22/07/2013
Corporativismo médico e miséria moral
Walquíria Leão Rego, socióloga, professora titular da Unicamp e autora do "Vozes da Bolsa Família"
Nos dias tensos e intensos que o país vive nas
últimas semanas em virtude da emergência de vários fatores, a incerteza
sobre os destinos da economia e, em especial, as manifestações massivas
dos jovens de classe média, abriram a caixa de Pandora do país, expondo
seus males históricos e estruturais, entre eles, a precariedade absurda
da mobilidade urbana das grandes metrópoles.
O
Movimento Passe Livre (MPL), que fez as primeiras convocações, teve uma
adesão enorme e, com isto, tornou público o sofrimento cotidiano da ida
e vinda ao trabalho de milhares de pessoas que padecem horas em trens,
metrôs e ônibus superlotados, pagando caro por um serviço indigno.
A
magnitude das manifestações pareceu a muitos um raio em céu azul. Penso
que surpreendeu a todos. Ainda estamos ensurdecidos e perplexos com a
forma como tomaram as ruas, e mais ainda com a violência da repressão
policial que se abateu sobre elas, em especial em São Paulo e no Rio de
Janeiro, ampliando ainda mais o número de manifestantes. A geração de
1968 não teve como não se lembrar das pancadarias que viveu sob a
ditadura militar a cada protesto coletivo realizado.
Os
manifestantes escancararam a precariedade da prestação de todos os
serviços públicos. No bojo da explosão reivindicatória, em que a questão
da Saúde Pública compareceu fortemente, tornou-se público, ou
mais difundido, o projeto governamental Mais Médicos, que se apresentara
inicialmente como a necessidade emergencial de contratação de médicos
estrangeiros diante da carência desses profissionais no Brasil. Logo mais, a proposta de inclusão de um estágio no SUS de dois anos, com certa semelhança à residência médica.
Depois
disto o governo anunciou a precedência nos contratos para médicos
brasileiros, com salários de R$ 10.000, casa e alimentação para a
família, desde que aceitassem trabalhar nas regiões brasileiras mais
carentes destes profissionais. O que se viu diante dessas
propostas? Passeatas de jovens estudantes de medicina contestando com
veemência retórica e gestual o projeto governamental. Alguns cartazes exibidos foram escritos com dizeres de um grotesco assustador, além de escancararem preconceitos de várias ordens.
Um dos males de nossa caixa de Pandora reside na péssima formação cívica que guardamos como herança intocável de nossa formação. Habita soberana entre nós uma enorme ausência de qualquer coisa como espírito público e republicanismo. Aspecto ressaltado por todos os nossos clássicos.
Imediatamente, mesmo se consideramos que o projeto foi apresentado de
modo inábil, ou sem a devida discussão com a sociedade e com os
movimentos sociais, a grande mídia não teceu nenhuma crítica à
falta de civic culture dos nossos doutores. Ao contrário, em vez de se
preocupar com a sorte dos sem-médicos, entrou em cena desqualificando
completamente as propostas, e com isto reforçando o já poderosíssimo
corporativismo médico.
Todos
conhecem no Brasil a força dessa corporação e a “eficácia de sua voz”,
para usar um conceito do economista Albert Hirchsmann. É bom lembrar
que os que tiveram o privilégio de estudar nas universidades públicas – infelizmente no
Brasil ingressar em uma universidade pública, e muito mais em um curso
de medicina, constitui um privilégio, e não um direito universal – tiveram seu curso pago com dinheiro de todos nós. È o povo brasileiro que paga os doutorados e pós-doutorados no exterior e
o resultado deste investimento da nação foi excelente: temos ótimos
médicos. A medicina brasileira não deve nada aos melhores centros
médicos de excelência mundial.
Contudo, no interior deste processo de formação de médicos de alta qualidade técnica se oculta uma grande tragédia. Essa medicina está concentrada nas regiões ricas do país e serve a pouquíssimos brasileiros, ou melhor, serve aos ricos.
Na
outra ponta da nação existem milhões de brasileiros cujas vozes e
grandes sofrimentos ninguém ouve, pois a grande mídia não fala deles,
são invisíveis, são silenciados exatamente pela sua pobreza. Estes não têm médicos.
Centenas de cidadezinhas não dispõem de nenhum profissional para
socorros emergenciais e para salvar vidas. Estão alijadas do sistema de
saúde porque são vítimas de uma mentalidade e de uma visão de profissão elitista e individualista.
Existem outras formas mais nobres de enxergar a medicina – por exemplo,
a de uma organização como Médico Sem Fronteiras, que enfrenta situações
mais duras em países em guerra, como o Afeganistão e outros, totalmente
desprovidos de qualquer estrutura de equipamentos médicos. Salvo
engano, são considerados excelentes profissionais. Mas esta é outra
história.
Em uma viagem de pesquisa, nos fundões da Bahia, entrevistei uma mulher que chegara aos 50 anos sem conhecer este personagem, o médico. Passara a vida em curandeiros/as e ingerindo as tais garrafadas “medicinais”. Nossa tragédia neste campo não para aí. A pergunta que temos na garganta é: por que os médicos agem de forma tão desumana,
se recusando a sair das grandes e médias cidades para salvar vidas e,
com isto, respeitar o direito mais elementar dos homens, o direito à
vida?
Esta questão se desdobra na constituição de uma medicina sem alma, calcada em uma ideologia absolutamente mercantil da profissão.
Tal processo formativo modela a expectativa entre os jovens candidatos a
médicos, que se tornam pessoas, donas de atitudes e sentimentos
desprovidas de qualquer compromisso com seus concidadãos, com seu país.
