Getúlio e a Nação dos brasileiros
Por Mauro Santayana
A República - podemos deduzir hoje - não rompeu a ordem social anterior; deu-lhe apenas outra aparência.
Seu avanço se fez na autonomia dos Estados, contida pelos constituintes
de 1891, que temiam a secessão de algumas regiões, entre elas a do Sul
do país, de forte imigração européia. A aliança tácita entre as
oligarquias rurais e a incipiente burguesia urbana se realizava na
interdependência entre os produtores de açúcar e de café e os
comerciantes exportadores e importadores. Nas duas grandes
corporações econômicas não havia espaço para os trabalhadores que,
negros recém-alforriados ou brancos aparentemente livres, continuavam os
escravizados de sempre. Não interessava, portanto, que houvesse um estado nacional autêntico, ou seja com a universalização dos direitos políticos.
Os parlamentos serviam para o exercício intelectual dos bacharéis ilustrados, vindos das fazendas, mas com leituras dos clássicos do pensamento político em moda, como Guizot e Thiers, Acton e Burton, Cleveland, Jefferson e Lincoln. Eram, em sua maioria, fiéis defensores do imobilismo que favorecia o seu bem-estar e o domínio político das famílias a que pertenciam.
A Revolução de 30 correspondeu, assim, a uma nova proclamação da República. Ao romper o acordo tácito entre as oligarquias, provocou a reação de São Paulo, a que se aliaram alguns conservadores mineiros.
Isso não esmoreceu Getúlio e seus colaboradores mais próximos, como Oswaldo Aranha e Alberto Pasqualini, empenhados em ações revolucionárias que conduziriam à construção do verdadeiro estado nacional. Getúlio acreditava que sem cidadãos não há nação. Por isso empenhou-se em integrar os trabalhadores na sociedade brasileira, reconhecendo-lhes alguns direitos já concedidos nos países industrializados europeus e convocando-os, mediante sua liderança e o uso dos instrumentos de propaganda da época, a participar da vida política, com a sindicalização e as manifestações populares.
Os estados necessitam de instituições bem estruturadas, e Getúlio, dentro das limitações do tempo, as criou. O serviço público era uma balbúrdia. Todos os funcionários eram nomeados por indicação política. Getúlio negociou com as circunstâncias, ao criar o DASP e instituir, ao mesmo tempo, o concurso público e as carreiras funcionais, mas deixando alguns cargos, “isolados e de provimento efetivo”, para atender às pressões políticas. Novos ministérios foram criados, a previdência social se institucionalizou, de forma bem alicerçada, e o Presidente pensou grande, nos movimentos que conduziriam a um projeto nacional de independência econômica e soberania política.
Homem vindo do Sul, conhecedor dos problemas da fronteira e dos entreveros com os castelhanos ao longo de nossa história comum, Getúlio tinha, bem nítidos em seus apontamentos pessoais, os sentimentos de pátria. Daí o seu nacionalismo sem xenofobia, uma vez que não só aceitava os estrangeiros entre nós, como estimulava a imigração, ainda que mantivesse restrições com relação a algumas etnias, como era do espírito do tempo.
Vargas sabia que certos setores da economia, ligados ao interesse estratégico nacional, tinham que estar sob rígido controle do Estado, como os de infraestrutura dos transportes, da energia e dos recursos minerais. Daí o Código de Minas, de 1934, e a limitação dos juros, mediante a Lei da Usura, do ano anterior. A preocupação maior foi com o povo brasileiro.
Getúlio conhecia, e respeitava, a superioridade dos argentinos na política nacional de educação. Ele, vizinho do Uruguai e da Argentina, sabia que a colonização portuguesa nisso fora inferior à da Espanha, que não tolhera as iniciativas dos criollos (como eram chamados os nascidos na América) em criar centros de ensino.
