Sexta-Feira, 21 de Outubro de 2011
Argentina: livros que são o país
Eric Nepomuceno
Em Buenos Aires, num dos blocos que integram o soturno e solene conjunto onde um dia esteve a Escola de Mecânica da Armada, a ESMA, o mais notório centro de torturas da ditadura argentina, hoje funciona o Centro Cultural da Memória Haroldo Conti. O conjunto de edifícios cor de cinza, todos mais ou menos da mesma altura – três andares de pé direito alto –, cercados por jardins e bosques bem cuidados, tem o ar lúgubre e marca um tempo de terror.
Lá dentro passaram opositores à ditadura militar, de ativistas de organizações armadas a estudantes desarmados, de líderes sindicais a profissionais liberais, de jovens a velhos, e ali muitas mulheres seqüestradas tiveram bebês que sumiram, doados a famílias de policiais e militares. Dali saíram dezenas de presos levados para os vôos da morte: dopados, eram enfiados em aviões e atirados vivos no mar ou no rio da Prata.
Dos pouco mais de cinco mil presos que passaram pela ESMA, os sobreviventes não somam 200.
Depois da chegada de Nestor Kirchner à presidência, e do advogado Eduardo Luís Duhalde à secretaria nacional de Direitos Humanos, em 2003, o conjunto de blocos tornou-se um lugar de preservação da memória, e também de reivindicação sem tréguas. Não à toa o Centro Cultural da Memória leva o nome de Haroldo Conti, um grande escritor, que foi das primeiras vítimas – seqüestrado, destroçado – da ditadura inaugurada pelo general Jorge Rafael Videla, o almirante Emilio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti, no nefasto março de 1976.
Há poucos dias foi aberta nesse Centro Cultural da Memória a exposição ‘200 anos, 200 livros’. Um grupo de 23 intelectuais, de diversas tendências e diferentes campos de ação, elaborou a lista dos livros que, no seu entender, desvendam o país. A exposição faz parte dos festejos de 200 anos da independência argentina. Fica aberta até o dia 12 de janeiro de 2012.
É claro que, como em toda seleção, a lista provoca alguma polêmica. Críticos e escritores estranharam a ausência de escritores como Tomás Eloy Martínez e José Bianco, ou de poetas como Alberto Girri e Miguel Angel Bustos, para citar quatro exemplos. Os ausentes, porém, não ofuscam os presentes. Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Juan Gelman, Hector Tizón, David Viñas, Rodolfo Walsh, Roberto Arlt, Horacio Quiroga, Juan José Saer, Manuel Puig, Haroldo Conti, Osvaldo Soriano, Daniel Moyano e Ricardo Piglia estão ao lado de outros escritores, poetas, historiadores, jornalistas, filósofos, autores de histórias em quadrinhos, e – como não? – Evita e Juan Domingo Perón.
A mostra tem uma estrutura curiosa: foram desenhadas sete linhas ferroviárias, atravessadas por um rio. Cada linha traz o nome de um autor: David Viñas, Ricardo Piglia, Jorge Luis Borges, Ezequiel Martínez Estrada, Rodolfo Walsh, Nestor Perlongher, Raúl Scalabrini Ortiz. Algumas estações levam a outras. O rio que as atravessa e une é Haroldo Conti.
Entre os 200 livros da mostra, e que desvendam a história da Argentina, está o relatório da comissão que investigou o terrorismo de Estado, o ‘Nunca más’. Entre os autores há dois que apoiaram Videla em março de 1976, Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato. Borges, aliás, apoiou todos os golpes militares da Argentina, a começar pelo que derrubou Perón em 1955. Internacionalista, louvou o general Augusto Pinochet no Chile. Já Sábato acabou voltando atrás, e se juntou aos que condenaram a ditadura.
Mas estão também os que viveram em carne própria o terrorismo de Estado. Hector Tizón, Daniel Moyano e Osvaldo Soriano, por exemplo, amargaram anos de exílio. Mesmo destino teve David Viñas, porém mais bárbaro: antes de ele ir embora mataram sua filha e seqüestraram sua neta recém-nascida. Juan Gelman soube, no exílio, do seqüestro de seu filho e de sua nora grávida. Ela foi levada para o Uruguai, numa operação do Plano Condor, onde teve, na prisão, uma menina que foi entregue a um chefe de polícia. Quase duas décadas depois, o poeta recuperou os restos do filho assassinado. Da nora, nunca mais nada. Gelman só recuperou a neta 24 anos mais tarde.
Há três nomes que reúnem toda a importância de realizar essa mostra no lugar onde ela está, marca máxima da barbárie.
Ali, na ESMA, foi visto pela última vez o corpo morto de Rodolfo Walsh, estrela luminosa do jornalismo e da literatura argentina. O poeta Francisco Urondo escapou do que estaria à sua espera naquelas masmorras, porque foi morto em Mendoza. Haroldo Conti foi destroçado em outro centro de tortura, não muito longe dali
De alguma forma, o reencontro dos três simboliza uma história que ninguém conseguiu nem consegue calar. A história do país.
