domingo, 24 de abril de 2016

Golpe: Forma e conteúdo


http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2016/04/1764088-forma-e-conteudo.shtml


Folha.com, 24/04/16



Forma e conteúdo



Por Janio de Freitas




O Ministro Celso de Mello do STF considera "um gravíssimo equívoco" as referências de Dilma a golpe. Porque "o procedimento destinado a apurar a responsabilidade da senhora presidente da República respeitou todas as fórmulas estabelecidas na Constituição".

As fórmulas. Ou seja, Celso de Mello considera a forma, e se satisfaz. Mas o golpe não está na forma, está na essência, no argumento, que apenas se vale da forma. E este argumento consiste em, de repente, considerar crime, para efetivar um impeachment, uma prática financeira aceita nos governos anteriores e em atuais governos de Estados. Um casuísmo, portanto, um expediente oportunista.

Integrante mais antigo do Supremo, nomeado ainda por Sarney, Celso de Mello é o ministro que mais recorre a bases teóricas do Direito, em imensas digressões engordadas com citações a autores, jurisprudências e votos passados. O seu súbito enlace com o formalismo, e do mais simplório, pode satisfazer-lhe a visão política, mas trai sua dificuldade de sustentar com argumentos jurídicos o golpe da repentina criminalização de créditos suplementares, velhos conhecidos da Fazenda, do Tesouro e do TCU.

Dias Toffoli também tem o que dizer sobre o que os jornais disseram que Dilma diria na ONU mas não disse, e por isso os que inventaram que ela diria agora se dizem surpresos. Toffoli: "Alegar que há um golpe em andamento é uma ofensa às instituições brasileiras. E isso pode ter reflexos ruins no exterior". Os reflexos ruins já estão na imprensa internacional, que não se deixou enganar. Sem falar no manifesto de 8.000 juristas mundo afora, denunciando o golpe.

"Ofensa às instituições" é a trama em montagem para separar o processo, no TSE presidido por Toffoli, sobre as contas de campanha da chapa Dilma-Temer. Com um processo para cada um, como Gilmar Mendes articula, Temer pode ser absolvido enquanto Dilma é condenada. Gilmar Mendes chegou a dizer que "o tribunal (Superior Eleitoral) tinha posição contrária, mas agora podemos ter um quadro novo". Outro casuísmo, outro expediente oportunista. O golpinho filhote do golpe.

Em importante artigo na "Ilustríssima" de domingo (17) (pág. 6), cuja leitura recomendo muito, Daniel Vargas faz uma análise original e aguda do Judiciário e, em particular, do STF. Constitucionalista, doutor em Direito Público por Harvard, em dado exemplo diz: "Cármen Lúcia e Dias Toffoli, ao afirmarem publicamente que impeachment não é golpe, pois está previsto na Constituição, abusam da retórica para, implicitamente, oferecer suporte ao movimento político de destituição da presidente Dilma Rousseff".

É o que fazem também os outros ministros aqui citados, com exceção de Teori Zavascki, que mantém a reserva devida por magistrados. São 35 os partidos com registro. Mais os meios de comunicação. O Supremo Tribunal Federal não precisa ser mais do que Supremo Tribunal Federal. Aliás, precisa-se que seja o Supremo Tribunal Federal. 


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/04/1761293-justica-tem-de-completar-sua-democratizacao.shtml



Folha.com, 17/04/16​


Justiça tem de completar sua democratização




Por Daniel Vargas




Na década de 1980, o raio democratizante condenou quase todas as instituições vigentes no país: enterrou a Constituição de 1967-9, escrutinou o Legislativo corrompido e retirou as lideranças militares à frente do Executivo. Todos foram declarados "culpados" pelos abusos cometidos durante o regime militar e substituídos nos anos seguintes. No entanto poupamos o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal de qualquer escrutínio público.
 
Fingimos, para nós mesmos, que as arbitrariedades que vivemos no passado foram erros morais, políticos ou sociais, mas não jurídicos – quando, na verdade, tudo o que a ditadura fez foi aprovado em leis. E distribuímos o peso da responsabilidade pelos erros do passado sobre os ombros do Legislativo e do Executivo.
 
O pecado original de nossa democracia foi realizar a transição política da ditadura para a democracia, mas não a jurídica. O principal símbolo dessa falha foi entregar nas mãos de 11 ministros do Supremo indicados pelo velho regime militar, e por anos comprometidos com ele, a mais nobre tarefa de dar a palavra final sobre os rumos do regime nascente.
 
