[7] Utiliza-se aqui a expressão…

[8] DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005, p. 10.

[9] DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

[10] GAUCHET, Marcel. La démocratie contre elle-même. Paris: Gallimard, p. XXV.

[11] Nesse sentido: ROGOZINSKI, Jacob. Le don de la loi, Kant et le’énigme de l’éthique. Paris: PUF, 1999.

[12]DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005, p. 13.

[13] Por todos: LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limites. Rio de Janeiro: Comapnhia de Freud, 19

[14] Nesse sentido: MELMAN, Charles; LEBRUN, Jean-Pierre. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

[15] Por todos: LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio. Porto Alegre: CMC, 2008.

[16] LEBRUN, Jean-Pierre. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre: CMC, 2010, p. 9.

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