Justíssima
a posição de vários deles de dizer que o crônico problema da Saúde
Pública no Brasil não se resolve apenas com mais médicos, mas com
investimentos vultosos em postos de saúde, hospitais e equipamentos
médicos. No entanto, as pesquisas mostram que isso não é tudo. O jornal
O Estado de S. Paulo exibiu em suas páginas uma reportagem, no dia 14
de julho/2013, com a seguinte informação: “Número de médicos não segue crescimento de infraestrutura. Nos
últimos cinco anos, a infraestrutura de Saúde no Brasil cresceu em
ritmo mais acelerado do que o número de médicos que atendem a população.” Ainda mais, demonstra graficamente a grande defasagem entre as duas variáveis. Ou
seja, existem hospitais fechados por ausência de médicos dispostos a
trabalhar neles e as populações dessas cidades têm de enfrentar viagens
longas para ter acesso a uma consulta em uma cidade maior. Muitas destas travessias terminam com a morte precoce
de pessoas que não suportaram a viagem. E as periferias e
hiperperiferias urbanas têm a mesma carência de médicos. Tornou-se comum
aos doentes esperarem horas, às vezes dias, depois de viajar nos
malfadados ônibus lotados e chegarem aos postos de saúde e não
encontrarem médicos.
Em
suma, como começar a desatar, ou para ser mais precisa com a lenda,
cortar o nó górdio da ausência de médicos? Puxando algum fio, pode ser
pelo caminho mais carregado de interesses particularistas, ou
seja, daqueles interesses voltados à reserva de mercado e à
exclusividade da pratica médica para brasileiros que não querem se
deslocar dos grandes centros, portanto um profissional escasso. Isto tem um nome: chama-se manutenção de privilégios corporativos e absoluta ausência de responsabilidade moral. Começa por não se colocar uma questão simples: devolver à sociedade que pagou os seus estudos alguma dedicação a ela.
Muitos médicos com quem converso há anos sobre isso atribuem esta atitude ao tipo de formação profissional que as atuais faculdades de medicina fornecem aos seus estudantes, ou seja, as escolas formam mentes
excessivamente voltadas para o mercado, para as especialidades mais
rentáveis, e ignoram as necessidades do País e de seu povo. Como se sabe, muitos países adotam a contratação de médicos estrangeiros, uma vez diagnosticada a carência destes profissionais. Vejamos os nossos dados sobre a distribuição dos médicos pelo território nacional. Segundo o Ministério da Saúde,
existe no País 1,8 médico por mil habitantes, ao passo que na Argentina
a fração é 3,2; no Uruguai, 3,7; em Portugal, 3,9, e na Grã-Bretanha,
2,7. Portugal, que tem 4 médicos por mil habitantes, tem um programa de
atração de médicos cubanos, hondurenhos e costa-riquenhos para atender
nas regiões rurais. Dezessete por cento dos médicos que
atuam no Canadá são estrangeiros; em algumas províncias, o número chega
a 60%. Lá se atrai o médico sem a validação do diploma.
A
validação do diploma e o controle da qualidade dos profissionais
estrangeiros contratados deve ser um quesito inegociável. Fora disto, e
da constatação absolutamente verdadeira de que o financiamento a saúde
permanece precário e insuficiente, as manifestações da corporação até agora só revelam uma coisa: tratam-se de posições corporativas, estreitas, egoístas e com facetas de insensibilidade moral e social assustadoras.
Que
setor profissional recebeu a oferta de começar a vida na profissão com
salários de R$ 10.000 – em alguns municípios até de R$ 20.000? Ainda
assim, os doutores não consideram essas vantagens suficientemente
atrativas para salvar vidas nos cantos mais pobres de nosso país e de
nossas grandes cidades. A nota predominante é a recusa de servir às populações mais indefesas, mais carentes. Em outras palavras, os médicos se mostram incapazes de cooperar para a melhoria da qualidade de vida dos seus concidadãos.
John Stuart Mill dizia que um
dos princípios cardeais do desenvolvimento da cidadania estava na
formação de pessoas com “capacidade de cooperar” na busca de melhorias
para a sociedade. O que estamos assistindo, por parte da corporação médica, com as louváveis exceções de sempre, é o oposto disto. Tem
prevalecido o mais absoluto individualismo negativo, aquele que é
totalmente indiferente ao sofrimento socialmente evitável de seus
concidadãos. Com isto, predomina a miopia ética e social e a perda completa da capacidade de olhar o outro e suas necessidades. Trata-se de um caso – ou de mais um caso – de escancaramento de incapacidade cooperativa no país.
Outro grande autor, Antonio Gramsci insistia que se
deter apenas no momento corporativo da ação coletiva significa que o
interesse geral jamais será contemplado. O particularismo dos interesses
se torna quase uma segunda natureza, que endurece as pessoas a tal
ponto que a vida e a morte do outro passa a não fazer parte do seu
universo mental.
Como
na abertura da caixa de Pandora, que joga ao mundo todos os males,
permaneceu no seu fundo apenas um elemento, a esperança. Mas, depois de
assistir pela televisão que o grande número de inscrições para o concurso médico era maior que a oferta de vagas, e que paira no ar a suspeita da sabotagem dos doutores ao concurso, a esperança posta no fundo da nossa caixa de Pandora se metamorfoseou em pessimismo da indignação. O caso dos médicos pode se transformar em caso de polícia.
* Walquíria Leão Rego é professora titular de Teoria Sociológica da IFCH-Unicamp
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