Jornal da AEPET, 01/04/16
A inconfessável agenda do golpe
Por Larissa Ramina e Carol Proner*
A reflexão que podemos fazer sobre a crise atual na perspectiva internacional não exime a responsabilidade sobre erros cometidos pelo governo brasileiro nem eventuais desmandos de membros de partido de composição, esquemas de corrupção e outros, mas o Brasil assiste a um processo de natureza política inaudito, incomparável a qualquer outro que já vivemos e com graves consequências à nossa soberania. A origem da crise no Brasil não é apenas econômica. É claro que estamos sendo solapados pelo impacto dos movimentos especulativos, principalmente no mercado das matérias primas. É claro que o capitalismo financeiro impõe severas limitações ao avanço dos progressos sociais. É evidente que a globalização financeira está diante de nossos olhos e torna difícil a adoção de políticas macroeconômicas independentes.
Mas fundamentalmente a origem da crise
brasileira na fase em que se encontra é política, nutrida por uma elite
que demonstra a cada dia não ter apreço pelo futuro do país e que jamais
se conformou com a derrota nas urnas. Na agenda inconfessável dessa
elite, entre tantos retrocessos, está o desejo de reimplantar o projeto
neoliberal renunciando ao patrimônio nacional se for preciso, reservas
naturais, empresas públicas, estabilidade política, democracia, em suma,
uma agenda que nos devolve ao lugar da subserviência diante dos
interesses hegemônicos internacionais.
Assim como ocorreu com a Vale do Rio
Doce durante o mandato do ex presidente Fernando Henrique Cardoso, agora
é a vez do pré-sal brasileiro. O Senador José Serra apresentou Projeto
de Lei (PLS 131/2015) que permite às petrolíferas estrangeiras explorar o
pré-sal sem fazer parceria com a Petrobras. Na noite do dia 23 de
março, por 33 votos a 31, o Senado decidiu manter o regime de urgência
na tramitação do projeto. É grande a pressa para o entreguismo, este que
deveria ser considerado um crime de lesa-pátria. É preciso que a
sociedade entenda a dimensão da importância do pré-sal para o futuro do
Brasil como Estado-Nação.
O historiador Luiz Alberto Moniz
Bandeira alerta que os Estados Unidos não admitem a ascensão de outra
potência na América do Sul. O Brasil figura como uma das maiores
economias do mundo, detém grandes reservas naturais e minerais – como o
urânio, por exemplo, o aquífero Guarani, o maior estoque de
biodiversidade do planeta – a Amazônia, um dos maiores mercados
consumidores do mundo e um potencial imenso para ameaçar a hegemonia
norte-americana no continente. Nada mais importante que extirpar a
ameaça, quebrando a economia brasileira e comprando as empresas estatais
a preço baixíssimo e assim nutrir a onda de socavamento dos governos
progressistas na América Latina que se iniciou junto com o novo século.
Aliás, não vamos esquecer que os golpes
de Honduras e do Paraguai inauguraram a “moda” dos golpes de Estado
“frios” na região contra os governos de corte progressistas. Nos dois
casos, o primeiro em 2009 e o segundo em 2012, um órgão estatal dominado
por interesses elitistas destituiu um presidente democraticamente
eleito por meio de um processo político fantasiado de legalidade e com
apoio evidente dos Estados Unidos. Ambos os golpes desgastaram governos
da região usando largamente o argumento da corrupção em compras
governamentais e o caso brasileiro poderá representar o tiro certeiro
para retomar um neoliberalismo de nova geração, com o perdão da
redundância, o novo do novo. Este é o caso dos “tratados de
liberalização de comércio de nova geração” a exemplo do Tratado
Transatlântico de Comércio e Investimentos entre Europa e Estados Unidos
(TTIP), onde o “novo” se resume em uma palavra: “segredo”, premissa da
negociação a portas fechadas deixando do lado de fora a cidadania e a
democracia.
E porque os interesses hegemônicos
querem o fim dos governos progressistas? Esta pergunta foi também
colocada pelo Ministro Marco Aurélio Mello do STF, a quem interessa
inviabilizar a governança pátria? A resposta do ponto de vista
internacional é um exercício de lógica. Porque na contramão dessa
ofensiva que visa recuperar a hegemonia estadunidense frente a China e
Rússia (atacando os BRICS) estão posturas insubmissas de governos
progressistas que buscam outro tipo de aliança e que, além do insulto ao
imperialismo, ainda realocam a tônica nas políticas sociais – Estado
regulador e interventor contrário ao ideário da Escola de Chicago – e
diferem na decisão sobre a distribuição da riqueza e o modo de inserção
no mercado internacional. Insolentes que somos, rejeitamos a via única
de livre comércio com países hegemônicos e priorizamos as iniciativas
destinadas à integração regional e sub-regional e a ressalva do
crescimento com distribuição de renda. No caso específico do Brasil,
após a rejeição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), o acento
foi deslocado para a diversificação da pauta comercial brasileira com a
inclusão do comércio intra-regional e para o fortalecimento do Mercosul.
