Brasil 247, 23/12/16
A Lava Jato e o Tio Sam
Por Tereza Cruvinel
Agora é a Odebrecht, mas outras dez empresas brasileiras estão sendo investigadas por autoridades americanas. Entre elas a Petrobrás, a Eletronuclear e outras grandes empreiteiras. Como a Odebrecht, que pagará multa de R$ 1,3 milhões aos Estados Unidos e à Suíça (mais R$ 5,3 milhões no Brasil), elas também foram sangradas pela Lava Jato e ainda têm muito o que sangrar em acordos de leniência para se livrar de processos que só foram possíveis graças à cooperação dos procuradores brasileiros com as autoridades estrangeiras, realizada em desacordo com as normas da cooperação jurídica internacional, atropelando a autoridade central, que é o Ministério da Justiça e ferindo a soberania nacional.
Num tempo em que o sentido real dos fatos é sempre distorcido, o que ouvimos agora são aplausos à “competência” americana ao deslindar as ações ilícitas internacionais da Odebrecht e da Braskem. Em algum futuro, Rodrigo Janot, Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato poderão responder por estas ações contra o interesse nacional. Por crime de lesa-pátria, na definição do deputado Paulo Pimenta, que já prepara medidas jurídicas neste sentido.
É preciso, porém, dizer que os procuradores foram tão longe na relação bilateral com autoridades estrangeiras porque o governo Dilma, para não se indispor com a Lava Jato, deixou o barco correr.
A cooperação internacional sempre existiu, mas é uma instituição recente no que tange ao combate à corrupção, ao crime organizado e à recuperação de ativos desviados. Foi no primeiro governo Lula que o então ministro da Justiça Marcio Thomas Bastos começou a tomar providências para inserir o Brasil no sistema de cooperação, criando o DRCI – Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, ligado à pasta. A cooperação internacional pressupõe a existência, em cada país, de uma “autoridade central”, que no caso do Brasil é o ministério da Justiça, com apoio do DRCI. O órgão recuperou, por exemplo, recursos desviados por Paulo Maluf e Jorgina Mattos. Mas não foi assim que aconteceu a cooperação da Lava Jato com o Departamento de Justiça americano, o DOJ. Foi uma relação direta, com oferta de delatores e entrega de documentos contra empresas brasileiras.
A “autoridade central” foi sumariamente atropelada, embora o site do Ministério da Justiça defina muito bem sua importância na cooperação internacional, quando diz: “A Autoridade Central é o órgão responsável pela boa condução da cooperação jurídica internacional. No Brasil, o Ministério da Justiça exerce essa função para a maioria dos acordos internacionais em vigor, por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania (DRCI/SNJ). A Autoridade Central é um conceito consagrado no Direito Internacional e visa a determinar um ponto unificado de contato para a tramitação dos pedidos de cooperação jurídica internacional, com vistas à efetividade e à celeridade desses pedidos. A principal função da Autoridade Central é buscar maior celeridade e efetividade aos pedidos de cooperação jurídica internacional penal ou civis. Para isso, recebe, analisa, adequa, transmite e acompanha o cumprimento dos pedidos junto às autoridades estrangeiras. Essa análise leva em conta a legislação nacional e os tratados vigentes, bem como normativos, práticas e costumes nacionais e internacionais”. Mas a Lava Jato fez como quis.
A ofensiva da Lava Jata contra a Petrobrás, a Eletronuclear e outros empreiteiras brasileiras pareceu, no início, decorrência inevitável da mais ousada iniciativa de combate à corrupção, numa quadra em que a população já vinha de uma longa indigestão com os sucessivos escândalos. A Petrobrás foi massacrada, as empreiteiras demitiram milhares de pessoas, perderam grandes obras dentro e fora do Brasil, projetos importantes foram interrompidos. Inclusive, para desgosto dos militares, o do submarino nuclear, que envolvia a Odebrecht. Havia também o propósito, alcançado este ano, de contribuir para o impeachment da ex-presidente Dilma. O golpe passou mas a Lava Jato seguiu seu curso e a cooperação com os estrangeiros avançou. Há cerca de um mês, soube-se que dois delatores haviam firmado acordos para colaborar com as investigações americanas.
Tudo parece ter começado em fevereiro de 2015, quando Rodrigo Janot foi aos Estados Unidos com um grupo de procuradores e tiveram os primeiros contatos com vistas à cooperação. As coisas não se passavam de forma ortodoxa, disseram alguns observadores, solenemente ignorados. Os procuradores, e não o Ministério da Justiça, é que estavam dialogando com outro país sobre empresas brasileiras, inclusive sobre a maior empresa estatal do pais, sem a participação do Ministério da Justiça, do Itamaraty ou da AGU. Mas, se o próprio governo (Dilma), em nome do Estado brasileiro, nada estranhava, quem poderia se opor?
Logo depois da viagem de Janot, a Lava Jato arrancou uma delação contra o almirante Othon Luiz Pereira da Silva, presidente da Eletronuclear, considerado o pai do programa nuclear brasileiro. Em seguida ele foi preso na Operação Radioatividade, por fatos relacionados com a construção da usina de Angra III, não relacionado com o esquema da Petrobrás, que tem Moro como juiz responsável. Angra III hoje é um projeto condenado pela crise econômica e pelo escândalo.
O Brasil, de potência emergente e líder sul-americano, voltou a ser um país bananeiro. As grandes empresas de infraestrutura estão em frangalhos. A economia, na UTI. A projeção internacional do país, obtida na Era Lula, esmaeceu completamente. O governo Temer solicitamente atende aos interesses do capital financeiro hegemônico, “aproveitando a impopularidade” para tomar medidas impopulares, socialmente regressivas. E a principal liderança do campo da esquerda, Lula, está sob o fogo da Lava Jato, para que não seja candidato. Para os interesses geopolíticos americanos, fatura praticamente liquidada. Para o Brasil, Game Over.
Durante a ditadura, por muito tempo foi dada como lenda a participação americana no golpe de 1964. Até que vieram documentos comprovando a participação do embaixador Lincoln Gordon nas conspirações golpistas e o deslocamento, para o Caribe, de uma esquadra que, se fosse preciso, invadiria o Brasil para socorrer os golpistas. Num certo futuro, talvez saberemos também, e documentalmente, como se deu a cooperação da Lava Jato com forças estrangeiras, enquanto boa parte dos brasileiros festejavam o combate à corrupção, a destruição das empresas, a prisão de políticos e a falência da democracia representativa. Neste momento, as palmas são para a eficiência do FMI, ao estimar exatamente o gasto da Odebrecht (US$ 1 bilhão) com o pagamento de propinas em 12 países. Entre estes, não figuram nem os Estados Unidos nem a Suíça mas eles ficaram com 20% do valor total da multa a ser paga pela Odebrecht. Por que mesmo? Porque o dinheiro ilícito teria transitado por instituições financeiras dos dois países, é o que se diz.
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