CartaCapital, 09/04/2016
As relações entre a Lava Jato, a Globo e a Mossack & Fonseca
Por Henrique Beirangê
Atropelada por outros fatos e providencialmente esquecida pela mídia, a 22ª fase da Lava Jato continua um mistério. Por que ela destoa tanto dos padrões de outras ações do juiz Sergio Moro e da força-tarefa?
E por que a missão organizada para ser a cereja do bolo após dois anos de intensas investigações tornou-se uma letra morta, um arquivo incômodo nos escaninhos da Justiça Federal em Curitiba?
A 22ª fase, batizada de Triplo X, referência pouco sutil ao apartamento triplex em um edifício na praia paulista do Guarujá atribuído ao ex-presidente Lula, ganhou as ruas em 27 de janeiro.
Não era, portanto, uma ação qualquer. Investia-se naquele momento contra o alvo mais cobiçado desde o início da Lava Jato. As coisas não saíram, porém, como planejado.
Um dos endereços visitados por agentes da Polícia Federal ficava no Conjunto Nacional, prédio de escritórios e lojas na Avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo.
A busca e apreensão aconteceu mais precisamente na filial brasileira da Mossack & Fonseca, banca de advocacia panamenha internacionalmente conhecida por assessorar traficantes, ditadores, corruptos e sonegadores no ato de esconder dinheiro em paraísos fiscais.
Qual a relação da empresa com o apartamento no Guarujá? Uma offshore aberta pela Mossack & Fonseca, a Murray Holdings LCC, tinha em seu nome outro tríplex no mesmo prédio. Ao esbarrar na firma panamenha durante a fase preliminar da investigação, a força-tarefa acreditou ter encontrado o elo para provar que Lula havia cometido o crime de ocultação de patrimônio.
Em resumo: por meio de laranjas, a empreiteira OAS esconderia os verdadeiros proprietários dos imóveis no Edifício Solaris. Bingo? Longe disso. Logo no primeiro dia, a Triplo X identificou 40 indivíduos e empresas no Brasil que fizeram negócios com a Mossack & Fonseca. E aí começa o mistério.
Ao contrário de outras fases e do padrão de comportamento do juiz Moro, os representantes do escritório panamenho não amargaram longos períodos na cadeia nem tiveram os pedidos de prisões temporárias convertidos em detenções preventivas, cuja suspensão fica a critério da Justiça. Foram soltos em tempo recorde, menos de dez dias após a operação.Entre os libertados perfilava-se o principal representante da companhia no Brasil, Ricardo Honório Neto.
O executivo trabalha na Mossack & Fonseca há ao menos dez anos e é bem relacionado, com contatos na própria Polícia Federal. Em 2007, um e-mail interceptado prova que Honório Neto havia sido informado a respeito de uma operação da PF no escritório da empresa.
Na mensagem, ele avisa da ação e orienta subordinados a destruir e ocultar documentos antes da chegada dos federais. Esconder informações é, aliás, uma prática corriqueira e contínua na companhia. Escutas telefônicas recentemente autorizadas que embasaram a Triplo X flagraram Ademir Auada, um dos presos em 27 de janeiro e logo liberado, a confessar a destruição de papéis do escritório.
A eclosão do escândalo internacional que envolve diretamente a empresa panamenha, a partir do megavazamento de 11,5 milhões de documentos sobre as offshore pertencentes a políticos, ditadores, celebridades e afins, todas criadas com o intuito de no mínimo sonegar impostos, causou constrangimentos na força-tarefa da Lava Jato.
Os investigadores sabem que serão cobrados por causa do “desinteresse” em relação às atividades da Mossack & Fonseca. O juiz Moro não atendeu aos pedidos de explicação de CartaCapital. Teria sido apenas desatenção ou algum interesse específico explicaria o comportamento incomum da turma de Curitiba no episódio?
Raciocinemos: Moro já afirmou mais de uma vez que o apoio dos meios de comunicação é essencial na cruzada contra a corrupção. A parceria mídia-Justiça, entende o magistrado, serve para impedir o sistema político de barrar as investigações. Mas e se um dos aliados na imprensa cair por acaso na rede de apuração? O que fazer?
