domingo, 9 de outubro de 2011

Che Guevara e os mortos que nunca morrem



Domingo, 09 de Outubro de 2011

Che Guevara e os mortos que nunca morrem

Eric Nepomuceno

No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967 – as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda para ir de La Higuera a Argel.

Vinte dias depois, já de volta a Paris, onde vivia, Cortázar escreveu uma carta ao poeta cubano Roberto Fernández Retamar contando o que sentia: “Deixei os dias passarem como num pesadelo, comprando um jornal atrás do outro, sem querer me convencer, olhando essas fotos que todos nós olhamos, lendo as mesmas palavras e entrando, uma hora atrás da outra, no mais duro conformismo... A verdade é que escrever hoje, e diante disso, me parece a mais banal das artes, uma espécie de refúgio, de quase dissimulação, a substituição do insubstituível. O Che morreu, e não me resta mais do que o silêncio”.

Mas escreveu:

Yo tuve un hermano
que iba por los montes
mientras yo dormía.
Lo quise a mi modo,
le tomé su voz
libre como el agua,
caminé de a ratos
cerca de su sombra.
No nos vimos nunca
pero no importaba,
mi hermano despierto
mientras yo dormía,
mi hermano mostrándome
detrás de la noche
su estrella elegida.


A ansiedade de Cortázar, a angústia de saber que não havia outra saída a não ser aceitar a verdade, a neblina do pesadelo do qual ninguém conseguia despertar e sair, tudo isso se repetiu, naquele 9 de outubro de 1967, por gente espalhada pelo mundo afora – gente que, como ele, nunca havia conhecido o Che.

Passados exatos 44 anos da tarde em que o Che foi morto, o que me vem à memória são as palavras de Cortázar, o poema que recordo em sua voz grave e definitiva: “Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás da noite sua estrela escolhida”.

No dia anterior, 8 de outubro de 1967, um Ernesto Guevara magro, maltratado, isolado do mundo e da vida, com uma perna ferida por uma bala e carregando uma arma travada, se rendeu. Parecia um mendigo, um peregrino dos próprios sonhos, estava magro, a magreza estranha dos místicos e dos desamparados. Foi levado para um casebre onde funcionava a escola rural de La Higuera. No dia seguinte foi interrogado. Primeiro, por um tenente boliviano chamado Andrés Selich. Depois, por um coronel, também boliviano, chamado Joaquín Zenteno Anaya, e por um cubano chamado Félix Rodríguez, agente da CIA. Veio, então, a ordem final: o general René Barrientos, presidente da Bolívia, mandou liquidar o assunto.

O escolhido para executá-la foi um soldadinho chamado Mario Terán. A instrução final: não atirar no rosto. Só do pescoço para baixo. Primeiro o soldadinho acertou braços e pernas do Che. Depois, o peito. O último dos onze disparos foi dado à uma e dez da tarde daquela segunda-feira, 9 de outubro de 1967. Quatro meses e 16 dias antes, o Che havia cumprido 39 anos de idade. Sua última imagem: o corpo magro, estendido no tanque de lavar roupa de um casebre miserável de uma aldeola miserável de um país miserável da América Latina. Seu rosto definitivo, seus olhos abertos – olhando para um futuro que ele sonhou, mas não veria, olhando para cada um de nós. Seus olhos abertos para sempre.

Quarenta e quatro anos depois daquela segunda-feira, o homem novo sonhado por ele não aconteceu. Suas idéias teriam cabida no mundo de hoje? Como ele veria o que aconteceu e acontece? O que teria sido dele ao saber que se transformou numa espécie de ícone de sonhos românticos que perderam seu lugar? Haveria lugar para o Che Guevara nesse mundo que parece se esfarelar, mas ainda assim persiste, insiste em acreditar num futuro de justiça e harmonia? Um lugar para ele nesses tempos de avareza, cobiça, egoísmo?

Deveria haver. Deve haver. O Che virou um ícone banalizado, um rosto belo estampado em camisetas. Mas ele saberia, ele sabe, que foi muito mais do que isso. O que havia, o que há por trás desse rosto? Essa, a pergunta que prevalece.

