quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

10 razões para amar o Cristo de Saramago






Socialista Morena, 22/12/16



10 razões para amar o Cristo de Saramago (ainda que você não seja cristão)



Por Cynara Menezes




Tem um livrinho clássico de Miguel de Unamuno -São Manuel Bueno, Mártir’ - que conta a história do padre de uma cidadezinha no interior da Espanha que esconde um terrível segredo. O segredo de Dom Manuel, admirado por todos os moradores graças a sua bondade, generosidade e pelas palavras que apaziguam corações, é que ele não tem fé. Imaginem: um padre que não crê. E a maior prova de fé do padre sem fé é levar o consolo da religião aos demais, sendo que ele mesmo não o possui.

Eu estou aqui para fazer viver as almas dos meus paroquianos, para fazê-los felizes, para que sonhem ser imortais e não para matá-los. (…) Com a verdade, com a minha verdade, não viveriam. Que vivam. E isto faz a Igreja, fazê-los viver. Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto forma de fazer viver espiritualmente aos povos que as professam, enquanto lhes consolam de haver tido que nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, ainda que o consolo que lhes dou não seja o meu”, diz Dom Manuel no livro, ao revelar o segredo a seu “confessor”.

Vejo esta “fé dos que não têm fé” muito presente no livro ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Ateu, Saramago criou um Cristo maravilhosamente falível, capaz de revigorar a fé de muitos. Na época em que foi lançado, em 1991, o livro sofreu ataques da igreja católica, porque Saramago ousou mexer com os dogmas do cristianismo. O então sub-secretário de Estado da Cultura português, Antonio Sousa Lara, chegou a vetar o romance em uma lista de indicações literárias sob o argumento de que ofendia a “moral cristã”. Quando Saramago morreu, em 2010, o jornal do Vaticano o chamou de “ideólogo antirreligioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma”.

Leram muito mal o romance, porque não há nada mais cristão do que este evangelho de um ateu: é o retrato de um Jesus Cristo humano, demasiado humano, consciente da grandeza de sua tarefa e aterrorizado por ela. Não era esta a intenção de Deus ao mandar seu filho à Terra, que ele fosse o mais próximo possível de seus semelhantes, em vez do Cristo “divino”, milagreiro e marqueteiro de si mesmo que surge nos evangelhos?

De certa forma, o escritor português melhorou o Jesus do Novo Testamento ao desnudar a complexidade (e a crueldade) do papel que lhe cabia na história. Quem lê a obra de José Saramago não sai menos cristão e sim mais solidário a Jesus. Não dá para entender como puderam ficar contra um livro que é impregnado do mais puro, verdadeiro cristianismo. Desconfio que Saramago era como o Dom Manuel de Unamuno, só que ao contrário. Sua assumida falta de fé ocultava uma fé profunda –na humanidade.

Veja abaixo 10 razões para amar o Cristo de Saramago (ainda que você seja ateu).

1. Maria, como toda mãe, não é virgem: Jesus é gerado não pela visita de um anjo, mas pela conjunção carnal entre Maria e seu marido José. A semente de Deus está misturada à de José. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado”.

2. Jesus nasce da mesma maneira que todo mundo: “O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso de suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

3. Os “reis” magos trazem presentes úteis: os três “reis magos” são, na verdade, pastores, e, em vez de trazerem ouro, incenso e mirra, presentes absolutamente inúteis naquela situação, trazem leite, queijo e pão.

4. José e Jesus têm uma relação pai-filho: ao contrário dos relatos do Novo Testamento, que praticamente ignoram a existência de relação entre Jesus e seu pai terreno, o carpinteiro José, o evangelho de Saramago mostra que eles tinham uma proximidade especial e se irmanam na morte, crucificados injustamente ambos aos 33 anos.

5. Jesus é moreno: no Novo Testamento não há alusão à aparência de Jesus, o que favoreceu a imagem europeizada que se fez dele, louro de olhos azuis, pouco condizente com a aparência de um palestino. “Os cabelos são pretos como os do pai e da mãe, as íris já vão perdendo aquele tom branquiço a que chamamos cor de leite não o sendo, tomam o seu próprio natural, o da herança genética direta, um castanho muito escuro.”

6. O demônio não é tão feio quanto pintam: o “pastor” do romance de Saramago é um dos “reis” que visitam Jesus ainda na manjedoura e lhe leva o pão. Sua função não é representar o mal e sim a consciência sobre os sofrimentos que viverão Jesus e seus seguidores em nome de Deus. Quando Jesus o encontra no deserto, não é para “tentá-lo” e sim para ensinar a ele sobre a vida. O demônio é uma espécie de preceptor para um jovem sem experiência, o alter ego do próprio Deus. Também se aprende com o diabo, diz Jesus.

7. Jesus conhece o amor de uma mulher: o filho do Homem, como muitos homens no passado, se inicia sexualmente com uma prostituta, Maria Madalena, Maria de Magdala. “Nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo.”

8. Jesus tem noção que é um sacrifício o que Deus lhe destina: ao encontrar Deus no deserto, Ele não diz que Jesus é seu filho, e sim que lhe dará glória e poder em troca de sua vida. Quem diz a Jesus que Deus é seu pai é o diabo. É só ao se aproximar a hora da crucificação que Jesus é informado do tamanho sacrifício que fará para alargar a influência no mundo de um Pai vaidoso, que desejava ser admirado por muito mais gente. “E qual foi o papel que me destinaste no teu plano”, pergunta Jesus a Deus. “O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé.

9. Jesus tem dúvidas: ao ser informado de seu sacrifício por Deus, Jesus se comporta como qualquer ser humano naquela situação e pensa em desistir. “Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem qualquer”, ele diz a Deus, mas este faz troça: “Palavras inúteis, meu filho”. O raciocínio divino é que, sendo ele um deus, não acreditariam em sua palavras; na de um homem, sim. Daí o envio do filho à Terra. “Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar.”

10. Jesus se apieda dos que morrerão em seu nome: Jesus questiona Deus sobre o futuro da humanidade após sua morte, se serão mais felizes, e o Pai responde que, pelo contrário, muitos morrerão por conta desta fé, a começar por seus melhores amigos. “Será uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas”, diz o Todo Poderoso, desfiando os horrores das perseguições aos cristãos e das mortes na Inquisição, a marteladas, queimados vivos, decapitados, crucificados, empalados. Tudo em nome de Deus. “Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.”

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