A Argentina, ainda em 1622, já contava com a Universidade de Córdoba. Só dois séculos depois (em 1827, com a Independência) surgiriam os primeiros cursos de Direito em São Paulo e em Pernambuco. No Brasil, apenas os senhores de engenho do Nordeste e os mineradores e comerciantes ricos de Minas enviavam seus filhos à Universidade de Coimbra ou aos centros universitários de Paris e Montpellier, na França.
Um dos primeiros atos do Governo Provisório foi criar o Ministério da Educação e Saúde: na visão ampla de Getúlio, as duas categorias se integram. Sem educação, não há saúde, e sem saúde, educar fica muito mais difícil. Essa visão social, que ele demonstrara na campanha da Aliança Liberal, nos meses anteriores à Revolução, estava submetida ao seu sentimento patriótico, à sua idéia de Nação.
Todos os golpes que se fizeram no Brasil, entre eles a tentativa que o levou ao suicídio, foram antinacionais, como antinacional foi o governo neoliberal de Fernando Henrique, que se identificou como o do “fim da era Vargas”. Por tudo isso, passados estes nossos tristes anos, o governo dos tucanos paulistas e acadêmicos da PUC do Rio de Janeiro estará esquecido pela História, enquanto a personalidade de Vargas só crescerá – porque o seu nome se associa ao da pátria, esse sentimento meio esquecido hoje. E as pátrias têm a vocação da eternidade.
Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.
Os parlamentos serviam para o exercício intelectual dos bacharéis ilustrados, vindos das fazendas, mas com leituras dos clássicos do pensamento político em moda, como Guizot e Thiers, Acton e Burton, Cleveland, Jefferson e Lincoln. Eram, em sua maioria, fiéis defensores do imobilismo que favorecia o seu bem-estar e o domínio político das famílias a que pertenciam.
A Revolução de 30 correspondeu, assim, a uma nova proclamação da República. Ao romper o acordo tácito entre as oligarquias, provocou a reação de São Paulo, a que se aliaram alguns conservadores mineiros.
Isso não esmoreceu Getúlio e seus colaboradores mais próximos, como Oswaldo Aranha e Alberto Pasqualini, empenhados em ações revolucionárias que conduziriam à construção do verdadeiro estado nacional. Getúlio acreditava que sem cidadãos não há nação. Por isso empenhou-se em integrar os trabalhadores na sociedade brasileira, reconhecendo-lhes alguns direitos já concedidos nos países industrializados europeus e convocando-os, mediante sua liderança e o uso dos instrumentos de propaganda da época, a participar da vida política, com a sindicalização e as manifestações populares.
Os estados necessitam de instituições bem estruturadas, e Getúlio, dentro das limitações do tempo, as criou. O serviço público era uma balbúrdia. Todos os funcionários eram nomeados por indicação política. Getúlio negociou com as circunstâncias, ao criar o DASP e instituir, ao mesmo tempo, o concurso público e as carreiras funcionais, mas deixando alguns cargos, “isolados e de provimento efetivo”, para atender às pressões políticas. Novos ministérios foram criados, a previdência social se institucionalizou, de forma bem alicerçada, e o Presidente pensou grande, nos movimentos que conduziriam a um projeto nacional de independência econômica e soberania política.
Homem vindo do Sul, conhecedor dos problemas da fronteira e dos entreveros com os castelhanos ao longo de nossa história comum, Getúlio tinha, bem nítidos em seus apontamentos pessoais, os sentimentos de pátria. Daí o seu nacionalismo sem xenofobia, uma vez que não só aceitava os estrangeiros entre nós, como estimulava a imigração, ainda que mantivesse restrições com relação a algumas etnias, como era do espírito do tempo.
Vargas sabia que certos setores da economia, ligados ao interesse estratégico nacional, tinham que estar sob rígido controle do Estado, como os de infraestrutura dos transportes, da energia e dos recursos minerais. Daí o Código de Minas, de 1934, e a limitação dos juros, mediante a Lei da Usura, do ano anterior. A preocupação maior foi com o povo brasileiro.