O Che viveu uma vida breve. Passaram-se mais anos da sua morte do que os anos da vida que coube a ele viver. E a pergunta continua, persistente e teimosa como ele soube ser. Como seria o Che Guevara nesses nossos dias de espanto? Pois teria sabido mudar algumas idéias sem mudar um milímetro de seus princípios.

Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia.  Assim seria ele hoje.

Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o Che.

E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória, merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. Como o Che.

Che no México: imagens de um rebelde

Luis Hernández Navarro - Correspondente da Carta Maior na Cidade do México

Em uma das estantes de um sebo do bairro Roma na Cidade do México há uma fotografia de Ernesto Che Guevara. Entre milhares de livros usados, o velho revolucionário que teria completa 83 anos de idade no dia 14 de junho, olha para o futuro. A imagem pode ser vista praticamente em qualquer canto de qualquer país. Foi tirada, na tarde opaca de 5 de março de 1960, com uma câmara Leica e uma lente de 90 milímetros por Alberto Korda, durante a homenagem às vítimas da sabotagem do barco francês La Coubre, dinamitado pela CIA. Sete anos mais tarde, morto Guevara, o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli estampou-a em milhões de cartazes. Desde então tem sido utilizada em cartazes, capas de publicações, tatuagens, oferendas de mortos e como ilustração em camisetas e taças para café.

O Che deve estar à vontade entre o mar de letras que inunda essa livraria. Nos momentos mais difíceis de sua epopeia boliviana levava consigo material de leitura. Antes que a chuva acabasse com ela, manteve uma pequena biblioteca em uma gruta onde guardava poemas de León Felipe, publicações médicas, folhetos de Mao Tse Tung e “Minha Vida”, de León Trotski. Entre os vários pedidos que havia feito a sua esposa encontravam-se livros, especialmente “História da decadência e da queda do Império Romano”, de Gibbon.

Ernesto Guevara, o guerrilheiro, o homem de ação, também foi um homem de letras. Cresceu lendo Julio Verne, Miguel de Cervantes Saavedra, Federico García Lorca e Joseph Conrad. Bebeu nas águas do marxismo em sua própria fonte e não fugiu do estudo dos heterodoxos.

Ironicamente, apesar de ser muito fácil hoje encontrar velhas edições das obras de Marx e Lenin em muitas livrarias de antiguidades da Cidade do México, é difícil encontrar textos do Che. Há anos, quando os antigos esquerdistas arrependidos decidiram livrar-se de suas bibliotecas marxistas, não incluíram na venda suas cópias de “Passagens da Guerra Revolucionária”, da “Obra Revolucionária” (publicada por Editorial ERA, do México, em 1970), nem os nove volumes da coleção “Escritos e Discursos” (publicada pela Editora de Ciências Sociais de Havana, em 1977). E quando algum texto do guerrilheiro argentino chega a algum sebo, dura pouco tempo nas estantes.

Com dedicatória
Uma fotografia de Ernesto Guevara fez parte da cenografia montada para a cerimônia de transmissão de cargo do presidente do Chile, Salvador Allende, no dia 3 de novembro de 1970. Em seu primeiro discurso como presidente, o dirigente da Unidade Popular, apresentou o argentino como um exemplo para a juventude, convencido de que poucas vezes houve um homem que soube demonstrar com tanta consequência, generosidade e desprendimento suas ideias. “O Che – assegurou – tinha tudo e renunciou a tudo para tornar possível a luta continental”.

Não era a única fotografia do revolucionário argentino que Allende tinha. Em seu gabinete, no Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, o também médico guardava um retrato do internacionalista, com uma dedicatória que dizia: “A Carmen Paz, Beatriz e María Isabel, com o carinho fraterno da Revolução Cubana e o meu próprio”. Na mesma sala, conservava também um pequeno grande tesouro: um dos primeiros exemplares impressos de “A guerra de guerrilhas”. De próprio punho, o autor escreveu: “A Salvador Allende, que por otros médios trata de obtener lo mismo. Afectuosamente, Che”.