A criação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), com o impulso
brasileiro, é reflexo dessa tentativa de fortalecimento dos laços na
América do Sul. Quem não fez isso foi o México que preferiu firmar o
Tratado Norte-americano de Livre Comércio (NAFTA). O nome do documento
já diz bastante e hoje o México é um dos Estados institucionalmente mais
deteriorados.
Ora, nunca é demais lembrar que o projeto dos Estados Unidos para a América Latina e para o Brasil jamais incluiu o desenvolvimento ou a integração regional e a Aliança do Pacífico está aí para demonstrar. Durante a ditadura militar ficou evidente o nível grave de ingerência externa na política e economia brasileira, basta recordar a obra '1964: A Conquista do Estado' de René Armand Dreifuss na qual denuncia as companhias participantes da Adela Investment Company em conspiração para a derrocada do governo João Goulart. "Adela" é o acrônimo para Atlantic Community Development Group for Latin America, grupo multibilionário formado em 1962, encabeçado pelo vice-presidente do grupo Rockfeller e que reunia cerca de 240 empresas industriais e bancos. O documentário 'Mario Wallace Simonsen, entre a Memória e a História', de Ricardo Pinto e Silva mostra como essa aliança afetou algumas companhias brasileiras, o caso da COMAL e da Panair do Brasil.
Eles nos querem vassalos e submissos e
por isso alimentam nosso complexo de vira-lata. Em momento de crise
diante do enfraquecimento político e econômico brasileiro, aproveitar-se
das debilidades internas e da nossa falta de autoestima nunca foi tão
interessante. É preciso derrotar a diplomacia soberana, altiva e
criativa que fomos capazes de construir na última década. Querem nos ver
de joelhos, pois “todos somos americanos”.
No século XXI o Brasil mudou sua cara.
Hoje a melhora nas condições de vida do brasileiro em termos de saúde,
moradia e educação fez com que viva cerca de dez anos a mais, sendo que a
mortalidade infantil foi reduzida pela metade. As instituições
brasileiras também amadureceram, tornando possível pela primeira vez em
nossa história a apuração da corrupção entranhada nas elites políticas e
econômicas. É lugar comum que estamos todos de acordo no combate contra
a corrupção. A ironia da crise brasileira é que a Presidenta que se
pretende depor é uma das poucas pessoas que não está implicada em nenhum
esquema de corrupção, ao contrário de quase todos ao seu redor,
incluindo membros da “honrada” Comissão de Impeachment (40 dos 65
deputados estão sendo investigados na Lava Jato).
Por outro lado, quais são as propostas
coerentes daqueles que pretendem o impeachment? Quais são as propostas
coerentes da direita, no Brasil ou nos Estados Unidos ou na França? A
prova desta incoerência é que proliferam alternativas políticas de
esquerda como o Podemos na Espanha, o Bloco de Esquerda em Portugal,
Syriza na Grécia ou o chamado Plano B para a Europa com a liderança de
Varoufakis. Estamos, mesmo na esquerda, um pouco autistas nesse debate.
Neste momento dramático de nossa vida
política precisamos unir nossas forças capazes de empurrar o governo
para a agenda progressista, para que se possa garantir os avanços
conquistados em termos de direitos civis, políticos e sociais desde a
adoção da Constituição de 1988 e aprofundar a democracia nas promessas
que não foram cumpridas, muitas abandonadas ou preteridas diante dos
acordos de governabilidade. Precisamos barrar o discurso de abertura do
país a uma dominação sem entraves do capital internacional e capaz de
romper com as limitações impostas pela elite financeira ao
desenvolvimento do país. O caminho adiante deveria ser qualificar ainda
mais a democracia na luta contra a desigualdade, por meio da inclusão
social e da extensão dos programas sociais. Neste momento a oposição não
deveria ser contra a Presidenta Dilma Rousseff, digna e honesta, mas um
pacto de governo para que ela avance mais e retome as promessas
anunciadas na campanha presidencial. Nisso os movimentos sociais têm
dado o recado de forma muito precisa e o MST afiançou: a esquerda está
unida para pautar um projeto de governo realmente popular.
Larissa Ramina e Doutora em Direito e Professora de Direito Internacional da UFPR e UniBrasil
Carol Proner é Doutora em Direito e Professora de Direito Internacional do DGEI-FND-UFRJ.
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