Getúlio conhecia, e respeitava, a superioridade dos argentinos na política nacional de educação. Ele, vizinho do Uruguai e da Argentina, sabia que a colonização portuguesa nisso fora inferior à da Espanha, que não tolhera as iniciativas dos criollos (como eram chamados os nascidos na América) em criar centros de ensino.
A Argentina, ainda em 1622, já contava com a Universidade de Córdoba. Só dois séculos depois (em 1827, com a Independência) surgiriam os primeiros cursos de Direito em São Paulo e em Pernambuco. No Brasil, apenas os senhores de engenho do Nordeste e os mineradores e comerciantes ricos de Minas enviavam seus filhos à Universidade de Coimbra ou aos centros universitários de Paris e Montpellier, na França.
Um dos primeiros atos do Governo Provisório foi criar o Ministério da Educação e Saúde: na visão ampla de Getúlio, as duas categorias se integram. Sem educação, não há saúde, e sem saúde, educar fica muito mais difícil. Essa visão social, que ele demonstrara na campanha da Aliança Liberal, nos meses anteriores à Revolução, estava submetida ao seu sentimento patriótico, à sua idéia de Nação.
Todos os golpes que se fizeram no Brasil, entre eles a tentativa que o levou ao suicídio, foram antinacionais, como antinacional foi o governo neoliberal de Fernando Henrique, que se identificou como o do “fim da era Vargas”. Por tudo isso, passados estes nossos tristes anos, o governo dos tucanos paulistas e acadêmicos da PUC do Rio de Janeiro estará esquecido pela História, enquanto a personalidade de Vargas só crescerá – porque o seu nome se associa ao da pátria, esse sentimento meio esquecido hoje. E as pátrias têm a vocação da eternidade.
Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.
Domingo, 26 de Agosto de 2012
Notícias de agosto: de Vargas ao Mensalão
Por Saul Leblon
Os demais conheceram a fúria da multidão que trouxe a dor para a rua e extravazou um ressentimento que guardava no fundo do peito. E dele talvez nem tivesse consciência, até aquele momento.
Consternado com a notícia do suicídio que ecoava pelas rádios, o povo carioca perseguiu e escorraçou porta-vozes da oposição virulenta ao Presidente. A experiência da tragédia abalou o cimento da resignação cotidiana e a multidão elegeu seu alvo: cercou e depredou a sede da rádio Globo que saiu do ar.
A radiofonia concentrava então um poder e abrangência equivalentes ou superiores aos da televisão nos dias atuais. A emissora do jovem udenista Roberto Marinho cumpria o mesmo papel de âncora do diretório midiático que hoje desempenha o Jornal Nacional da mesma cepa.
Os veículos impressos, a exemplo do que também ocorre hoje,mantinham as aparências da legalidade.
Mesmo assim, carros de entrega do diário da família Marinho foram caçados, tombados e queimados nas vias públicas. Prédios de outros jornais que haviam aderido ao ultimato pela renúncia de Vargas conheceram a força da desaprovação popular.
Com a mesma manchete do dia anterior, atualizada pela fatalidade bombástica, exemplares do Última Hora eram disputados nas esquinas por uma população desesperada e perplexa em seu luto.
A tiragem extra de 850 mil exemplares, providenciada a toque de caixa por Wainer que trabalhava febrilmente, sustentou a declaração desassombrada de Getúlio, pronunciada 24 horas antes. Agora, porém, revigorada pela mão de mestre do editor: “O presidente cumpriu a palavra -"Só morto sairei do Catete!”.
Nenhum outro jornal quis ou poderia estampar o recado de um morto que conduziu assim a alça do próprio caixão até o imaginário popular . E ali perpetuou a sua influência ainda inexcedível na história brasileira.
Vargas fora eleito três anos antes, em 3 de outubro de 1950, aos 67 anos de idade. Mais que uma vitória, fora uma afronta à esférica oposição das classes dominantes e ao boicote da grande mídia, vitaminados pela rejeição de intelectuais, vacinados contra a virulência e a censura do Estado Novo.