Vidas paralelas e convergentes, no dia 26 de junho completaram-se cento e três do nascimento do chileno. Sua morte, como a do argentino, fechou um ciclo de lutas pela emancipação na América Latina.

Da mesma maneira pela qual Salvador Allende fez de Che parte do processo transformador no Chile, no México as ideias do médico combatente foram naturalizadas mexicanas. Afinal, ele viveu aqui durante quase dois anos, casou-se e teve sua primeira filha aqui. Aqui trabalhou como fotógrafo para a Agência Latina, como alergista e pesquisador no Hospital Geral e no Hospital Infantil. No México, conheceu Fidel Castro, embarco no Granma e partiu para se encontrar com seu destino.Este ano – escreveu na parte final de seu diário mexicano – pode ser importante para meu futuro”.

A revista Política, criada em 1960, divulgou no México os avatares da Revolução Cubana, até que a intolerância governamental asfixiou a publicação em 1967. Em suas páginas, começou a se construir o mito do Che para os leitores nacionais. Em seu número 7, narrava-se um encontro realizado com o comandante na Universidade de Havana. “Guevara – contou Ezequiel Martínez no texto – é testemunha de que estamos diante de fatos e seres novos, que se afastam dos caminhos do recuo (pavimentados, certamente) e abrem uma brecha no monte por onde iam os escravos fugitivos e os rebeldes acossados”.

A influência da epopeia cubana ressoara forte entre os revolucionários mexicanos e estimularia a formação das primeiras guerrilhas modernas durante a década de 60. A mensagem de que “o primeiro dever de todo revolucionário é fazer a revolução”, encontrou muitos ouvidos dispostos a escutá-la.

A literatura sobre a experiência do processo cubano que circulava entre os militantes de esquerda era originalmente escassa. Faziam parte dela os discursos do Che e de Fidel Castro e a primeira e segunda Declaração de Havana. Três contribuições sobre a guerra de guerrilhas sistematizadas pelo argentino foram lidas, estudadas e assimiladas pelos futuros combatentes mexicanos: 1) As forças populares podem fazer e ganhar uma guerra contra o exército; 2) Nem sempre é o caso de esperar que se deem todas as condições para a revolução; 3) Na América subdesenvolvida, o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo.

Estas experiências pioneiras tiveram um saldo trágico, ainda que tenham servido para dar um grande impulso à luta pela democracia no México. No entanto, seria injusto limitar a influência do Che em nosso país à formação desses focos armados. Sua presença impactou e serviu de guia e exemplo a intelectuais, ativistas, professores universitários e líderes camponeses convencidos da necessidade de contar com um projeto emancipador, e que não optaram pela luta armada.

Ecos de Vallegrande
A revista Alarma, conhecida por sua propensão ao escândalo fácil e aos temas escabrosos, com uma ampla circulação e muito lida entre as pessoas mais pobres, reproduziu a foto do Che morto. Aqueles que não sabiam de sua existência ou tinham uma vaga noção dela, passaram a saber quem ele era. Seu cadáver esquelético sobre a lápide de concreto no depósito de Vallegrande, seu peito descoberto e o rosto sereno, o cabelo penteado e a barba aparada, faziam com que parecesse não como o perigoso “vermelho” que ameaçava a estabilidade das boas consciências, mas sim como um redentor sacrificado que expiava os pecados dos seus semelhantes.

Paco Ignacio Taibo II, seu biógrafo, contou a comoção que sua morte produziu em uma geração de ativistas:

Sua morte em 1967 – escreveu – nos deixou um enorme vazio que nem sequer o Diário da Bolívia conseguiu preencher. Ele era o fantasma número um. O que não estava e estava rondando nossas vidas, a voz, o personagem, a ordem vertebral de “dirige-te inteiro para um lado e prontamente comece a caminhar”, o diálogo brincalhão, o projeto, a foto que te olha em todas as esquinas, a anedota que crescia e crescia acumulando informações que pareciam não ter fim, a única maneira pela qual frases de bolero como “entrega total” não pareciam risíveis. Mas, sobretudo, o Che era o tipo que estava em todos os lados depois de morto. Nosso morto.