Não se sabe. Fato é que entre os documentos apreendidos durante a Triplo X aparecem os registros de offshore ligadas a Alexandre Chiapetta de Azevedo. O empresário foi casado até recentemente com Paula Marinho Azevedo, filha de João Roberto Marinho, um dos herdeiros da Globo, que apoia de forma acrítica a Lava Jato e até concedeu um prêmio ao juiz Moro. Na lista encontrada na sede da Mossack & Fonseca desponta a Vaincre LLC.
A offshore integra uma complexa estrutura patrimonial: é sócia da Agropecuária Veine Patrimonial, que por sua vez é dona de uma imponente e moderna casa em uma praia exclusiva de Paraty, litoral do Rio de Janeiro, que pertenceria à família Marinho.
A propriedade é alvo de uma ação do Ministério Púbico Federal por crime ambiental. Os Marinho, assim como o ex-presidente Lula no caso do triplex no Guarujá, negam ser os donos do imóvel.
Diferentemente do que acontece no caso de Lula, as relações dos herdeiros da Globo com a casa em Paraty se avolumam. Na mesma lista apreendida no escritório da Mossack & Fonseca, ao lado do registro a respeito da Vaincre LLC aparece o nome de outra empresa, a Glem Participações, que detém um contrato com o governo estadual do Rio de Janeiro para a exploração do parque de remo da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Segundo o blog Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, a Glem pertence a Azevedo, ex-marido de Paula Marinho. A neta de Roberto Marinho aparece ainda como fiadora do contrato entre o governo fluminense e a Glem.
Outro documento revela que a Agropecuária Veine é dona de uma cota de um helicóptero do modelo Augusta A-109, matrícula PT-SDA, utilizado pela família Marinho. O endereço para entrega de correspondências no contrato de importação do helicóptero é o mesmo da empresa de Azevedo.
Só para esclarecer: a empresa dona do triplex em Paraty recebe suas correspondências no escritório do ex-marido de uma das herdeiras da Rede Globo.
As Organizações Globo enviaram nota a CartaCapital explicando a situação das offshore, do helicóptero e do triplex em Paraty. Diz a nota que ninguém da família é proprietário da empresa que administra o sítio. Diz também que Paula Marinho não é dona da offshore Vaincre, mas pela primeira vez confirma que a empresa é de propriedade do ex-marido.
Ou seja, o triplex serviu, sim, à família, uma vez que a offshore é uma das sócias da propriedade em Paraty. A emissora afirma também que Paula não tem ligação nenhuma com a Glem Participações e diz que o helicóptero pertenceu ao ex-genro, tendo sido fiadora da aeronave a pedido de Alexandre.
O ex-genro global foi procurado pela revista, mas não se manifestou sobre o assunto.
A história da casa em Paraty não é a única relação dos Marinho com a Mossack & Fonseca e os Panama Papers.
Segundo o jornal holandês deVerdieping Trouw, com base em documentos vazados, a emissora brasileira teria usado empresas de fachada para pagar intermediários na compra de direitos de transmissão da Copa Libertadores da América.
O diário argentino La Nación trouxe outras revelações: “Por razões fiscais, em 2012, a T&T transferiu os seus direitos à empresa Torneios&Traffic Sports Marketing BV, com sede nos Países Baixos. Por trás dessa offshore holandesa, a Mossack & Fonseca criou a Medak Holding Ltd., registrada em Chipre, que, por sua vez, era controlada pela uruguaia Henlets Grupo”.
A reportagem prossegue: “A empresa holandesa, com licença de televisão concedida pela T&T, intermediava a venda dos direitos. A offshore negociou aportes milionários com a TV Globo do Brasil, que eram depositados no ING Bank, em Amsterdã.
A empresa holandesa e a TV Globo tiveram contratos negociados de 2004 a 2019, a uma quantia estimada de 10 milhões de dólares”.
Não à toa, a Globo registrou timidamente o escândalo internacional que monopolizou a atenção da mídia estrangeira nos últimos dias. Na segunda-feira 4, por exemplo, o Jornal Nacional tratou do assunto em meros 40 segundos. Sem imagens, o texto basicamente informava que a Procuradoria-Geral da República investigaria os donos brasileiros de offshore abertas pela Mossack & Fonseca. E ponto.
Há outros ilustres nativos, vários envolvidos em crimes de corrupção, no rol de clientes do escritório panamenho. Robson Marinho, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e acusado de receber propina durante sua passagem pelo governo do tucano Mário Covas, é dono da Higgins Finance.