A campanha varguista rompeu o cerco percorrendo o país com uma frota de caminhões munidos de caixas de som. Em cada morada do voto fazia-se a ampla distribuição de panfletos. Neles, a promessa revolucionária de um Brasil nacionalista e de feição popular.
Vargas confirmou o carisma nas urnas. Foram quase 4 milhões de votos, contra pouco mais de 2 milhões do brigadeiro das elites, Eduardo Gomes.
A derrota, antes de aplacar açulou a esférica rejeição conservadora ao seu nome.
Premonitório, o Presidente incentivou Samuel Wainer , que conhecera como repórter dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, a criar um poderoso aparato de imprensa diária.
Queria pressa. Pediu a Wainer um antídoto ao que antevia como 'um pacto de silêncio' da grande mídia contra seu governo, que dele só trataria para denegrir.
Getúlio não era persecutório, mas visionário. E não desprezava os sinais, sobretudo os ostensivos.
Em 1950, quando admitiu em entrevista ao próprio Wainer que poderia ser candidato, Carlos Lacerda escreveu na Tribuna de Imprensa, em 1º de junho: "O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
O velho caudilho sabia o que o esperava no crepúsculo da volta ao poder.
Wainer montou uma empresa moderna, um jornal arrojado, com financiamento levantado junto a um pool de bancos, entre eles o Banco do Brasile a Caixa Econômica Federal, mas também obteve recursos de casas privadas, através de Walter Moreira Salles.
Todas as empresas de comunicação da época eram de certa forma subsidiadas pelo crédito público. Com o Última Hora não foi diferente. Mas foi objeto de uma CPI.
Para desconcerto conservador o projeto de Wainer provou-se capaz de se pagar integralmente, graças ao sucesso estrondoso que acendeu a luz amarela no oligopólio midiático.
Wainer foi mais um acerto da intuição de Vargas. A primeira edição chegou às ruas menos de cinco meses depois da posse do presidente, quando o cerco oposicionista ainda não o sufocava.
Em 12 de junho de 1951, estavas nas esquinas do Rio e das principais capitais um diário inovador na forma e no conteúdo e fulminante na logística de distribuição.
Deve-se ao Última Hora a tradição da coluna dos leitores no país. A cobertura de bairro até então indigente foi elevada à categoria de pauta importante. A política era o seu forte.Mas a receita editorial buscava o olhar difuso da multidão urbana com uma mistura de colunistas de apelo popular, como Abelardo Barbosa , o futuro Chacrinha, ao lado de intelectuais sofisticados, a exemplo de Paulo Francis e do escritor Nelson Rodrigues.
Aos que criticavam o 'getulismo' do projeto, Wainer fazia questão de reafirmar a natureza de um conceito de independência que estarrrecia a elite e assombrava os endinheirados: somos um jornal independente porque de oposição às classes dominantes, e de apoio ao governo.
Não qualquer governo. O segundo Vargas. Aquele que criaria o BNDE (sem o 's' ainda) em 1952; a Petrobras em 1953, no auge da campanha 'o petróleo é nosso' , e anunciaria um aumento de 100% do salário mínimo no 1º de Maio de 1954.
Foi quando o Presidente já exausto pelo bombardeio oposicionista pronunciou talvez a sua mensagem mais importante. Mais até que o texto consagrado da carta testamento. De novo, então, foi o Última Hora que deu o destaque ao ensaio de despedida e de chamamento de um líder que três meses depois atiraria contra o próprio peito para não ceder à pressão da mídia pela renúncia.
Ao lado de João Goulart, recém afastado do governo por pressão da UDN, mas coberto de elogios pelo Presidente, que lhe creditou a paternidade do reajuste, Vargas falou aos trabalhadores que lotavam o estádio do Vasco, em São Januário no seu último 1º de Maio:
"A minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades (...) Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituí a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo"
Era uma rota de colisão incontornável.
