segunda-feira, 11 de abril de 2016

Fellini: Minha primeira vez

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Persona, 11 de abril de 2016



Fellini: Minha primeira vez

 

Por Marcelo Bulhões

 



Início dos anos 80, eu era moleque. Ainda estava longe da universidade, não tinha viajado muito, não conhecia Rimbaud, não havia tomado sequer uma dose de Jack Daniel’s.

Sexo eu não conhecia.

Mas me achava.

O que tinha a ver com o cinema?

É que volta e meia eu me metia a acusar a “alienação” do cinema de mainstream em coisas como Flash Gordon, Porky’s ou Grease, sucessões que a galerinha da minha idade – eu tinha uns 13 ou 14 – curtia. Polanski, Coppola, De Palma, Scorsese eram o meu escudo de combate ao tal cinemão standard.

Todo início de ano eu viajava ao Rio de Janeiro, apartamento de uma tia. Era uma espécie de tutora intelectual. Rigorosa, me atribuía uma série de tarefas culturais: assistir a tais filmes, ler tais livros, ver tais peças. Etc e etc. Elencava as tarefas, conferindo com rigor a programação cultural da cidade e os horários das sessões. Morava no Meyer, zona norte da cidade, e me instruía sobre os números dos ônibus para eu não me perder no périplo cultural. E cobrava:  

– Como assim, Marcelo! Você não assistiu ao último filme do Kurosawa?

Eu gostava daquilo. E principalmente quando íamos juntos, passando a tarde inteira no centro da cidade, na Cinelândia, pulando de um cinema a outro, comendo sanduíches nos intervalos, correndo como se o mundo fosse acabar. Ou como se a Cinelândia fosse acabar – o que ocorreria tempos depois, pois quase todos os cinemas da lândia bateriam as portas, transformados em supermercados, magazines e igrejas pentecostais.  

– Marcelo, hoje tem um filme do Fellini!!!

Medo. Eu nunca tinha assistido a um filme de Fellini. Federico Fellini e Ingmar Bergman eram reclames luminosos, chamados que algum dia eu precisaria encarar. Mas numa época em que o videocassete ainda estava aparecendo (internet seria lance de ficção científica), a coisa não estava à mão. Mas não ousei confessar:

– Qual é o filme, tia?

Roma. Ou melhor, Roma de Fellini.

– Ah tá, esse eu ainda não vi.  

Lá iria, curioso, feliz. E ansioso. Seria uma espécie de iniciação sexual. Eu tiraria um peso das costas.




O cinema era no centrão da cidade e dessa vez a tia não me acompanhava. Na entrada encarei o cartaz de Fellini’s Roma: uma mulher nua, com várias tetas e de quatro como a loba que amamentou Rômulo e Remo na lenda do nascimento de Roma. O cartaz estava ladeado por pipoqueiros nada romanos, chamuscando aquele fim de tarde. Pipoca nem pensar. Eu tinha a convicção de que o “cinema de arte” (expressão besta que eu usava na época) não combinava com pipocações no escuro solene da sala. As pipocas eram símbolos terríveis e inequívocos do “cinema comercial”.

Mas mesmo sem pipocar e aguçando ao máximo minha concentração, o que começou a aparecer na tela foi me incomodando, me perturbando, me revirando o estômago.

Fellini’s Roma (1970) não tinha enredo. Não havia exatamente uma história, uma trama evoluindo para um desfecho. Eram situações apenas, desconectadas: um colégio de padres em que os meninos tinham que confessar pecado sexual; um teatro popular da época da guerra em que a plateia bebia, xingava, dormia, cuspia, mijava; putas gordas desfilavam em um suntuoso bordel espelhado; uma família derramava lágrimas diante de um filme épico; um desfile grotesco de moda eclesiástica em que padres deslizavam sobre patins. Eram esquetes, eventos soltos dentro de uma luz estranha. Que luz era aquela!! Não havia exatamente personagens, mas tipos, criaturas grotescas. Eram gestos e olhares avulsos dentro de cabeleiras gosmentas, bocas bufas lambuzadas de molho bolonhesa, rostos barrocos, corpos disformes. Gosmas, suores, secreções escorriam da tela. Esquisitice, sujeira. Um mundo podre e grotesco, sem finalidade. O filme terminava com motoqueiros invadindo, atacando o centro da velha Roma. E sumiam na escuridão – sem propósito.  

Eu estava atônito, inconformado. Estava derrotado, devastado.

Na saída do cinema o escuro tinha sugado todo o azul. Os pipoqueiros tinham sumido. Eu andava pelas ruas à cata de um ônibus que deveria me trazer de volta à segurança do apartamento da tia no Meyer. Mas o que diria a ela sobre o filme?

Eu estava desamparado na noite enigmática.




Mas dentro do ônibus alguma coisa começou a se operar. Outro filme passou a rodar na minha cabeça. Eu não havia “entendido” Fellini. O filme que eu tinha acabado de ver era um mundo para não fazer “sentido”. Não havia costura dramática ou alcance lógico. O filme de Fellini deslocava ou destituía a própria noção de “sentido” que eu procurava.

Fellini tinha passado a rasteira em minha tosca convicção de realidade. Desmontava o meu cretino “realismo” e minha ingênua necessidade de compreensão. Fellini tinha puxado o meu tapete de verdade e certeza. Fellini estava me libertando de um mecanismo montado por Hollywood para nos defender da falta de finalidade da vida e lançava o problema do sentido  às cucuias.

Ao entrar naquele cinema eu tinha penetrado o perigoso terreiro da gratuidade e da ambiguidade. Mas não havia pessimismo na sala rococó de Fellini. Aquela pura “fenomenologia” felliniana era uma afirmação da vida, da alegria do existir gratuito. Fellini me convidava para ver o mundo sem julgar. “Ver com olhos livres”? Encontrar poesia na sujeira, na escrotidão, na deformidade.  

O ônibus disparava, sacudia, rebentava – como sacodem os ônibus do Rio! – e eu estava de pé, instável, na imponderação. Eu era um projétil pronto para o disparo. Fellini revelava que a fantasia e o sonho têm uma verdade muito mais aguda que qualquer história “bem contada”. Uma verdade “não explicada”. O ônibus fazia a curva brusca pela Avenida Brasil e eu pendia, pêndulo de incerteza. As imagens em Fellini se situavam em algo mais fundo por estarem além de uma tentativa de elucidação do mundo. O ônibus retomava a reta, o motorista pisava com tudo, afundava, devastava os últimos cacos de lógica. Eu era um projétil em fluxo flamejante. Fellini tinha roubado minha ingênua segurança na razão.   

Na hora do jantar, minha tia não me perguntou do filme. Fina. E eu não quis dizer nada. Mas num lance eu vi. Filtrada pela taça de vinho, no canto de olho daquela mulher havia uma hipótese de riso. Malicioso? Irônico? Terno? Compreensivo?

Apenas devolvi o olhar.

Eu não queria compreender.


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