terça-feira, 6 de dezembro de 2016

CUBA: A exata medida de um imenso fracasso





Língua de Trapo, 28/11/2016




CUBA: A exata medida de um imenso fracasso


Por Gustavo Castañon



“Vai pra Cuba!”

Com a morte de Fidel o leitmotiv predileto da direita vai voltar à carga. Esse é a acusação de que a esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba. É uma estratégia tão, mas tão desonesta, que é até difícil explicar o tamanho da desonestidade. Mas vou tentar.

Para começar, Cuba pode realmente ser ruim para mim, que sou de classe média alta, mas é para 100% de seus habitantes melhor do que o Brasil é para 90% dos seus. Esse não é um chute estatístico, mas uma estimativa conservadora. 75,9% dos brasileiros vivem com menos de U$10.000 ao ano enquanto 10% dos brasileiros abocanham 75,4% da renda nacional (1% abocanha 48%) (1). O produto interno bruto per capita em Cuba ajustado por poder de compra é de 20.648 dólares internacionais (2), enquanto o do Brasil antes da depressão econômica era de 15.359 dólares (3). O povo daquela ilha rochosa bloqueada é, segundo o Banco Mundial (11), mais rico que o povo do continente Brasil. Essa é uma informação chocante e geralmente desconhecida.

Ainda assim não quero ir pra Cuba, a não ser a turismo. Porque para mim a quantidade de liberdade é mais importante do que o pão. É claro, eu tenho pão. Bem mais do que isso, eu faço parte dos 10% de privilegiados brasileiros. Logo, sou mais livre aqui do que lá. Mas a diarista que trabalha aqui em casa certamente não. Pena que ela não tem ideia do que realmente significa “Vai pra Cuba!”.

E é também por isso que não posso querer para mim uma sociedade moralmente monstruosa como os EUA, aquela plutocracia onde o último traço de democracia é uma relativa liberdade de expressão. Mas o Brasil, meu Deus, o Brasil é uma monstruosidade social tão maior, que querer que ele se transforme em algo parecido com os EUA é querer reformas de esquerda. Sim, na maioria dos aspectos, os EUA estão à esquerda do Brasil. No dia em que o Brasil tiver um salário mínimo como o dos EUA (U$7,25 por hora contra U$1,12) (4), uma distribuição de renda como a dos EUA (gini 40,8 contra 54,7) (5), uma lei de mídia como a dos EUA, a proteção às indústrias e agricultura local como a dos EUA, um estado do tamanho do dos EUA (14,6% da população empregada contra 11,1%) (6), a direita vai poder alertar para o risco de ele virar uma Alemanha. Até lá, em vez de gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba!”, deveria gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil num EUA!”.

E quando o Brasil ficasse parecido com os EUA, querer um governo de esquerda ia ser querer que o Brasil começasse a ter políticas de salvaguarda social mais parecidas com as da Alemanha (7), sua saúde pública, sua educação pública, suas políticas ambientais estreitas, sua carga tributária (40,6% contra 34,4% do Brasil) (8), seu imposto progressivo (quanto mais rico, mais imposto). E a direita deveria então gritar, se quisesse ser honesta: “Cuidado, a esquerda quer transformar o Brasil numa Alemanha!”

E então, quando o Brasil ficasse parecido com a Alemanha, a direita poderia alertar para o risco de virarmos uma Dinamarca. Aí, querer reformas de esquerda seria querer que mais da metade da renda fosse para os impostos (50,8%) (9), que os filhos da elite fossem obrigados a estudar em escolas públicas, entre as melhores do mundo, que o estado empregasse mais de um terço da população (34,9%) (10), bancasse dois anos de licença para criar um recém-nascido, limitasse fortemente a atuação das grandes corporações, fosse radicalmente democrático.

Finalmente, quando o Brasil ficasse parecido com a Dinamarca, o direitista poderia gritar sem hipocrisia seu terror com a Cuba que se avizinha, a do estado total e economia planificada, e assim disfarçar melhor sua inveja do funcionário público sob a máscara do ódio ao estado. Provavelmente nesse dia, até eu estivesse protestando a seu lado.

Na estratégia do espantalho cubano o reacionário brasileiro finge ser a favor da liberdade e do mérito, enquanto na verdade é contra. Contra a liberdade do povo, seus direitos trabalhistas, o investimento na educação e universidade públicas, o fortalecimento do SUS e a redução dos juros. Contra o aumento da carga tributária, do salário mínimo, do estado, da remuneração do professor básico, da distribuição de renda e das oportunidades para os excluídos.

Um conservador na Inglaterra é só um conservador. Um conservador no Brasil é um monstro. Um monstro que quer conservar as estruturas de um dos países mais desiguais e injustos do mundo.
Não, Cuba não é o paraíso. É só uma ilha rochosa no meio do Caribe sem recursos naturais de qualquer tipo e bloqueada economicamente há cinquenta anos. E, no entanto, garante saúde e educação universal para seu povo e tem um IDH maior que o nosso, nós, que somos um continente, nós, que temos todos os recursos naturais em abundância. Essa é a medida de nosso fracasso. O incrível e gigantesco fracasso do capitalismo brasileiro.


Notas:

(1) Credit Suisse – Research Institute. Markus Stierli. Outubro de 2015. Tabela 6-5, pág. 149, 17-10-2016

(2) http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.PP.CD?locations=CU&order=wbapi_data_value_2014+wbapi_data_value+wbapi_data_value-last&sort=desc

(3) http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.PP.CD?order=wbapi_data_value_2014+wbapi_data_value+wbapi_data_value-last&sort=desc 

(4) http://www.infomoney.com.br/carreira/salarios/noticia/4073079/veja-quanto-salario-minimo-pago-paises-australia-campea

(5) World Bank GINI index



(8) Heritage Foundation (2015).”2015 Macro-economic Data”.and Index of Economic Freedom, Heritage Foundation.



(11) POST SCRIPTUM: O cálculo da renda per capita de cuba ajustada pela paridade de compra segundo a metodologia do Banco Mundial foi questionada pelo Human Development Report 2015, que preferiu manter para efeito de cálculo do IDH de Cuba o valor defendido pela metodologia da CEPAL. Substituí no texto esse parâmetro pelo produto interno bruto per capita, sob o qual não pesam grandes discrepâncias. No mesmo relatório, página 47, esse órgão da ONU estima o valor do produto interno bruto per capita de Cuba em  18,796 dólares, contra 14,555 dólares do Brasil. Lembrando que esses valores são todos de antes da depressão brasileira e que Cuba cresceu todo ano de 2011 para cá. A comparação certamente está pior para nós hoje.

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