Ao mesmo tempo em que espetara as estacas necessárias ao impulso industrializante da soberania nacional, com obras de infraestrutura, restrições ao capital estrangeiro e expansão do mercado interno, o segundo governo Vargas indiretamente pavimentava a geometria do cerco de interesses que hoje, como ontem, se opõem a esse projeto. Estreitavam-se as linhas de ataque a sua volta; ordenadas -como previra- pela corneta da mídia.
O cacho de forças silenciadas na vitória esmagadora de 1950 preservara intacta sua sonoridade junto à opinião pública. A estridência de uma narrativa que parecia ubíqua só era afrontada pela Última Hora.
À medida em que a incontinência dos decibéis superava o comedimento das formalidades e contaminava todo aparato midiático conservador, o duelo tornava-se a cada dia mais desproporcional.
Um entorno latejante de suspeição, corrupção e impasse aderia à imagem do governo assim apregoada dia e noite.
A pressão atingiu seu auge naqueles dias finais de agosto.
Cinquenta e oito anos depois do tiro que sacudiu o país, o volume asfixiante do coro conservador ainda pode ser ouvido e aquilatado.
Basta potencializar - um pouco - o jogral da condenação sumária sentenciada em cada linha, título, nota, coluna, fotomontagens, capas, escaladas televisivas e radiofônicas que nutrem o noticiário sobre o julgamento do chamado 'mensalão'.
O sociólogo Marcos Coimbra, presidente do Instituto de Pesquisas Vox Populi, em artigo recente, já mencionado nesta página, mensurou um pedaço dessa artilharia determinada a subordinar o discernimento da sociedade.
Nas quatro semanas até 13 de agosto, 65 mil textos foram publicados na imprensa sobre o "mensalão".
"No Jornal Nacional da Globo para cada 10 segundos de cobertura neutra houve cerca de 1,5 mil negativos", diz Coimbra.
Nas rádios, conectadas pela propriedade cruzada aos mesmos núcleos emissores, a pregação incessante é ainda mais desabrida e abusada -como naquele agosto de 1954.
O cerco promovido contra o PT atinge dimensões inéditas na asfixia a um partido político em regime democrático, na avaliação do governador Tarso Genro, em artigo recente na página de Carta Maior.
Entre um agosto e outro, algumas peças do paiol midiático permanecem. Outras se juntaram à tradição.Os personagens se renovam, mas o método se repete.
O arsenal udenista da suspeição e da condenação sumária, avesso ao contraditório, às provas e à isenção - despida do cinismo liberal da objetividade - forma um fio de continuidade que atravessa a régua desses 58 anos.
Compare-se alguns exemplos originários da mesma cepa de interesses, da mesma lógica inarredável, encadeiados com os mesmos propósito, formando um mesmo e único fio na linha do tempo:
Março de 54:
* A usina midiática de denúncias contra o governo Vargas lança uma bomba na praça . O escândalo da vez é a denúncia de que "os caudilhos populistas" Vargas e Perón (o peronismo era o chavismo da época) - planejavam um suposto "Pacto ABC" (Argentina –Brasil –Chile). A meta era "promover a integração sul-americana formando num arquipélago de repúblicas sindicais na região contra os EUA" (qualquer semelhança com a reação ao ingresso da Venezuela no Mercosul não é apenas coincidência)
* Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa e na rádio Globo, e a Banda de Música da UDN no Congresso – um pouco como o jogral que hoje modula as vozes da turma da mídia "ética" - martelavam a denúncia incansavelmente.
* Um ex-ministro rompido com Getúlio aliou-se a Lacerda para oferecer "evidências" das negociações entre Vargas e Perón. A inexistência de provas não demoveu a mídia que deu à fraude contornos de verdade inquestionável, independente dos fatos, das investigações e dos desmentidos.
