domingo, 15 de janeiro de 2017

País superlota cadeias com réus sem antecedentes e não violentos








Folha.com, 15/01/17




País superlota cadeias com réus sem antecedentes e não violentos


FERNANDA MENA
LEANDRO MACHADO





Durou 15 minutos a audiência que condenou Felipe, 21, a um ano e oito meses de prisão por tráfico de drogas.

Únicas testemunhas, dois policiais militares responsáveis pela prisão em flagrante foram ouvidos por dois minutos cada um no Fórum Criminal da Barra Funda, em SP. O réu, primário, falou por três minutos e negou o crime. Palavra contra palavra, sem investigação prévia nem produção de provas. 

O caso de Felipe – seja ele culpado ou não – é um retrato da disfunção do sistema da Justiça criminal brasileira, que tem lotado penitenciárias do país com réus sem antecedentes criminais, não violentos e sem ligação aparente com facções criminosas.
 
Boa parte dos presos que entraram no sistema carcerário desde 2006 é enquadrada na Lei de Drogas, que endureceu penas para traficantes, mas retirou a punição de prisão para usuários. 

A falta de critérios objetivos para diferenciar tráfico de uso pessoal, como a quantidade de drogas portada no ato do flagrante, é um dos fatores que aumentou a proporção de presos por este crime. 

Em 2005, antes da lei, 14% dos crimes pelos quais os presos foram condenados ou acusados eram relacionados ao tráfico. Em 2014, esse número subiu para 28% – um incremento da ordem de 349% em números absolutos. 

No mesmo período, entre 2005 e 2014, o número de homicídios no país aumentou 125%, fazendo do Brasil o triste recordista mundial em assassinatos, com quase 60 mil mortes em 2015. O percentual de presos condenados ou acusados de homicídio nas prisões, porém, caiu de 11% para 10%, mantendo-se estável ao longo de uma década.

Com isso, o instrumento da prisão não só tem baixo impacto na redução da violência, como tende, no médio prazo, a agravá-la. 

Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP de 2012 apontou que em 62% dos casos de flagrante por tráfico em São Paulo a pessoa era presa com menos de 100 gramas de droga; 80,6% dos detidos eram réus primários. 

Estudo do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) indica quadro semelhante no Rio: dos acusados de tráfico em 2013, 80,6% eram réus primários e 92,5% não portavam arma de fogo no momento do flagrante. 

"Ao colocarmos essas pessoas em presídios dominados por facções, estamos transformando infratores que não são perigosos em pessoas perigosas", avalia a socióloga e ex-diretora do Sistema Penitenciário do Rio, Julita Lemgruber, do CESeC. "Como a violência dos presídios transborda seus muros, esse crescimento de sua população é um investimento em nossa própria insegurança", diz.

O testemunho de policiais tem sido usado como principal e às vezes única prova para que uma pessoa seja condenada por tráfico de drogas no país. Essa é a avaliação de defensores e especialistas em direito penal.

Com pouca investigação que produza provas e falta de critérios claros para diferenciar traficante de usuário, o depoimento de agentes policiais que efetuam prisões tem prevalecido em julgamentos.

Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP, de 2012, apontou que 74% das prisões por tráfico em SP tinham como únicas testemunhas policiais militares – que gozam de "fé pública". 

No Rio, o Tribunal de Justiça instituiu a Súmula 70, que autoriza juízes a condenarem réus baseados apenas no testemunho policial. 

Para Cristiano Maronna, vice-presidente Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), tem ocorrido uma "presunção de tráfico".

"Não existem provas de que a pessoa seja traficante, mas se infere este crime a partir do local em que ela foi presa, de sua condição socioeconômica, do fato de ter ou não emprego formal, da quantidade de substância e, em especial, da palavra do policial sobre a destinação da droga",diz.

O estudo da USP apontou que flagrantes de tráfico em SP ocorrem nas ruas (82%), durante patrulha (62%), e que apenas 4% deles eram fruto de investigação. 

Pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania indica que 72% dos presos por tráfico no Rio em 2013 ficaram presos durante o processo. Depois, apenas 45% deles foram condenados. Em 2/3, os réus não tiveram testemunhas de defesa, apenas de acusação. 

"O perfil majoritário do condenado por tráfico é esse: pobre, primário, preso com pouca droga. É o elo mais fraco na cadeia da produção e venda", diz Vitore Maximiano, defensor público de SP e ex-secretário nacional de Políticas Sobre Drogas.

"Lotamos o sistema com gente do varejo de drogas, facilmente substituível. Quem ocupa a alta hierarquia do tráfico está solto, lavando dinheiro", diz Luciana Boiteux, professora de direito da UFRJ.

Para Marina Dias Werneck, conselheira da Defensoria Pública de São Paulo e do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), "muitas leis criadas com objetivo de desencarcerar acabaram expandindo o controle penal", aumentando o saldo de presos.

"Temos uma cultura punitiva e encarceradora. Não adianta mudar a lei, tem de mudar a mentalidade dos operadores do direito."

Desde 2008, mutirões carcerários feitos pelo Conselho Nacional de Justiça já beneficiou cerca de 80 mil presos por meio de progressão de regime, liberdade provisória ou direito a trabalho externo.

Em 2016, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o chamado tráfico privilegiado – réu primário, com pouca droga e não pertencente a facção criminosa – não pode ser considerado crime hediondo, categoria que limita progressão de pena e indultos. Com base nisso, a Defensoria de São Paulo conseguiu libertar, nos últimos seis meses, mais 1.000 detentos no Estado.

Desde setembro de 2016, o processo que trata da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que criminaliza a posse de substâncias para uso pessoal, está parado com o ministro Teori Zavascki, que pediu vistas.
 
Até então, três ministros (Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e o relator Gilmar Mendes) haviam defendido a descriminalização. Ainda assim, a ausência de um critério que diferencie quais quantidades configuram uso ou tráfico, baseada em dados concretos de consumo, é criticada por especialistas.

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