Os 200 livros que contam a história da Argentina
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Sexta-Feira, 14 de Outubro de 2011
Duas lições dos tempos de horror na Argentina
Eric Nepomuceno
1. Dia desses, o Brasil devolveu para a Argentina um cidadão chamado Norberto Raúl Tozzo. Idade: 66 anos. Profissão: oficial do Exército. Atividade conhecida: assassino. Foi extraditado numa segunda-feira. Lá, na Argentina, teria sido condenado à prisão perpétua. Vai cumprir uns bons anos de cadeia, e depois volta às ruas: pelo tratado de extradição, não poderá ficar preso mais do que trinta anos. Como ficou três preso no Brasil, sai da cadeia daqui a vinte e sete. Se estiver vivo, terá 93 anos da idade.
Norberto Raúl Tozzo, major do Exército. Em 1976 ele tinha 31 anos. E jovens, muito mais jovens que ele, eram os 24 presos políticos que ele tirou da cadeia e mandou fuzilar, no dia 13 de dezembro de 1976, na província nortenha do Chaco. Pela lei argentina, não teria perdão. Pela lei brasileira, ele só foi extraditado porque dos que mandou matar, quatro nunca apareceram. Ou seja, não foram oficialmente mortos. Daí ele ter sido responsabilizado no Brasil por seqüestro continuado, seja lá o que isso for. Porque pelos outros fuzilados, estaria, no Brasil, tão livre quanto eu e você: o crime teria prescrito. É o que reza a nossa Lei de Anistia.
2. Dia desses, a Argentina condenou à prisão perpétua Juan Agustín Oyarzábal, de profissão delegado de polícia. Atividade: assassino, torturador, violador de presas políticas. Junto com ele foram condenados outros três policiais, um sargento e um coronel do Exército. Houve ainda um tenente, condenado a uma pena mais branda: doze anos de cadeia. Agora, são 240 os repressores dos tempos da ditadura militar condenados por crimes contra a humanidade: tortura, seqüestro, assassinato, violação. Que lá, como no resto do mundo, são crimes que não prescrevem.
O processo de Oyarzábal e companhia durou um ano. Chamou a atenção porque entre as pessoas que ele e seu grupo mataram estava o poeta Francisco Urondo, baleado em Mendoza no dia 17 de junho de 1976, mesmo dia em que Ângela Raboy, sua mulher, foi seqüestrada e desapareceu para sempre. A filha deles, Ângela, tinha onze meses de vida. Pouco depois foi encontrada pela família, numa creche. Aos 16 anos finalmente soube sua verdadeira história, e que seus pais não tinham morrido – conforme ela havia ouvido a vida inteira – num acidente de automóvel: tinham sido assassinados. De certa forma, Ângela teve sorte: em pelo menos 500 casos como o dela, os bebês foram entregues a policiais e militares. A imensa maioria deles – uns 400 – continua vivendo com outro nome. São centenas de pessoas que vivem uma vida inventada, não sabem quem são.
No rastro de horror, a ditadura militar argentina que durou de 1976 a 1983 ceifou alguns nomes essenciais da cultura contemporânea do país. Foram mortos o escritor Haroldo Conti, o cineasta Raymundo Gleyzer, o jornalista Enrique Raab, o jornalista e também escritor Rodolfo Walsh. O exílio foi tão grande que durante longos anos, parte do que havia de melhor nas artes e na cultura do país vivia no exílio: os cineastas Pino Solanas e Eduardo Mignogna, o poeta Juan Gelman, os escritores David Viñas, Hector Tizón, Daniel Moyano, Antonio di Benedetto, um sem-fim de atores, atrizes, compositores, cantores, pintores. Muitos dos que ficaram foram mortos.
Entre eles, Francisco Urondo – o Paco Urondo que escrevia poemas delicados e angustiados, às vezes furiosos. ‘Do lado de lá da grade está a realidade, deste lado da grade também está/ a realidade; a única coisa irreal é a grade’, diz um de seus derradeiros escritos, quando o país parecia um cárcere imenso.
Paco foi também militante político. Já antes do golpe de março de 1976 havia passado para a clandestinidade, o que significava, para quem, como ele, integrava os Montoneros, passar para a ação armada. Eram tempos de desespero. Tempos de morrer. Sabia que estava condenado. O que muitos amigos perguntam até hoje é por que os líderes Montoneros, sabendo disso, como ele sabia, deixaram que ficasse na Argentina.
Paco Urondo fez parte de uma geração brilhante da poesia argentina contemporânea. Apostou a vida, e explicou: “Minha confiança se apóia no profundo desprezo/ por este mundo desgraçado./Darei a vida/ para que nada continue como está”.
Em tempos normais teria sido preso e julgado. Em tempos normais não teria empunhado uma arma. Em tempos normais não teria sido morto a sangue frio. Passados 35 anos da sua morte, seus assassinos foram julgados, tiveram pleno direito à defesa – coisa que ele não teve – e foram condenados.
Francisco Urondo, o Paco dos amigos, apostou a vida e perdeu. O mundo continua desgraçado, mas a Argentina não continuou como estava. Francisco Urondo, o poeta militante, não pôde ver nada disso.
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