Domingo, 16 de Outubro de 2011
A farsa da Selic
Amir Khair
Enquanto a Europa vai afundando na crise e os Estados Unidos amargam uma estagnação com elevado desemprego, aqui o desafio é retomar o crescimento e controlar a inflação. Os últimos dados apontam para um crescimento tendendo a 3,5% e inflação a 6,5%. O que fazer? Ativar a economia pela ação do governo ou continuar desativando para segurar a inflação?
Essa discussão ganhou força após o Banco Central (BC) reduzir meio pontinho na Selic. O debate se acirrou entre os guardiões da inflação e os desenvolvimentistas. Apesar das fortes divergências os dois lados ainda atribuem à Selic o poder mágico de controlar a inflação e o crescimento. Mas e se ela não servir para isso? Nesse caso se terá dado ao longo de vários anos o remédio errado com sérios prejuízos à saúde do País. Por isso é essa a questão central do debate. Vamos avaliar.
1. Posições - Os guardiões da inflação, liderados pelo mercado financeiro, vêem inflação crescente devido ao que consideram excesso da demanda em relação à oferta interna. Não leva em conta a oferta externa para atender a demanda. É como se a economia fosse fechada para as importações. Então, para combater a inflação advogam a redução da demanda via elevação da Selic. Se o BC não mantiver a Selic em nível elevado, perde a credibilidade e não ancora as expectativas dos formadores de preços. Para essa corrente o País não pode crescer mais do que 3,5% e a taxa de juros reais (excluída a inflação) cair abaixo de 5%, pois fatalmente seria rompido o teto da meta de inflação de 6,5%.
Os guardiões da inflação sempre usaram a chantagem inflacionária para pressionar o BC a manter a Selic elevada. Não querem perder o comando das decisões do BC, como sempre tiveram, e ainda tem a coragem de afirmar que ele era independente, mas agora com a nova política do governo deixou de sê-lo. São espertos, pois apresentam argumentos de ameaça inflacionária e em seguida a solução milagrosa da Selic. Essa posição é frágil por não considerar o impacto externo na economia tanto para a inflação quanto para o crescimento, além de atribuir à Selic um poder de alteração na inflação e crescimento que não tem, como será visto à frente.
A outra posição, agora defendida pelo governo, é de que a inflação vai depender dos preços internacionais em queda devido à crise, e a economia está patinando, o que reduz o potencial de demanda. Nessa situação, a Selic pode cair sem maiores problemas para a inflação. Essa corrente defende que é possível manter a inflação dentro do limite da meta, com um crescimento de 5% e defende estímulos à economia.
A falha dessa posição é que a Selic só pode cair se a inflação externa o permitir. O governo só foi acordar recentemente para reduzir a Selic quando viu que a economia estava perdendo força devido à crise em expansão. Poderia ter ativado os investimentos das empresas não elevando a Selic cinco vezes neste ano passando-a de 10,75% para 12,50%. Errou, pois também atribuiu à Selic o poder de controle da inflação e do crescimento. Parece que mudou quanto ao poder mágico da Selic.
2. Inflação - O mercado financeiro e o BC prevêem inflação acima da meta de 4,5% neste e no próximo ano. Usam modelos sofisticados para as previsões, mas como as variáveis desses modelos podem assumir valores imprevisíveis, o resultado pode se afastar da realidade, pois prever a inflação está sujeito a erro crescente quanto maior o período considerado. As falhas ocorrem mesmo para um mês à frente, como se deu de junho a agosto de 2010, quando o mercado financeiro previu inflação de 0,4% em cada mês e ela foi zero. Assim, essas previsões para 2011 e 2012 podem ser puro chute.
A inflação no mundo todo bem como aqui vai depender, em boa medida, do resultado entre a queda dos preços em dólares das commodities e o câmbio que depende da insegurança gerada pela crise. Após a súbita desvalorização cambial, que atingiu nos primeiros dias do mês R$ 1,90, volta agora para R$ 1,70 a R$ 1,75, o que permitirá redução nos preços das commodities em reais e seu impacto na contenção inflacionária. Em setembro o índice CRB, que mede os preços das commodities, caiu 10,7%, o maior tombo desde outubro de 2008, ápice da crise financeira com a quebra do Lehman Brothers. A recessão na Europa e EUA pode pôr fim a um ciclo de demanda aquecida e preços estratosféricos. Tudo dependerá em grande parte da China, que já dá sinais de desaceleração na atividade econômica devido às restrições do mercado externo.