A notícia impactou profundamente a esquerda mexicana. Seus integrantes tiveram sentimentos de raiva, dor e vingança. Um grupo de jovens integrantes do Partido Mexicano dos Trabalhadores e do Movimento da Esquerda Revolucionária Estudantil decidiram fazer-lhe justiça. Fazendo-se passar por turistas em busca de informação, entraram na embaixada da Bolívia na Cidade do México com uma pequena bomba contida em um aerossol. Em um momento de descuido da secretária, a colocaram debaixo de uma mesa. Uma voz anônima anunciou sua existência. A polícia a retirou, mas ela acabou explodindo em um laboratório nas mãos de um especialista. No dia 26 de novembro de 1967, os responsáveis materiais e intelectuais pelo ato justiceiro foram presos. Passaram seis anos na cadeia.

O mito do Che cresceu então entre os estudantes, sem importar a que corrente política pertencessem. Fragmentada em grupelhos maoístas, trotskistas, espartaquistas, marxistas-leninistas e castristas, a esquerda mexicana respeitou a figura do internacionalista, ainda que não compartilhasse sua visão do processo revolucionário.

Em janeiro de 1968, A Cultura no México, suplemento da revista Siempre!, publicou o prólogo à segunda edição da Obra revolucionária, escrito pelo poeta cubano Roberto Fernández Retamar, intitulado “Herói da América, do mundo”. O sotaque do Che, diz o escritor da Casa das Américas, não era “nem argentino nem mexicano nem cubano nem espanhol”, mas sim uma mistura de todos. Na mesma publicação se difundem dois poemas dedicados ao revolucionário. Um de Mário Benedetti e outro de Julio Cortazar. O cronópio dizia sobre seu conterrâneo: “Eu tive um irmão/ Nunca nos vimos/mas não importava”.

Nesse mesmo ano, Casa das Américas dedicou o número 46 da revista ao Che. Colaboraram em suas páginas, entre outros, Alejo Carpentier, Ítalo Calvino, Angel Rama e Luis Cardoza y Aragon. Muitos desses artigos foram amplamente reproduzidos no México.

Quando o movimento estudantil-popular de 1968 estourou, os jovens tomaram as ruas gritando “Che, Che, Che Guevara/ Díaz Ordaz é um filho da puta” e “Criar um, dois, três, muitos Vietnãs. Junto com Ho Chi Minh, Guevara foi um dos revolucionários estrangeiros que reivindicaram a revolta sem ambiguidade alguma. Ao concluir a marcha de 27 de abril, foram colocados retratos do guerrilheiro na fachada do Palácio Nacional, enquanto a bandeira rubro-negra tremulava no mastro monumental do Zócalo. O auditório Justo Sierra da Faculdade de Filosofia foi rebatizado como Che Guevara. Desde então, sua imagem tem sido um emblema recorrente entre os estudantes que tomam ruas e ocupam praças públicas.

Aqueles que, como modernos narodnikis, deram continuidade a suas aspirações de mudança indo viver e trabalhar no campo, colônias populares e fábricas, batizaram seus grupos, organizações e bairros que nasceram da luta com o nome de Che Guevara. O mesmo fizeram estudantes com seus comitês de luta e casas.

Em fevereiro de 1968 apareceu o primeiro número da revista Por quê?, dirigida pelo polêmico jornalista Mario Menéndez Rodríguez, preso em fevereiro de 1970 sob a acusação de integrar o grupo próximo ao guerrilheiro Genaro Vázquez Rojas. No final do ano seguinte, ele se exilou em Cuba, como resultado de uma troca de vários prisioneiros políticos pelo reitor da Universidade de Guerrero, sequestrado pela Associação Nacional Revolucionária. Ao longo de 324 números, a revista difundiu extensamente materiais sobre a Revolução Cubana e seus dirigentes.

