Segunda Opinião, 22/04/16
A grande dúvida constitucional de que o Supremo fugirá
A grande dúvida constitucional de que o Supremo fugirá
Por Wanderley Guilherme dos Santos
Avalio como inoportuna, inviável, e ilegal, exceto se por decisão do Superior Tribunal Eleitoral, a sugestão à esquerda de que reivindique “eleições, já”. Inoportuna porque lançada em meio ao processo decisório, primeiro, do Senado da República, e depois, se for o caso, do Supremo Tribunal Federal; inviável porque a Câmara, os partidos que votaram de forma truculenta a favor do impedimento de Dilma Rousseff, não irão introduzir tal mudança na Constituição; e ilegal porque se trata de mudança na regra do jogo ao fim do segundo tempo. Perder a bandeira da legalidade é presentear os golpistas com o argumento de que não dispõem e buscam desesperadamente forjar: o de que a presidente Dilma comete crime de responsabilidade, atentando contra a letra da Carta Magna. E sem ele não há justa causa para a violência impeditiva.
Tenho escassa esperança de que o Senado, julgando o mérito do pedido de impedimento, aceite o óbvio: por nenhuma evidência atual ou histórica, e até biográfica, a presidente Dilma Rousseff jamais violou ou tentou violar as instituições representativas democráticas. Nada até agora pôs em dúvida esse fato, cuja tonelagem de verdade é brutal. Por declarações de mais de um dos integrantes da partidariamente insuspeita força-tarefa da Lava-Jato, jamais houve tentativas de interferência do Executivo no andamento da investigação. Delações interesseiras, assinadas por tipos que acreditam na clemência do algoz quanto mais fabulam historietas para agradá-lo, transformam conversas cotidianas em conspiratas clandestinas em calabouços do Planalto. Mas a denúncia de conveniência será tratada como pepita pelos impolutos senadores, especialmente porque a acusação de deslize administrativo padece de precária virtude, assentada em ilegalidade não comprovada e anã.
Tampouco acredito no discernimento do Supremo. Em matéria de extenso conflito social, só os ministros autoritários costumam içar bandeiras. Os liberais, como de hábito, se escafedem. Dirão todos, ou a maioria esmagadora deles que o rito foi respeitado e não lhes cabe apreciar o mérito da decisão congressual. O dedo do demônio golpista está precisamente neste detalhe. Pode ser difícil encontrar fissura nos trâmites adotados pelo Presidente da Câmara dos Deputados. E não tenho segurança para julgar se é ilegal um réu de processo no Supremo presidir à votação de um pedido de impedimento da Presidente da República, sendo, ademais de réu ele próprio, declarado inimigo político dela. Mas a lisura do rito tem sido reivindicada, até com obsequiosa cautela, não obstante os espasmos alucinados que a TV registrou.
O atentado ao contrato social básico é outro, de cujo exame o Supremo fugirá como lebre. Cabe a qualquer maioria interpretar como lhe convier a forma de aplicar preceitos constitucionais? O rito pode criar o objeto a que se aplica? Se dois terços da Câmara dos Deputados decidirem que as contas do atual presidente da Casa não são contas e que a Suíça não existe, vale a anistia com que pretendem presenteá-lo? Se valer, para quê serve um Supremo Tribunal? Qualquer decisão majoritária seria constitucional. Esta é a mácula do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff: o rito criou o crime a ser punido. Vale? Não devia, pois a verdade de juízos de existência não é matéria plebiscitária. É matéria jurídica, de lógica e da fé contratual que funda as sociedades. Mas os eminentes ministros vão fingir que ela não existe. A seriedade das instituições republicanas se dilui no despudor de um Legislativo que convive com a propaganda da tortura e na prolixidade capciosa dos tribunais de justiça. A república se esfarela e o amanhã promete ser violento.
Carta Maior, 22/04/16
Para a leitura de Celso de Mello e seus pares
PorTarso Genro
As afirmações do decano do STF, Ministro Celso de Mello, desqualificando a opinião de dezenas de juristas importantes como ele (e também se opondo a uma manifestação da Presidenta, que classificou como golpe o "impeachment" em andamento) tem tanta legitimidade, perante a História e perante o Direito, como o curto "mandato" do ex-Presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, logo depois da deposição do Presidente João Goulart. A comparação não é irônica: a força dos fatos às vezes legitima, rapidamente, o direito produzido de maneira "torta" - como o Supremo legitimou todos os atos institucionais depois da derrubada do governo João Goulart - mas, nem por isso, o Golpe de 64 deixou de ser Golpe, independentemente dos juízos de valor, positivos ou negativos para o país, que os historiadores tenham sobre ele.
Qual
a armadilha "dogmática", que está presente no discurso do ministro
Celso? A falta de especificidade da sua fala (a que tipo golpe ou
"impeachment" ele se reporta), de um lado e, de outro, o uso de uma
abstração, que tenta blindar o discurso, como discurso neutro (meramente
"jurídico"), sem qualquer conotação histórica ou política, aparentando
que quem o emite não tem posição política sobre o processo de derrubada
da Presidenta. Como se todos os golpes fossem iguais e todos os
"impeachments" fossem os mesmos. Por isso, a sua fala é um óbvio, que
sempre quer dizer mais do que óbvio: para ele, este "impeachment" não é
golpe!"