Caso a inflação média mensal de outubro a dezembro fique em 0,49%, não será rompido o teto da meta de 6,5%. Existe essa possibilidade. Embora o IPCA de setembro tenha sido de 0,53%, o IPC Fipe registrou inflação de 0,25% e a cesta básica ficou mais barata. Outro fato é que a inflação traz consigo poderoso antídoto para a redução do consumo, pois atua diariamente corroendo o poder aquisitivo, que só poderá se recuperar parcialmente mais à frente. Os fracos resultados da atividade econômica registrados nos últimos meses já captam os efeitos da perda do poder aquisitivo para manter o consumo em nível elevado. E nada disso é devido à Selic.
3. Farsa da Selic – As duas posições atribuem à Selic o poder milagroso de controlar a inflação e o crescimento, mas não é o que ocorre, pois ela não altera o preço dos alimentos, transportes, habitação, preços internacionais, serviços, oferta de crédito e valor das prestações, que explicam a evolução do IPCA. Serve, no entanto, para desestimular os investimentos das empresas, o custo do capital de giro, reduzindo a oferta presente e futura. Assim, em vez de atenuar a inflação a Selic a agrava.
Os guardiões da inflação são mestres para usar a farsa da milagreira Selic. Para isso procuram espertamente confundir para a opinião pública a Selic com a taxa de juros da economia. É mais uma farsa grotesca, pois a distância entre elas é significativa. A taxa de juros à pessoa física estava em 46,2% em agosto e a Selic em 12,5%, ou seja, 33,7 pontos acima. No caso do cheque especial, muito usado para ampliar o consumo, estava em 188% ou 15 (!) vezes a Selic. Outra farsa usada pelos guardiões da inflação está no uso do conceito ultrapassado de taxa de juros neutra (?) como sendo a mínima necessária para conter a inflação. Esse conceito usa a Selic como sendo a taxa de juros da economia e o Brasil uma economia fechada, sem sofrer a influência dos preços internacionais. Nada mais irreal.
Dada a distância entre a Selic e a taxa de juros do mercado, cada uma segue o seu curso, inclusive em sentidos opostos, como em 2010. Enquanto a Selic subiu dois pontos passando de 8,75% para 10,75%, a taxa de juros da pessoa física caiu 2,4 pontos passando de 43,0% para 40,6%. Internacionalmente a taxa de juros básica real (excluída a inflação) é negativa em 0,5% e 1,0%, respectivamente para os países emergentes e países desenvolvidos. E a taxa de juros da economia é da ordem de 3% acima da básica. Assim, quando a taxa básica é alterada há o reflexo na taxa de juros da economia. Na China, por exemplo, a taxa básica é de 3% e a taxa de juros da economia de 6%, a mesma da inflação.
4. Mudança - Parece que o governo felizmente percebeu que a inflação e o crescimento não dependem da Selic, portanto, o uso dela é desnecessário. Em seu lugar poderá voltar a usar as medidas macroprudenciais – abandonadas neste ano em prol da Selic - para regular o consumo ao nível da expansão da massa salarial. Assim pode pilotar com eficácia uma das pernas do consumo, que é o crédito, agindo sobre a inflação e o crescimento econômico.
A Selic deverá iniciar uma gradual redução até chegar ao nível dos emergentes. Com isso reduz a especulação externa sobre o real, não distorce o câmbio, a conta de juros cai pela metade com economia de R$ 120 bilhões (!) ou 3% do PIB. Vão sobrar recursos para atender o déficit social e de infraestrutura, fortalecendo os fundamentos macroeconômicos, melhorando o ambiente social, com reflexos importantes no comando político. O País engoliu a farsa da Selic por mais de vinte anos! Bem vinda a mudança.
(*) Mestre em Finanças públicas pela FGV e consultor.
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