Segundo o Ministério Público, Marinho embolsou 2,7 milhões de dólares em troca de contratos fraudulentos assinados com a multinacional francesa Alstom. A propina teria ainda abastecido o caixa 2 de campanhas eleitorais do PSDB paulista.
Além dos Marinho globais e do Marinho tucano, os proprietários de offshore até agora flagrados na enorme pilha de documentos incluem políticos brasileiros de sete partidos: PSDB, PDT, PMDB, PP, PSB, PSD e PTB.
Constam da lista, entre outros, o indefectível Eduardo Cunha, presidente da Câmara, o ex-governador de Minas Gerais Newton Cardoso, o ex-ministro Edison Lobão, o falecido tucano Sérgio Guerra, acusado por um dos delatores da Lava Jato de ter recebido 10 milhões de reais para abafar uma CPI, e o ex-deputado federal João Lyra.
Fora do Brasil, a “lista negra”, conforme definição de parte da mídia estrangeira, também inclui nomes para todos os gostos, de amigos do presidente russo Vladimir Putin ao cunhado do presidente chinês Xi Jinping.
O primeiro-ministro islandês, Sigmundur Gunnlaugsson, viu-se obrigado a renunciar após a descoberta de que mantinha uma offshore em sociedade com a mulher.
Depois de uma entrevista desastrada a um canal de tevê, na qual emudeceu diante das perguntas dos repórteres e encerrou a conversa sem maiores explicações, Gunnlaugsson foi pressionado pelo partido e por protestos de eleitores.
Na América Latina, o nome de maior destaque é o do presidente da Argentina, Mauricio Macri. Dono de duas offshore abertas nos anos 1980, Macri afirma que as operações foram legais e tratavam de uma sociedade com o pai.
Embora os 11,5 milhões de documentos vazados possibilitem a todos entender melhor como funciona o esquema de lavagem de dinheiro no mundo, a atuação da Mossack & Fonseca não é propriamente uma novidade.
O escritório, fundado em 1977 pelo alemão Jurgen Mossack e o panamenho Ramón Fonseca, à época vice-presidente do país, estendeu seus serviços por mais de 40 países.
Em 2014, o jornalista norte-americano Ken Silverstein reconstruiu a história da Mossack & Fonseca e suas relações com ditadores, traficantes e criminosos diversos.
Rami Makhlouf, o homem mais rico da Síria, descreve Silverstein, valeu-se da empresa panamenha para esconder dinheiro sujo do ditador Bashar al-Assad. Muammar Kaddafi, que dominava a Líbia com mão de ferro, e Robert Mugabe, do Zimbábue, também foram clientes.
Os Panama Papers, pelo que se viu até o momento, tendem a se tornar um escândalo de maior proporção do que o vazamento das contas da filial suíça do banco britânico HSBC. Mas, no Brasil atual, como diria o juiz Moro, “não vem ao caso”.
A rede criminosa da Mossack é grande e em outros momentos, curiosamente, chegou a ser alvo de interesse da Lava Jato. Foi quando identificou que a lavanderia panamenha foi responsável pela abertura das offshore em nome do ex-diretor da Petrobras Renato Duque e o lobista Mário Góes.
Todos foram presos e cumprem ou cumpriram longas prisões preventivas até delatar tudo o que sabiam ou até desconheciam.
Caberá ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal, se provocados, se manifestarem sobre tais “peculiaridades” judiciais de Curitiba.
CartaCapital, 08.abr.2016
Editorial
A crise é mental
A crise é mental
Por Mino Carta
O escândalo chamado Panama Papers cabe com encaixe perfeito entre os resultados da sujeição do mundo ao deus mercado que o papa Francisco mais propriamente definiria como demônio do dinheiro.
Antes de cogitarmos de uma reforma política brasileira, de resto, por ora tão improvável quanto duvidosa, seria altamente recomendável uma reforma do globo terráqueo. De sorte a reverter o processo destinado a enriquecer cada vez mais uns poucos para empobrecer e imbecilizar os demais. Aludo a bilhões de seres ditos humanos.
Um jurista italiano em recente visita ao Brasil, ex-integrante da força-tarefa da Operazione Mani Pulite, Gherardo Colombo, convidado com o transparente propósito de constatar convenientes similitudes entre aquela ação justiceira e a Lava Jato, cuidou de desencantar os anfitriões, de sorte a não merecer maior repercussão na mídia nativa, a do pensamento único a favor do golpe.