Quis o destino que o futuro da democracia brasileira hoje estivesse, em boa parte, nas mãos justamente daquele Poder que, na década de 1980, foi poupado do juízo moral da democratização. Ontem cometemos o grave pecado de não escrutinar a Justiça e sua forma de pensamento e de ação. Hoje ela tem papel decisivo de influência do nosso futuro.


 
CONSEQUÊNCIAS
 
Quais as consequências daquele pecado original para o nosso sistema jurídico? Há várias, ainda por se examinar. Mas duas são muito claras.
 
A primeira é que o velho Supremo tratou de "degradar" a força normativa da nova Constituição. Por anos, direitos sociais foram interpretados como meras diretrizes de governo, o mandado de injunção sofreu uma espécie de "suspensão" constitucional, e impulsos jurídicos inovadores, originários da base do sistema de Justiça, foram neutralizados pela corte. Pelas mãos do velho Supremo, preconceitos da ditadura sobreviveram firmes e fortes.
 
A segunda consequência é que a Justiça brasileira nunca desenvolveu uma autoconsciência sobre as exigências de sua imparcialidade.

Na ditadura, a "força" do Judiciário estava fora dele, concentrada na imagem do ditador. Na democracia, a "força" do Judiciário está nele próprio, nos argumentos e posturas que adota. Ninguém presume que uma decisão, pelo simples fato de ser proferida por juiz competente, seja automaticamente desejável ou correta, ainda que seja cumprida. Hoje já não basta decidir, é preciso saber liderar, comportar-se como árbitro imparcial e fundamentar suas escolhas com profundidade.

Em democracias avançadas, para limitar ou justificar democraticamente as escolhas judiciais, vários métodos de decisão surgiram ao longo do século 20. No Brasil, contudo, ainda prevalece a "técnica do avestruz", muito conveniente durante o regime militar.
 
Com frequência, os magistrados decidem como querem, invocam um princípio ou regra abstrata para fundamentar sua visão e depois se retraem, como quem diz: "Eu não fiz escolha alguma". Em vez de enfrentar o problema, fogem dele, como se ainda estivessem na ditadura e, por sobrevivência ou covardia, devessem evitar a todo custo revelar suas opções.

Episódios recentes ilustram várias modalidades de escolhas não reveladas por nossos magistrados.
As que têm mais perturbado são as do tipo "implícito". Cármen Lúcia e Dias Toffoli, por exemplo, ao afirmarem publicamente que impeachment não é golpe, pois está previsto na Constituição, abusam da retórica para escolher, implicitamente, oferecer suporte ao movimento político de destituição da presidente Dilma Rousseff.
 
Moro e a Lava Jato, ao decidirem avançar as investigações contra Lula, escolheram implicitamente não investigar representantes da oposição, também citados nas delações. No mesmo sentido, o Supremo suspendeu a posse de Lula na Casa Civil, embora seja ele apenas investigado, mas decide implicitamente preservar Eduardo Cunha, réu em processo criminal, à frente da Presidência da Câmara dos Deputados.
 
Ainda que, individualmente, cada uma das decisões pareça legal, a verdade é que, no seu conjunto, essas posições trazem uma enorme carga de parcialidade.

A renovação completa da composição do Supremo Tribunal Federal, após a aposentadoria do último ministro indicado pelo regime militar, resolveu só parte das questões apresentadas – principalmente, teve efeito sobre a primeira consequência, a desidratação normativa da Constituição de 1988. Ao longo dos anos, o Supremo gradualmente reverteu sua jurisprudência para cumprir o que, fosse ou não de nosso agrado, o constituinte comandava.

Mas a segunda e principal consequência – a afirmação da autonomia do direito e de sua imparcialidade – nunca chegou a se desenvolver plenamente na cultura jurídica. Ainda preservamos, hoje como na ditadura, a mesma estratégia que a Justiça usava para se fingir de inocente – a suposta obediência à lei.

A única diferença é que, no passado, a Justiça fingia não ter escolha, porque temia o Executivo. Era submissa e tímida. Hoje, a submissão e a timidez desapareceram, mas a Justiça ainda finge não ter escolha, de modo a camuflar suas próprias preferências. O Judiciário deixou de se comportar como servo do ditador para se comportar da maneira como bem entende, sem qualquer limite ou freio.

Vivemos presos a uma espécie de infância moral: como uma criança que brinca de Super-Homem e pensa que o mundo todo a sua volta acredita em sua fantasia. Do mesmo modo, parte da Justiça age como se todos acreditassem, ou devessem acreditar, em sua decisão como sempre imparcial.
É possível que a Justiça se redima? A princípio, sim.

Para isso, os líderes do sistema de Justiça deveriam começar fazendo todos os esforços para retirar do ar o cheiro de "dois pesos, duas medidas" que marcou o processo de investigação contra um partido, personalizando muito do que é estrutural.
 