Querem
testar? Vamos supor que o Ministro Celso de Mello, como decano do STF
- com o seu brilho costumeiro - dissesse que "um 'impeachment', em tese
não é golpe, assim como nem todo o golpe, é golpe militar". Se dissesse
desta forma o Min. Celso de Mello poderia ser atacado como um
assistente jurídico do "impeachment"? Ou como um Ministro suspeito, que
deverá julgar uma das questões jurídico-políticas, mais importantes da
nossa história constitucional? Certamente poderia, mas se lhe
atacassem por essa hipotética fala, quem o fizesse certamente seria um
crítico sectário ou, no mínimo, um imprudente. Mas não foi o caso. Com
sua intervenção o Ministro passou a compor o contencioso político e a
sua frase óbvia, representa muito mais do que óbvio: "podem tocar o
"impeachment" que nós os respaldamos!"
Os
juristas dogmáticos, cujo raciocínio só vai da "norma para norma"
- mesmo que a aplicação de um dispositivo possa atingir os fundamentos da
constituição - não raro enredam-se na defesa da exceção, ("declarada"),
como num golpe militar, ou "não declarada" (como num falso processo de
"impeachment"). Mas o objetivo é o mesmo: subtrair a soberania popular.
Na primeira hipótese, as autoridades supremas do Judiciário, por
exemplo, validam atos institucionais e leis raciais, porque a força os
obriga; na segunda hipótese, aceitam instrumentos legais de correção da
soberania (face a "cometimento de crimes") falsificando sua
interpretação: as famosas pedaladas, que, para outros governos, não eram
crimes de responsabilidade, passam a ser para "este". Aceitam dar
aparência de legalidade à aplicação de um instrumento correto, para uma
causa política espúria.
O
significado da categoria "golpe de Estado" não é o mesmo através dos
tempos. Os sujeitos do "golpe" variaram e os motivos, evidentemente,
também. Mas o que permaneceu invariável foi que o golpe é sempre
realizado por "órgãos do Estado", que ele constrói um novo direito ou
reconstrói o direito vigente e, quando existe uma soberania mínima do
Poder Judiciário, esta é flexionada para legitimá-lo. Ou esta soberania é
destruída por atos de força, para dar lugar a um poder supremo novo,
que tanto pode ser um mero cúmplice da força do novo grupo dirigente ou
pode ser seu aliado incondicional.
Embora
na origem dos estudos sobre o golpe de Estado, estivesse lá a visão de
que ele sempre reforçaria o poder do próprio soberano, no
constitucionalismo moderno o termo vai ficando cada vez mais preciso.
Passa a ser vinculado a mudanças violentas, para atacar de forma
deliberada as formas constitucionais, "por um Governo, por uma
assembleia ou um grupo de pessoas que detém a autoridade" (Larousse).
Foi golpe de Estado, por exemplo, o de Luis Bonaparte (1851), quando
este liquidou a Segunda República - da qual ele era Presidente -
proclamando-se o novo Imperador da França. Foram golpes de Estado, de
"esquerda", aqui na América latina na década de 70, os comandados pelo
General Alvarado, no Peru. e pelo general Juan José Torres, na Bolívia.
Eram, também, atalhos para buscar a democracia social, que não deram
certo. Mas eram golpes.
Na
segunda metade do Século passado, na América Latina e na África,
sucederam-se golpes de Estado, de caráter tipicamente militar, tendo à
frente as Forças Armadas e as Forças da Polícia, estamentos mais
organizados dos jovens Estados Nacionais, ou daqueles Estados com
experiências constitucionais mais débeis. Eram as forças da burocracia
estatal mais organizadas, que garantiam inclusive a existência de
governos nacionais, com ou sem legitimidade política. O que parece,
neste momento, é que os golpes de Estado na América Latina passam por um
processo de "suavização" institucional, sem ação militar específica,
destinada a apropriar-se do poder, mas como o mesmo objetivo e por
outros atores: a busca do poder, de forma paralela às normas
constitucionais.
No
Brasil, há mais um detalhe, que faz a situação do nosso golpismo mais
atípico: enquanto no Paraguai, as forças que golpearam o Presidente Lugo
eram forças politicamente oposicionistas e no Peru, de Fujimori,
ocorreu um golpe processual - sem mudanças de Governo - hiper-reforçando
o
poder pessoal dele e do seu grupo político, aqui no Brasil o golpe se
processa por deslocamento de forças governistas. São as mais
comprometidas nos processos de corrupção, que constituem uma nova
hegemonia no campo oposicionista, com um impulso significativo por uma
parte do Poder Judiciário, que tem permitido, até agora, que o
processo seja conduzido por um Presidente de Legislativo, processado por
corrupção.
Temos,
portanto, Min. Celso de Mello - se é que Vossa Excelência não sabe - os
golpes de Estado que surgiram na juventude do Estado Moderno (ainda não
plenamente democrático); os golpes de Estado de caráter militar (mais
recentes); e os golpes pós-modernos, que obrigaram um dos chefes das
Forças Armadas fazer a observação mais jurídica e constitucional
- promovida até agora - pelos poderes reais do país. Disse o General
Villas-Boas, algo como: "não existe intervenção militar na política, que
seja constitucional; nos pautamos pela legalidade, pela legitimidade,
pela estabilidade do país: a crise é ética, política e econômica, e deve
ser resolvida pelos políticos, por meios políticos". Não é um "meio
político", derrubar uma Presidenta com 54 milhões de votos, para colocar
no Governo a pior "troupe" de oportunistas, que até ontem estavam
usufruindo dos piores equívocos, do próprio Governo que querem depor.
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