A tese central de Colombo, exposta no debate promovido para favorecer Sergio Moro e os promotores curitibanos, é a seguinte: em situações de corrupção desenfreada, a magistratura terá de agir para prender e incriminar quem quer que seja, mas não extirpará o mal se este for da cultura do país. O pecado só será remido pela educação dos graúdos e dos miúdos. Dura lição, que não se coaduna com as pretensões da Lava Jato.
A corrupção é global, como, por exemplo, os Panama Papers comprovam. Nem por isso Moro e sua operação deixam de ser representativos de um país a seu modo único. A Lava Jato presta-se a fornecer munição a uma tentativa de golpe, vale-se de uma polícia disposta a desservir ao Estado para favorecer a manobra em sintonia com a mídia compactamente envolvida no processo.
Atenta contra a lei impavidamente e tanto esquece a origem da corrupção e seus mais atilados praticantes, bem como liquida em um piscar de olhos a possibilidade de qualquer envolvimento da Mossack.
Desponta a urgência de interrogar os botões: por que será que Moro e cia. enterraram o assunto? Respondem: talvez o peso de nomes graúdos detentores das offshore à margem do canal, nomes retumbantes, tenha aconselhado o súbito recuo, mesmo depois da prisão de cinco suspeitos da Mossack, logo postos em liberdade.
Uma pergunta chama outra: e por quais cargas-d’água as atividades do empresário Fernando Henrique Cardoso e do seu endiabrado herdeiro Paulo Henrique não mereceram eco da mídia nativa? Ora, ora, respondem os botões, FHC é ainda mais invulnerável do que Aquiles, o herói grego de calcanhar indefeso. Nem mesmo Páris, de excelente pontaria, conseguiria abater o ex-presidente sem pontos fracos.
A incerteza do momento precipita mais perguntas. Por que ressurge a proposta da renúncia da presidenta Dilma, formulada tempos atrás pelo acima citado FHC? A Folha de S.Paulo ressuscita a ideia como portadora da bandeira a abrir o desfile olímpico. Marcha imponente, a convocar muitos dos titulares da casa-grande, seus aspirantes e fâmulos.
E por que Dilma haveria de renunciar? Nada empurra a tanto o vencedor de uma eleição, menos ainda a lei. Há quem diga: antecipemos as eleições, outubro próximo seria uma boa data. A presidenta reage com louvável ironia: pois então, renunciemos todos em bloco, governo, governadores e congressistas.
A quem aproveita a proposta? Panorama confuso, de névoa do Mar do Norte, na madrugada invernal. Em meio à cerração, aparecem desentendimentos na tripulação do barco golpista. Não vale a pena perder tempo em relação ao patético comportamento de Marina Silva, crente ferrenha das pesquisas, incapaz de perceber que a coisa pega somente nas cercanias do pleito.
Permito-me outros exemplos: eleições em outubro não comovem, por motivos diversos, Michel Temer e Aécio Neves. Encantam, porém, por razões insondáveis, Paulo Skaf, aquele que estimula imensa saudade de Antonio Ermírio de Moraes e Olavo Setúbal, dois empresários que praticaram a política com outros méritos e válidos atributos. Tampouco está claro se Skaf é empresário.
Algo é certo, soletram os botões: a proposta da renúncia nasce de uma forte dúvida a respeito do desfecho da manobra golpista do impeachment. A tigrada deu para temer, de uns dias para cá, que o complô soçobre no fracasso final.
Retomada a normalidade democrática, e diante de uma crise iniciada no exterior que não tende a arrefecer, a possibilidade de antecipar eleições gerais poderia ser levada em conta, ao cabo de um amplo debate e de uma adequada emenda constitucional, operada pelos poderes previstos em lei.
Antecipação de um ano, para outubro de 2017, quem sabe. Não é por acaso, de todo modo, que a Folha assuma o papel de portador da proposta da renúncia, inequivocamente golpista nas circunstâncias. Diz um caro amigo que o jornalão da família Frias é o mais hipócrita da categoria.
Abriga textos que contradizem a linha do jornal, sem contar a pretensão do ombudsman faccioso, para alardear uma isenção desmentida na totalidade dos demais espaços. O Estadão é um vetusto fazendeiro que não consegue enxergar além da cancela das suas terras. O Globo é homem de negócios suspeitos, sem escrúpulos, entregue ao demônio do dinheiro.
