quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Livro: 'Me Leva nos Braços, Me Leva nos Olhos'

Atriz e diretora teatral Annamaria Dias autografa Me leva nos braços, me leva nos olhos durante uma tarde de bate-papo em São Paulo 
 
 
São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

Livro relata experiência teatral na extinta Febem

MARCOS FLAMÍNIO PERES
DE SÃO PAULO

O nome Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor já era uma ironia cruel quando a atriz Annamaria Dias foi convidada, em 1986, para iniciar um projeto pioneiro: dar aulas de teatro aos menores infratores do complexo Tatuapé.
A ideia era aproximar os dois grupos em confronto constante -adolescentes e monitores-, embora em um cenário desolador. Pouco tempo antes, a unidade, hoje desativada, fora palco de mais uma rebelião, que havia reduzido a escombros parte das instalações.
"Havia monitores que me ajudavam muito; em geral, eles deveriam ser educadores, mas muitas vezes agiam como carcereiros", lamenta a atriz, que participou de clássicos da teledramaturgia brasileira, como as novelas "O Meu Pé de Laranja Lima" e "A Viagem".
Sua experiência, que duraria dois anos, ela relata agora no livro "Me Leva nos Braços, Me Leva nos Olhos". Na verdade, trata-se quase de um "Estação Carandiru" versão "de menor".
Mas vê alguma semelhança entre seu livro e o do médico Drauzio Varella? "Acho que temos um olhar humanista sobre o problema." E complementa: "Os menores já estão punidos por estarem lá dentro. Por mais que se diga que se trata de uma fundação, aquilo é uma prisão!".

FUGA DO TEATRO
O diagnóstico que faz dos internos é duro: "São muito sem rumo e por isso se apegam aos traficantes. As quadrilhas se tornas suas famílias, é onde se sentem poderosos... São analfabetos, não tem estudo nem profissão".
Mas brincar de faz de conta na Febem -sucedida, desde 2006, pela Fundação Casa- podia ser algo perigoso.
"Em uma das apresentações que fizemos fora da unidade, em Ribeirão Preto (SP), houve fuga de dois menores [depois recapturados], e tivemos que cancelar a peça."
E qual era a função do teatro nesse meio? Ela afirma que sempre trabalhava com psicólogos, porque havia assuntos que os internos só expressavam durante os ensaios. "O teatro é poderoso", afirma Dias, que participou de peças de sucessos como "Trair e Coçar É Só Começar".

VIDA PÓS-FEBEM
A atriz diz ter deixado o trabalho na unidade porque lhe propuseram tornar-se funcionária da instituição, algo que não queria.
Mas manteve contato por certo tempo com alguns dos ex-internos. "Um deles chegou a trabalhar comigo como técnico de luz e áudio. Depois, acho, continuou trabalhando, assim como um ex-interno que era músico.
De outro, que chama no livro de Fabiano (nome fictício, como todos os demais), só foi ter notícia nas páginas policiais, por estar envolvido em um sequestro.
Desde então, perdeu contato com todos.
Sentiu falta deles? "Muita." E se arrepende de algo? "Sim, de não ter adotado um menino, que tinha entre seis e sete anos à época. O tio deixou ele lá por não ter condição de criá-lo, e o pessoal da Febem cuidava dele."
Mas ela lamenta sobretudo que o projeto tenha acabado. "Tudo depende da política. Para fazer um trabalho desses, é preciso dinheiro."
E conclui indignada: "Esse problema já era para ter sido sanado na nossa sociedade. O país é rico, a gente paga muito imposto. E onde isso é aplicado? Não adianta, o indivíduo que não tem formação, que não tem cultura, infringe mesmo, porque é mais fácil. E isso não mudou".

"Fiquei exposta, mas nunca tive medo", diz atriz
Os quatro adolescentes que participaram de uma série de agressões na avenida Paulista e em uma casa noturna em São Paulo, no último dia 14, "têm que tomar cuidado", avalia Annamaria Dias. Eles estão hoje em uma unidade da Fundação Casa.
Também fala, na entrevista, dos arriscados exercícios teatrais em que internos e monitores trocavam de papeis. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Folha - Como deve estar sendo a recepção, na Fundação Casa, aos jovens envolvidos em agressões na Paulista?
Annamaria Dias -
Deve ser péssima. Lá dentro sempre houve alguns códigos. Por exemplo, os menores não gostavam de quem matava pai de família.
E o que faziam?
Eles os matavam. Respeitavam quem "desandava" -isto é, virava mulher. Mas não respeitavam quem desandava para ter favorecimento lá dentro. Certa vez, fiz um exercício em que interpretavam juízes e julgavam severamente quem desrespeitasse a lei!

O limite entre ficção e realidade era tênue para eles?
Demais.

E você não tinha medo?
Nunca. Às vezes até me expunha, ao entrar sozinha no pátio. Os monitores ficavam loucos, mas os menores percebiam que eu não tinha nenhum tipo de prevenção contra eles. Também chamava a atenção, se necessário.

Como foi ter presenciado uma rebelião lá dentro?
Quando uma unidade se rebelava, todas as outras iam atrás, e o que aconteceu foi que eu estava com o grupo de teatro na unidade mais próxima de onde ocorria a rebelião. E, claro, não podiam saber disso! Foi uma loucura, mas consegui segurá-los lá dentro fazendo teatro.

O uso de drogas era comum?
À época ainda não havia o crack, só cola. Maconha só de vez em quando; cocaína era raro ver. E também não havia crime organizado como hoje.

O diálogo era a base de tudo?
Sim. Os próprios internos começaram a chamar os colegas que faziam teatro de "grupo de elite".

Qual foi a experiência mais marcante?
A estreia de "Menino de Rua" em Ribeirão Preto. Quando a cortina se abriu e os internos apareceram dançando... Acho que nunca chorei tanto na vida.

ME LEVA NOS BRAÇOS, ME LEVA NOS OLHOS
AUTORA
Annamaria Dias
EDITORA Vida & Consciência
QUANTO R$ 49 (528 págs.)

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