Folha.UOL, 08/04/16
Gravações contrariam representação midiática de Bin Laden, diz pesquisador
DIOGO BERCITO
EM MADRI
O professor americano Flagg Miller passou os últimos 13 anos na companhia do terrorista saudita Osama bin Laden e de outros militantes.
Não fisicamente, mas em seu fone de ouvido. Único pesquisador com acesso à biblioteca de fitinhas cassete da organização radical Al Qaeda, Miller ouviu uma coleção de mais de 1.500 gravações, totalizando ao redor de 3.000 horas de áudio.
O Bin Laden que ele encontrou nas fitas é diferente daquele representado pelos discursos políticos ou pela imprensa — menos preocupado em atacar os EUA, e mais incomodado com a corrupção dos próprios regimes muçulmanos em sua região.
Além disso, os militantes da rede terrorista Al Qaeda parecem ser, nas gravações, menos radicais de como são retratados. É uma imagem menos espetacularizada, diz.
Essa coleção de cassetes foi encontrada durante a invasão americana de 2001, em Kandahar, no Afeganistão. Aquela tinha sido a base de Bin Laden desde 1997. Um dos edifícios utilizados pela Al Qaeda abrigava as 1.500 fitinhas, que foram saqueadas por uma família afegã.
As gravações foram levadas a um mercado local, para serem apagadas e reutilizadas. Um cinegrafista da rede americana CNN convenceu o vendedor a devolver o material. Dali, a biblioteca da Al Qaeda passou pelas mãos de universidades nos EUA.
Miller foi o único pesquisador que se interessou pelas fitinhas. Ele publicou, como resultado de seu estudo, o livro "The Audacious Ascetic" (O asceta audacioso, sem tradução para o português).
Bin Laden costuma ser descrito como um terrorista preocupado principalmente com seu arqui-inimigo, os EUA. Mas, nas fitinhas que Miller estudou, essa discussão está quase ausente.
Os diálogos registrados entre militantes da Al Qaeda e, em alguns casos, os discursos de Bin Laden se ocupam de outro assunto: a corrupção entre muçulmanos. "Seu inimigo eram os próprios líderes muçulmanos."
A diferença, para Miller, está em como a história foi contada. "A 'narrativa Bin Laden' apareceu nos EUA durante os esforços em identificar um inimigo claro, depois do fim da Guerra Fria."
Naqueles anos, cortes americanas investigavam o atentado de 1993 ao World Trade Center. "O nome de Bin Laden começou a aparecer, apesar de não haver evidência o suficiente para um julgamento", afirma Miller.
Atento à narrativa que era construída ao seu redor, o líder terrorista aproveitou o ensejo para construir sua própria imagem de acordo.
"Nessa época, Bin Laden vivia o momento mais baixo de sua carreira. Todos estavam tentando matá-lo. Ele perdeu a cidadania saudita e sua riqueza. Precisava de uma história grande", diz.
Uma das gravações estudada por Miller registra, por exemplo, uma conversa entre o motorista de Bin Laden e uma equipe de jornalistas.
"O motorista pergunta a eles sobre o que estão trabalhando, se acham que Bin Laden é culpado, e de quê", diz. "Bin Laden e seus companheiros próximos estavam tentando entender que históra o Ocidente queria ouvir, para poder entregá-la."
POESIA
Outro exemplo de como a imagem de Bin Laden foi construída é seu célebre discurso em Tora Bora, conhecido como sua declaração de guerra aos Estados Unidos.
Bin Laden de fato cita os EUA. Mas Miller argumenta que a citação é feita para criticar a corrupção dos líderes muçulmanos, vistos por ele como os principais culpados.
Segundo o professor, a maior parte das traduções desta "declaração de guerra" ignora um quarto do discurso: 15 poemas. O trecho pareceu pouco importante nas transcrições oficiais. Mas, para Miller, é sua parte mais forte.
"São poemas emotivos que fazem referência à história árabe, dizendo que os líderes muçulmanos venderam seu próprio povo. Bin Laden diz que os jihadistas, ao longo da história, tomaram a questão nas suas próprias mãos."
Miller caminha por seu próprio campo, quando estuda esse poema. Ele é especializado em linguística antropológica, e um de seus principais estudos, publicado em outro livro, trata da poesia em fitas cassete no Iêmen. Essas gravações eram àquela época, em toda a região, um poderoso instrumentos entre os militantes.
"A mídia, controlada pelo Estado, não deixava que as pessoas dissessem algumas coisas. Eles copiavam e circulavam fitas. Há conteúdos bem revolucionários em cassete. A arte da oratória tem, nas fitinhas, um poder imenso, e elas ainda são usadas em locais como o Iêmen."
A trajetória de Miller e seu conhecimento extensivo da língua árabe fizeram ele uma das únicas pessoas com ferramentas o suficiente para lidar com a biblioteca de fitas cassete da Al Qaeda. Até agora ninguém mais procurou o arquivo para estudá-lo.
"Os funcionários da Inteligência não têm o treinamento para isso, ou não estavam interessados. São gravações de conversas ordinárias, de poesia, coisas que tinham fugido ao radar deles", afirma.
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