Eduardo del Río, Rius, publicou em 1978 seu livro ABChe, uma biografia do internacionalista que, no estilo clássico do autor, combinava a ilustração com pequenos textos escritos. Ainda que anos mais tarde se tornasse um crítico da experiência cubana, editou ainda Cuba para principiantes, um dos livros mais lidos sobre a revolução na ilha em todo o mundo. Ambos os materiais desempenharam um papel muito importante na divulgação da vida do Che entre um amplo universo de leitores. Distintos artistas e intelectuais encontraram em O socialismo e o homem em Cuba um texto que reivindicava o princípio de autodeterminação dos artistas, ou seja, o princípio da não intervenção dos dirigentes políticos sobre o campo estético. Uma ferramenta de ação nada desprezível em tempos de realismo socialista.

O retrato que olha
A porta de “A Guadalupana”, a clínica do caracol de Oventic onde se atendem enfermos, está flanqueada por uma pintura do Che Guevara e outra de Emiliano Zapata.

Em território zapatista, os índios rebeldes constroem a autonomia sem pedir permissão a ninguém. Com paciência, encarregam-se da educação, do abastecimento, da justiça, da saúde, de projetos agroecológicos. Dali, o revolucionário argentino olha como a semente que semeou há quase meio século germina na laboriosa marcha das formigas que se inspiram em seu exemplo.

A relação do Che com o zapatismo tem uma longa história. Em 1984, dez anos antes do levante armado que os tornou conhecidos no México e no mundo, os rebeldes montaram um acampamento guerrilheiro batizado como Che Guevara. Desde o acampamento, em ondas curtas, escutavam a rádio Havana Cuba.

Com base no levante, nasceram mais de três dezenas de municípios rebeldes, que não são reconhecidos pelo governo, mas que representam as comunidades e suas populações. Com eles surgiu uma nova nomenclatura. Alguns foram batizados com datas históricas do movimento, ou com o nome de personagens-chave na formação da guerrilha ou na história do México popular. Há, com certeza, um município que atende pelo nome de Che Guevara.

A cada 8 de outubro, Dia do Guerrilheiro Heróico, as comunidades autônomas celebram a seu modo o comandante caído. Há bailes, músicas de marimba e palavras. Os discursos lembram, sobretudo, a dimensão moral do médico revolucionário, seu compromisso, sua postura de estar onde tinha que estar. Nos acampamentos, estuda-se sua vida e sua obra. A ética guevarista está presente tanto entre os insurgentes quanto em suas bases de apoio. Não há figura revolucionária que, naquelas latitudes, tenha o tamanho do médico que deixou de sê-lo.
Os zapatistas asseguram que sua consigna de “Para todos tudo, nada para nósé um princípio ético que tomaram do reconhecimento e da ascendência ética proveniente do Che. Reivindicam fazer parte, não exclusiva, de sua herança de rebeldia, de sua aspiração por um mundo melhor, de seu desejo de um ser humano melhor e da necessidade de lutar para construir esse mundo e para se converter em um homem melhor.
Cuba – disse o subcomandante Marcos – não era, para as comunidades que depois seriam zapatistas, um país estrangeiro. Era, é, um povo que levantava, e levanta, a dignidade como só a levantam os de baixo, ou seja, com decisão e firmeza, resmungando entre os dentes o “aqui ninguém se rende.

Segundo o subcomandante, o Che é parte de uma geração que ainda não termina de nascer. Sua “grande contribuição, sua grande herança, é o valor ético de uma proposta que lhe valeu o reconhecimento não só dos setores de esquerda, mas também da direita e de seus inimigos. É a consequência de uma forma de pensar e de viver até as últimas consequências de acordo com essa forma de pensar. O Che, disse, “está mais perto de nós do que muitos pensam”.