Os membros do Judiciário devem conter os arroubos de voluntarismo e messianismo, que enaltecem biografias, e não instituições. Devem cuidar com a máxima atenção do impacto político de seus posicionamentos e suas decisões, especialmente as implícitas. Devem fundamentar, de forma transparente e rigorosa, suas escolhas e os métodos em que se basearam para fazê-las. Devem fazer da discrição e da profundidade suas maiores conselheiras. E, a esta altura do campeonato, deverão contar com o apoio da sorte.

É possível, contudo, que os esforços não deem certo.

A principal razão para isso é que nossos líderes na Justiça não parecem ser tão virtuosos – ou, até o momento, tendem a agir mais como torcedores do que como estadistas seguros de si. Se falharem, fica a lição: a transformação de uma democracia sem a transformação do direito, do seu pensamento e de suas prática, pode ter vida breve.

 
DANIEL VARGAS, 37, é doutor em direito pela Universidade de Harvard e professor da FGV Direito Rio.



23/04/16

Gastrofascismo


Por Leandro Fortes, jornalista (De seu Facebook)



A doença infantil do antipetismo criou, no Brasil, a figura do fascista de restaurante.

É o sujeito ou grupo de sujeitos que vai ao restaurante insultar pessoas que pensam de forma diferente ou tem outra opção política-ideológica à dele.

São, quase sempre, idiotas funcionais que foram ativados pela mídia, como naquelas experiências com espiões hipnotizados atribuídas a americanos e soviéticos, durante a Guerra Fria.

O sujeito sai de casa com a esposa, vai almoçar ou jantar num restaurante qualquer e, de repente, ele vê...um petista!

Não um petista qualquer, aquele vizinho inconveniente que não bate panelas, que chama ele de coxinha pela varanda, que coloca ‪#‎Lula2018‬ como nome de rede de internet, por pura sacanagem.

Um petista MESMO: uma deputada que defende direitos humanos, um senador que apoia o MST, uma celebridade que detona Bolsonaro nas redes sociais.

Aí, o fascista de restaurante, simplesmente, esquece a mulher, os filhos, a comida, o próprio sentido de sair de casa para ir comer fora, e parte para cima do petista. Mesmo que o alvo não seja petista, mas apenas esquerdista, o que é, claro, a mesma coisa.

Basta ter dito por aí que o impeachment de Dilma é golpe.

Ele parte para cima, ativado no modo Globo News, uma metralhadora de clichês roubados dos debates radiofônicos da CBN, uma Veja desgovernada babando ódio e ressentimento de classe.

"Como assim, no MEU restaurante, ESSA GENTE?"

No caso do ator José de Abreu, que encerrou a discussão com uma bela cusparada na cara de um desses cretinos, o argumento de fundo utilizado é uma pérola no direitismo tupiniquim: como alguém que vota no PT, ou é comunista, pode ser dar ao desfrute de almoçar em um caro restaurante japonês?

Essa visão pedestre de que a esquerda deve se alimentar de ovo frito e banana não é fruto de reflexão alguma, por óbvio.

É parte de um vasto relicário de dogmas organizados em apostilas da Escola Superior de Guerra para serem usados como doutrina anticomunista, entre os anos 1960 e 1980.

Trata-se de uma contraposição primária, feita sob medida para alienados, ao conceito marxista de mais valia.

Ou seja, ao fato de que o trabalho incorporado a um produto, pela força do trabalho em si, é sempre inferior ao que Marx chama de "trabalho comandado" - isto é, o que o valor de venda desse mesmo produto pode comprar em termos de horas trabalhadas.

Essa discrepância está na base da impossibilidade natural, no nosso capitalismo, de os trabalhadores e trabalhadoras não poderem acessar boa parte dos bens de consumo que produzem, seja um automóvel de luxo, seja um pedaço de salmão cru em cima de um bolinho de arroz.

O que o pensamento de esquerda clássico (não necessariamente marxista) defende é que tudo que o trabalhador produz deve, para efeito de justiça social, também ser consumido por ele.

Justamente, essa interface escandalosamente ideológica está na origem da reação do grande capital aos governos do PT. A percepção de que a aproximação do trabalho ao seu valor de uso capitalista cria uma perigosa consciência de classe contra-hegemônica.

Por isso, os principais interessados em destruir essa percepção - o capital rentista e o latifúndio - acionaram a mídia. A esta, ancorada no dinheiro e nas concessões públicas, coube ativar a vasta rede de analfabetos políticos e indigentes morais que atacam pessoas em restaurantes.

Os gastrofascistas, a nossa mais nova jabuticaba.

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