Os jornalões, os revistões e os programões abrigam o bestialógico mais grandioso da história do País. No confronto, o Febeapá da Stanislaw Ponte Preta empalidece. O que se lê e se ouve, imediatamente repetido por uma fatia conspícua da sociedade, é algo que não tem similar mundo afora. Trata-se de um besteirol clangoroso que exibe o estágio cultural primitivo de uma nação carente de saúde mental.
Não falta quem escape ao desastre, mas o conjunto da obra é apavorante. Fôssemos diferentes, nos riríamos dos equívocos, dos mal-entendidos, das acusações pueris, e das pretensões descabidas, das ambições idem, dos exibicionismos provincianos, da pompa ridícula, da ostentação grosseira, da vulgaridade geral. O fenômeno apresenta, contudo, uma imponência tão avassaladora a ponto de provocar por parte de quem dispõe de bons olhos, vergonha e desalento.
Perguntam agora meus envergonhados botões: quem haverá, neste Brasil em apuros, capaz de entender que o impeachment não resolve a crise, pelo contrário, a complicaria? E quem se dá conta de que os Panama Papers desvendam o ninho do ovo da serpente da crise que, sem isentar o País, transcende a economia?
Há outra discrepância, ainda mais
espantosa, a denunciar ausência de saúde mental, bem como política:
enquanto se discute se Dilma cometeu um crime inexistente, decide os
destinos do Brasil um notório criminoso chamado Eduardo Cunha.
http://www1.folha.uol.com.br/
Folha.com, 09/04/16
Mostrando a cara
Por André Singer
Foi instrutivo assistir à longa leitura do relatório proferido pelo deputado Jovair Arantes (PTB-GO) na Comissão Especial do impeachment na quarta (6). Ainda que se discorde das conclusões do nobre deputado, o que é o meu caso, deve-se reconhecer que ali se expressava parte significativa da população e da cultura local. O estilo do parecer entranha-se na formação desta sociedade.
Centrado sobre complicados assuntos de natureza orçamentária, o texto dava aparência de respeitabilidade técnica ao que se sabe ser apenas um jogo pesado para derrubar a presidente da República. Como bem disse o editorial da Folha (3/4), "pedaladas fiscais são razão questionável numa cultura orçamentária ainda permissiva". Justamente por isso, a retórica contábil precisava ser reforçada.
Como a permissividade é traço característico da realidade nacional, a aspiração à ordem se constitui, também, por reação, em forte característica verde-amarela. Daí haver leis que "pegam" e outras que "não pegam". Como distinguir umas da outras? Como explicar a um estrangeiro que crimes graves podem passar impunes e, simultaneamente, uma pessoa ir presa por bobagem?
Será sobre o referido pano de fundo que vai se ferir nos próximos dias confronto congressual decisivo para o futuro do país. Nele, o maior trunfo dos que desejam tirar Dilma Rousseff, o lulismo e a esquerda de cena (se possível por décadas) está em colocá-los do lado da desordem. Se forem bem-sucedidos, arrastarão consigo o fundo conservador brasileiro e o impedimento virá.
Embora não tenha sido ressaltada por Arantes, a Operação Lava Jato, e mesmo o mensalão, terá cumprido papel chave na peleja. Ao longo de muitos anos foi-se construindo a versão, largamente difundida, de que o PT é partido fora da lei. Isto é, agremiação que atravessou a linha vermelha da criminalidade inaceitável (pois há os desvios permitidos, de acordo com código não escrito). Votar pelo impeachment na comissão e no plenário significa endossar essa versão dos fatos.
Infelizmente, lulismo e PT cometeram erros que permitiram a construção de tal narrativa, muito danosa às perspectivas de mudança social. Por outro lado, o uso das pedaladas como pretexto do impeachment, ainda que aplique verniz à ofensiva antipopular, revela a principal fragilidade do processo em curso: não se encontrou qualquer vínculo da mandatária com a corrupção.
Seja qual for o resultado, muitas lições vão emergir das sessões em curso no Congresso Nacional. Uma das poucas vantagens das crises é trazer a verdade à tona. O Brasil poderá se observar em detalhe no espelho que o legislativo oferece ao país. Goste-se ou não, a face real vai aparecer.
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