Che, Zapata e Jaramillo
José de Molina, o cronista musical das lutas populares no México, falecido em 1998, conhecido como “o guerrilheiro da palavra”, rendeu-lhe uma sentida homenagem na canção intitulada “Che Guevara”. No entanto, mais que nesta música, a intensidade com que se vive em nosso país o processo de “naturalização” do Che, de torná-lo nosso, pode ser visto na forma pela qual o público se acostumou a cantar uma de suas canções mais conhecidas e celebradas: o hino que compôs à memória do líder campesino morelense Ruben Jaramillo, o herdeiro de Emiliano Zapata assassinado pelo governo em 1962.

Muitas vezes, tanto nos inúmeros concertos que Molina realizou como nas interpretações de suas obras por outros músicos, a imaginação popular substitui a estrofe original da canção que diz “Três cavaleiros no céu, cavalgavam com muito brio/esses três cavaleiros são:/Deus, Zapata e Jaramillo”, por “Três cavaleiros no céu/cavalgavam com muito brio/esses três cavaleiros são:/Che, Zapata e jaramillo”. Desta maneira, converte o revolucionário argentino-cubano em parte do santoral laico, nacional e popular, quer dizer, torna-o seu.

Apesar de que, como assinala Fernández Retamar, o sotaque de Che não é “nem argentino, nem mexicano, nem cubano, nem espanhol, mas sim uma mescla de todos”, a oitenta anos de seu nascimento, como mostram os zapatistas chiapanecos, ou os sebos do bairro Roma, ou tantos e tantos jovens, o Che continua cavalgando nos céus do México.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer


A 44 anos do assassinato de Che, o estranho final de Gary Prado Salmón

Oscar Guisoni - Especial para Carta Maior

Na última vez que o vi, o seu olhar de velha raposa com cara de “eu não fiz nada”, talvez um gesto impostado para dissimular que atrás dessa máscara se esconde um militar mestiço da velha escola, desses que combateram e levam nos seus ritos a marca da norte e do medo. A chancelaria boliviana tinha montado uma recepção, um desses típicos coquetéis para embriagar o espírito crítico dos jornalistas e o ex-general Gary Prado passeava em sua cadeira de rodas, orgulhoso por sua recente nomeação como embaixador do México. Ainda recordo desse olhar. Gary Prado Salmón não é um nome fácil de esquecer.

Minha primeira intenção foi perguntar-lhe sobre os acontecimentos em que se envolveu, nos arredores de La Higuera, o povoado onde [Che] Guevara foi preso, mas um colega, relações públicas da chancelaria, desaconselhou que o fizesse. “O general fica aborrecido se lhe perguntam sobre isso. Não quer que lembrem dele só porque foi quem capturou Che”. Aceitei o conselho, ainda que tenha ficado com a dúvida, já que a velha raposa era famosa por suas relações promíscuas com a imprensa e até se deu ao luxo de escrever um livro chamado “A guerrilha imolada”, no qual diz que não participou do assassinato do guerrilheiro argentino, mas não explica por que mentiu durante anos sobre o destino de seus ossos, sustentando que tinham sido incinerados, quando na realidade tinha os enterrado numa vala comum junto aos seus companheiros de armas justiçados na época.

Os que o conhecem bem afirmam que o general fez tanto esforço para se distanciar da execução de Guevara ordenada pelo alto comando militar boliviano, porque o angustia a suposta “maldição” que pesa sobre os que estiveram presentes naquele dia, em La Higuera.

Alguns meses mais tarde, quando estava na redação do periódico La Prensa, em La Paz, uma colega irrompeu alegre na reunião de pauta. “Viram o que fizeram com Gary Prado no México?”. O escritor e crítico de cinema Alberto Hijar tinha jogado uma taça de vinho na cara dele, numa recepção, gritando “à saúde de Che, assassino”. Sua nomeação como embaixador tinha despertado a ira da esquerda local e com o correr dos dias até os próprios políticos bolivianos que o haviam nomeado reconheciam a torpeza. Sobre os bolivianos sempre pesou que lhes identifiquem como a terra em que Guevara foi morto, e tornar Prado Salmón embaixador pelo mundo não era exatamente um modo de contribuir para que as pessoas esquecessem do opróbio.