Setembro de 1954:
* A dramaticidade do suicídio de Vargas em 24 de agosto iluminou o quadro político e incendiou a revolta popular contra o golpismo que recuou. Mas não cedeu. Em 16 de setembro lá estava Carlos Lacerda de volta novamente nos microfones da rádio Globo. O alvo agora era João Goulart, o herdeiro político do presidente morto, adversário certo da UDN no pleito de outubro de 1955. Na voz estridente do comentarista 'convidado' de diversos programas da emissora foi lida -'em primeira mão'- a "Carta Brandi". Uma suposta correspondência entre Jango e o deputado argentino Antonio Brandi; segundo Lacerda, a prova "definitiva" da conspiração para implantar "uma república sindicalista no Brasil".
* Na efervescência da guerra eleitoral, o escândalo levou o Exército a abrir inquérito imediatamente, enviando missão oficial a Buenos Aires para investigações. Conclusão oficial: tudo não passara de uma grosseira fraude, forjada e alimentada pela imprensa anti-getulista. Inútil.
* A exemplo dos que hoje sonegam às evidências contrárias o poder de mudar sentenças já pronunciadas pela mídia, Lacerda contratacou na Tribuna da Imprensa em outubro de 1955, um mês depois da derrota da UDN para JK e Jango: "(...) Se a carta não é verdadeira seu conteúdo está de acordo, mais ou menos, com o que se sabe da vida política do sr. Goulart..."
Qualquer semelhança com o malabarismo denuncista dos últimos anos não é mera coincidência.
O exemplo ilustrativo, a seguir, reúne autores, métodos e veículos em plena ação nos dias que correm:
Março de 2005:
" Documentos secretos guardados nos arquivos da Abin informam que a narcoguerrilha colombiana Farc deu 5 milhões de dólares a candidatos petistas em 2002 .Nos arquivos da Agência Brasileira de Inteligência em Brasília há um conjunto de documentos cujo conteúdo é explosivo. Os papéis, guardados no centro de documentação da Abin, mostram ligações das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) com militantes petistas. O principal documento (...)informa que, no dia 13 de abril de 2002, (...) o padre Olivério Medina, que atua como uma espécie de embaixador das Farc no Brasil, fez um anúncio pecuniário. Disse aos presentes que sua organização guerrilheira estava fazendo uma doação de 5 milhões de dólares para a campanha eleitoral de candidatos petistas de sua predileção (...) Um agente da Abin,( NR: quem, Dadá, o repórter auxiliar de Policarpo & Cachoeira já em ação?) infiltrado na reunião, ouviu tudo, fez um informe a seus chefes, e assim chegou à Abin a primeira notícia de que as relações entre militantes esquerdistas, alguns deles petistas, e as Farc podem ter ultrapassado a mera simpatia ideológica e chegado ao pantanoso terreno financeiro. Sob a condição de não reproduzi-los nas páginas da revista, VEJA teve acesso a seis documentos da pasta que trata das relações entre as Farc e petistas simpatizantes do movimento.(autor: Policarpo Jr.; veículo: revista Veja, edição 1896; 16 de março de 2005. Título: 'Laços explosivos' )
Os mesmos objetivos, os mesmos métodos, a mesma elasticidade ética.
A solitária trincheira do 'Última Hora' não existe mais para rebatê-los. O jornal foi comprado, sugestivamente, em plena ditadura Médici, em 1971, pela família Frias, que edita a Folha de São Paulo.
Descaracterizado em imprensa sensacionalista saiu de circulação nos anos 90. Do seu vazio brota hoje um ramo vigoroso, igualmente inovador na forma, no conteúdo e na agilidade: o jornalismo digital independente.
Juntando pedaços , porém, é impossível não temer o ectoplasma presente de Lacerda e do udenismo.
Egressos da surra histórica naquele agosto em que o Última Hora e seus leitores reescreveram a narrativa do país nas ruas, eles persistem no cerco ao Catete. A qualquer Catete que dentro tenha um homem público disposto a assumir a tarefa que o mais mítico de todos eles deixou inconclusa, porém agendada na advertência de um estampido que sacudiu o discernimento nacional na manhã de 24 de agosto de 1954.
Nenhum comentário:
Postar um comentário