Língua de Trapo, 28/11/2016
CUBA: A exata medida de um
imenso fracasso
Por Gustavo Castañon
“Vai pra Cuba!”
Com a morte de Fidel o leitmotiv predileto da
direita vai voltar à carga. Esse é a acusação de que a esquerda quer
transformar o Brasil numa Cuba. É uma
estratégia tão, mas tão desonesta, que é até difícil explicar o tamanho da
desonestidade. Mas vou tentar.
Para começar, Cuba pode realmente ser ruim para
mim, que sou de classe média alta, mas é
para 100% de seus habitantes melhor do que o Brasil é para 90% dos seus.
Esse não é um chute estatístico, mas uma estimativa conservadora. 75,9% dos brasileiros vivem com menos de
U$10.000 ao ano enquanto 10% dos brasileiros abocanham 75,4% da renda nacional
(1% abocanha 48%) (1).
O produto interno bruto per capita em
Cuba ajustado por poder de compra é de 20.648 dólares internacionais (2), enquanto o do Brasil
antes da depressão econômica era de 15.359 dólares (3). O povo daquela ilha rochosa bloqueada é, segundo o Banco
Mundial (11), mais rico
que o povo do continente Brasil. Essa é uma informação chocante e
geralmente desconhecida.
Ainda assim não quero ir pra Cuba, a não ser a
turismo. Porque para mim a quantidade de
liberdade é mais importante do que o pão. É claro, eu
tenho pão. Bem mais do que isso, eu faço parte dos 10% de privilegiados brasileiros. Logo, sou mais livre aqui do que lá. Mas a diarista que trabalha aqui em casa certamente não. Pena
que ela não tem ideia do que realmente significa “Vai pra Cuba!”.
E é também
por isso que não posso querer para mim uma sociedade moralmente monstruosa como
os EUA, aquela plutocracia onde o último traço de democracia é uma relativa
liberdade de expressão. Mas o Brasil, meu Deus, o Brasil é uma monstruosidade social tão maior, que querer que ele se
transforme em algo parecido com os EUA é querer reformas de esquerda. Sim,
na maioria dos aspectos, os EUA estão à esquerda do Brasil. No dia em que o
Brasil tiver um salário mínimo como o dos EUA (U$7,25 por hora contra U$1,12) (4),
uma distribuição de renda como a dos EUA (gini 40,8 contra 54,7) (5),
uma lei de mídia como a dos EUA, a proteção às indústrias e agricultura local
como a dos EUA, um estado do tamanho do dos EUA (14,6% da população empregada
contra 11,1%) (6), a direita vai poder alertar para o risco de
ele virar uma Alemanha. Até lá, em vez
de gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba!”, deveria gritar:
“A esquerda quer transformar o Brasil num EUA!”.
E quando o
Brasil ficasse parecido com os EUA, querer um governo de esquerda ia ser querer
que o Brasil começasse a ter políticas de salvaguarda social mais parecidas com
as da Alemanha (7), sua saúde pública, sua educação
pública, suas políticas ambientais estreitas, sua carga tributária (40,6%
contra 34,4% do Brasil) (8), seu imposto
progressivo (quanto mais rico, mais imposto). E a direita deveria então gritar, se quisesse ser honesta: “Cuidado, a
esquerda quer transformar o Brasil numa Alemanha!”
E então,
quando o Brasil ficasse parecido com a Alemanha, a direita poderia alertar para
o risco de virarmos uma Dinamarca. Aí, querer reformas de esquerda seria
querer que mais da metade da renda fosse
para os impostos (50,8%) (9), que os filhos da elite fossem obrigados a estudar em escolas
públicas, entre as melhores do mundo, que o estado empregasse mais de um terço
da população (34,9%) (10),
bancasse dois anos de licença para criar um recém-nascido, limitasse fortemente
a atuação das grandes corporações, fosse radicalmente democrático.
Finalmente, quando o Brasil ficasse parecido com
a Dinamarca, o direitista poderia gritar sem hipocrisia seu terror com a Cuba
que se avizinha, a do estado total e economia planificada, e assim disfarçar
melhor sua inveja do funcionário público sob a máscara do ódio ao estado.
Provavelmente nesse dia, até eu estivesse protestando a seu lado.
Na
estratégia do espantalho cubano o reacionário
brasileiro finge ser a favor da liberdade e do mérito, enquanto na verdade é
contra. Contra a liberdade do
povo, seus direitos trabalhistas, o investimento na educação e universidade
públicas, o fortalecimento do SUS e a redução dos juros. Contra o aumento da
carga tributária, do salário mínimo, do estado, da remuneração do professor
básico, da distribuição de renda e das oportunidades para os excluídos.
Um conservador na Inglaterra é só um conservador.
Um conservador no Brasil é um monstro.
Um monstro que quer conservar as estruturas de um dos países mais desiguais e
injustos do mundo.
Não, Cuba não é o paraíso. É só uma ilha rochosa
no meio do Caribe sem recursos naturais de qualquer tipo e bloqueada
economicamente há cinquenta anos. E, no
entanto, garante saúde e educação universal para seu povo e tem um IDH maior que o nosso, nós, que somos um
continente, nós, que temos todos os recursos naturais em abundância. Essa é a
medida de nosso fracasso. O incrível e gigantesco fracasso do capitalismo
brasileiro.
(1) Credit Suisse – Research Institute. Markus Stierli. Outubro de 2015. Tabela 6-5, pág. 149, 17-10-2016
(2) http://data.worldbank.org/
(3) http://data.worldbank.org/
(4) http://www.infomoney.com.
(5) World Bank GINI index
(8) Heritage
Foundation (2015).”2015 Macro-economic Data”.and Index of Economic Freedom,
Heritage Foundation.
(11) POST SCRIPTUM: O
cálculo da renda per capita de cuba ajustada pela paridade de compra segundo a
metodologia do Banco Mundial foi questionada pelo Human
Development Report 2015, que preferiu manter para efeito de cálculo do IDH
de Cuba o valor defendido pela metodologia da CEPAL. Substituí no texto esse
parâmetro pelo produto interno bruto per capita, sob o qual não pesam grandes
discrepâncias. No mesmo relatório, página 47, esse órgão da ONU estima o valor
do produto interno bruto per capita de Cuba em 18,796 dólares,
contra 14,555 dólares do Brasil. Lembrando que esses valores são todos de antes da depressão brasileira e que Cuba
cresceu todo ano de 2011 para cá. A comparação
certamente está pior para nós hoje.
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