A vida do militar ficou marcada a fogo pelos acontecimentos de que tomou parte, como simples capitão, aos 28 anos. Em agradecimento pelos serviços prestados, sua carreira nas forças armadas foi meteórica, mas tornou-se truncada num obscuro dia de 1981, quando a maldição de Che finalmente golpeou a sua porta. A versão mais benévola dos fatos diz que o general tentou impedir que seus camaradas pusessem em marcha um dos tantos golpes de estado que assolaram o país durante o século XX, a mais neutra assegura que se tratou de um acidente, o certo é que uma bala foi disparada em circunstâncias nunca esclarecidas, na sala em que se encontrava, atravessou a sua coluna vertebral e perfurou o seu pulmão. Foi assim que ficou confinado a uma cadeira de rodas para o resto da vida.

Em 1982, a democracia chegou para ficar na Bolívia e o general já aposentado compreendeu que para seguir fazendo carreira teria que meter-se na política e, numa manifestação de cinismo maiúsculo, incorporou-se ao Movimento de Esquerda Revolucionária de Jaime Paz Zamora. O MIR chegou ao poder em 1989 afastando-se de seus ideais marxistas e abraçando-se a uma aliança com o ex-ditador Hugo Bánzer, o homem que apenas alguns anos antes de vangloriava de matar “miiristas” sem nenhuma consideração. Nas águas turvas da medonha política boliviana da época, Gary Prado Salmón nadou como um peixe, fazendo jus a seu curioso sobrenome. A chegada do indígena Evo Morales – um fervente admirador de Che Guevara- ao poder, em 2005, pegou a velha raposa dando aulas em uma universidade privada da revoltosa Santa Cruz de la Sierra, na cadeira de Relações Internacionais.

Em 16 de abril de 2009, um operativo policial inusual, por sua magnitude e sua violência, irrompeu em um hotel de Santa Cruz de la Sierra, onde se alojavam os membros de um suposto comando terrorista que tinha entre seus planos acabar com a vida do presidente Morales. Após um intenso tiroteio, as forças de segurança anunciaram a morte de Eduardo Rózsa Flores – aparentemente o líder do comando – e grande parte de seus cúmplices. A conjuração mais extravagante da história contemporânea boliviana tinha chegado ao seu fim.

Segundo a investigação que se seguiu ao impressionante tiroteio no hotel Las Américas, em pleno centro de Santa Cruz, no dia 16 de abril de 2009, Rózsa Flores havia entrado na Bolívia com a tarefa expressa de organizar um grupo paramilitar para defender Santa Cruz de uma improvável invasão ordenada pelo presidente Morales desde La Paz. Confiando na força de seus padrinhos políticos, eles se registraram no hotel como seus nomes verdadeiros, tiraram várias fotos com suas armas em mãos e até se deram ao luxo de gravar um vídeo caseiro durante o transcurso da reunião na qual planejaram colocar uma bomba debaixo do barco que iria levar todo o gabinete presidencial através do lago Titicaca para participar de um ato público na Ilha do Sol.

A investigação posterior concluiu que Gary Prado fazia parte do grupo terrorista na qualidade de assessor. “O governo quer me prender porque eu capturei o Che”, queixou-se alguns dias mais tarde, consciente do poder simbólico que ainda tem sua figura. “É até risível que um general com a trajetória que tive, venha obedecer ordens de um mercenário”, disse a BBC. O processo ainda continua aberto, mas nada faz presumir que os últimos dias de Gary Prado Salmón sejam aprazíveis. A maldição de Che Guevara ainda tem suas garras longas.

(*) Jornalista, correspondente na Espanha do jornal Página/12, da Argentina, do Il Manifesto, da Itália, e de El Observador Global, portal de informação internacional latinoamericano. Colaborador do suplemento dominical do jornal Milênio, do México; da revista Arcadia, Colômbia e da revista Gatopardo, México.

Tradução: Katarina Peixoto

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