03/12/16
Fidel Castro, o Quixote que deu certo
Por Roberto
Amaral
O ancião
alquebrado que acaba de nos deixar venceu todos os adversários com os quais se
defrontou, e sempre em condições extremamente desvantajosas, e nenhum deles era
moinho de vento, pois todos inimigos ferocíssimos, riquíssimos, e o mais
perigoso de todos, o império norte-americano, armado com modernos escudos,
lanças e mesmo garras e dentes atômicos.
Fidel Castro, que o processo histórico
transformaria no principal líder latino-americano do século XX, líder
libertário da relevância de Ho Chi Minh e Nelson Mandela, foi, para os
oprimidos de todos os continentes, para o grande universo dos
subdesenvolvidos e particularmente para nós, latino-americanos, uma luz,
uma esperança, animando vontades e ajudando a realizar sonhos de libertação
nacional.
Aquele bastião de pé dizia que a luta continuava.
Com sua partida, encerra-se a saga dos heróis
cervantinos da Revolução Cubana, Fidel, Camilo Cienfuegos – que não conheceu o poder – e Ernesto ‘Che’
Guevara, que desprezou o
poder e o repouso do guerreiro: deixou saudade e saiu de cena admirado pelo
que não conseguiu fazer; sua imagem é icone de amigos e adversários,
multiplicada pelo sistema que não conseguiu abalar.
Fidel, com seus erros e seus méritos, foi o
amálgama da tríade, pois era o sonho sem limites, era a mística revolucionária,
mas era igualmente a práxis consciente de quem, sem renunciar ao sonho e mesmo
à aventura, dá os braços ao império da realidade objetiva.
A partir de Cuba – ilha irrelevante do ponto de
vista econômico, com seus 11 milhões de habitantes e 109.884 km2 de
extensão (menor do que o Ceará) em face de gigantes como o Brasil e os EUA
–, Fidel cumpriu, por décadas, com imensos sacrifícios para seu povo,
o papel de esteio da luta anticolonialista e anti-imperialista, indispensável
para a construção de um mundo socialmente menos injusto. Em quase toda a África
os soldados cubanos estiveram lutando – Angola é o exemplo mais relevante – em
defesa dos processos de libertação nacional.
Como poucos líderes revolucionários, Fidel
sobreviveu à sua obra e morreu como vencedor, e, como todos os vitoriosos
longevos pagaria alto preço no julgamento de seus contemporâneos. Ainda aguarda
o crivo da história.
Venceu antes de tudo a ditadura luciferina de Fulgencio Batista,
o criminoso desvairado, sem limites, encerrando décadas de assassinatos,
torturas e toda sorte de barbárie. Venceu
reiteradas vezes o poderosíssimo império americano, distante apenas 150
quilômetros de sua costa: venceu o general Dwight
Eisenhower, o primeiro presidente a decretar embargo comercial contra
Cuba (1960), venceu John F. Kennedy e a invasão
da Baía dos Porcos (1961), venceu Richard Nixon e
634 tentativas de assassinato comandadas pela CIA (O Globo,
27/11/2016); venceu todos os presidentes americanos contemporâneos a ele –
todos seus adversários e todos tentando a destruição do projeto cubano de
regime socialista, bem como tentando sua eliminação física.
Cuba e Fidel, a partir de certo momento uma
unidade, sobreviveram à queda do Muro de Berlim, à debacle da União Soviética e
à transição da China para o capitalismo de Estado. Sobreviveram à Guerra Fria e
à chantagem do conflito atômico. Sobreviveram ao cerco das ditaduras
latino-americanas instaladas em nosso continente pelos Estados Unidos nos anos
1960-1970.
Cuba,
enfim, superou mais de 50 anos de cerco político-econômico (em 1962 os
americanos decretam embargo econômico total à Ilha), diplomático e militar da
maior potência do mundo, sobreviveu à crise do socialismo real e à globalização.
Derrotou as oligarquias, os insurgentes, os sabotadores internos e externos.
Ao funeral de Fidel – liderança que os cubanos
dividem com parcelas significativas das grandes massas de nossos países –,
comparecerá um povo respeitado, soberano e solidário, orgulhoso de sua
trajetória e consciente de seu papel na história. Este, seu legado.
Com a exceção da revolução de 1917, e ao lado
certamente da Guerra do Vietnã, nenhum outro processo social terá
influenciado tanto o mundo, e principalmente nosso continente, quanto a
revolução cubana e nenhum líder exerceu tanto fascínio entre as multidões de
jovens esperançosos quanto Fidel.
Nenhum líder permaneceu no pódio por tanto tempo,
e não conheço outra identificação tão profunda, tão íntima entre o líder e
sua gente, entre a história do líder e a história de seu país. E muito
raramente um líder terá sido tão sujeito da história, artesão dos fatos,
cinzelando as circunstâncias.
A Cuba de
hoje resolveu problemas que ainda se agravam em países relativamente
ricos, como o nosso: erradicou a miséria e o analfabetismo, universalizou
o acesso à saúde de qualidade (apontado ao mundo pela OMS como exemplo a ser
seguido) e à educação. A Cuba que Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto
“Che” Guevara libertaram no réveillon de 1958-1959, porém, era, naquele então,
apenas o maior prostíbulo do Caribe, balneário de gângsters controlado pela
máfia e pelo tráfico, país sem economia própria, sem indústria, limitado à
monocultura do açúcar.
Ícone da luta anti-imperialista, ícone da
revolução em nosso continente, e de uma revolução socialista, símbolo da
preeminência da vontade política sobrelevando às teorizações, Fidel Castro,
líder de uma revolução impossível que no entanto se fez real, foi o grande nome
de minha geração que em 1960 ingressava na universidade.
Cuba era a
nossa Dulcineia, a ínsula que o sonho do cavaleiro nos prometia. Cuba era
uma esperança, sua resistência, sua sobrevivência valia como o certificado de
que eram possíveis e viáveis todos os nossos sonhos de jovens socialistas que
logo seriam chamados para o enfrentamento da ditadura militar instalada em
1964.
Permito-me reproduzir aqui algumas palavras do
prefácio que tive a honra e o prazer de escrever para o belo livro de Cláudia Furiati, Fidel Castro – Uma biografia consentida:
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