Carta Maior, 24/04/2016
À derrubada democrática do golpe ilegítimo
PorJuarez Guimarães
Até a iminência da votação do impeachment na Câmara Federal, através de informações que vinham do próprio centro da inteligência do governo Dilma, cultivou-se a expectativa de que o golpe poderia ser derrotado ou, na hipótese pior, seria majoritário apenas na margem. É preciso aprender com a derrota: que esta tenha sido a última ilusão institucional daqueles que lutam em defesa da democracia brasileira.
Uma análise estratégica do que se passava ali na Câmara Federal desautorizaria tal ilusão. Os golpistas são expressão de uma ampla unidade das classes dominantes brasileiras e de suas articulações internacionais. Esta unidade é programática: o programa ultra-neoliberal de Temer é semelhante ao de Aécio, polarizou a campanha do PSB, depois da Rede, além de alimentar a convergência conservadora de corruptos e proto-fascistas na Câmara Federal. Esta unidade, que é negativa, no sentido de soldar uma frente ampla anti-esquerda, deu e dá aos golpistas um amplo leque de instrumentos de cooptação, do poder econômico aos oligopólios de mídia, de articulação institucional nos três poderes da República a promessas de impunidade e salvo-conduto aos corruptos.
Além disso, a disputa se travava ali no território mais movediço para o segundo governo Dilma. Como já se diagnosticou no fim de 2014, este é o Congresso mais conservador eleito desde a Constituição de 1988. Com a adesão da maioria do PMDB ao golpe, as articulações do governo ficaram na dependência de siglas e políticos afins, por todas as razões, aos golpistas.
Por fim, o governo Dilma, que nunca conseguiu estabilizar uma maioria na Câmara Federal, travava a luta por um terço dos votos em um contexto de não superação de sua forte impopularidade estabelecida após as opções de política econômica no início do governo e que não sofreram uma forte inflexão, mesmo após a saída de Levy do comando do Ministério da Fazenda. A participação direta de Lula nas negociações ficou fatalmente enfraquecida após a manobra de Gilmar Mendes, coonestada pelo STF ao adiar a decisão sobre a interdição da posse de Lula como ministro.
O que se extrai desta crítica às ilusões institucionais – o cálculo de que se pode deter o golpe através da aposta nas divisões entre os golpistas, seja no terreno econômico, político ou meramente fisiológico – é a expectativa provável de que o Senado venha a aprovar o impeachment. Apesar de escandalosamente inconstitucional, o STF não demonstrou até agora ter uma formação de uma opinião majoritária entre seus membros, capaz de conter o assalto golpista do Congresso a um mandato soberano da presidenta.
A potência das ruas
Este juízo realisticamente negativo sobre as possibilidades de se deter o golpe no plano da institucionalidade, deve ser estrategicamente contrariado pela potência já demonstrada nas ruas em defesa da democracia. No dia 17 de abril, os golpistas perderam amplamente nas ruas, nas redes e, mesmo em seus nichos de maior apoio social, a comemoração veio enfraquecida pela vergonha do que se passou na Câmara Federal. A consciência culpada é a expressão de humanidade que restou a quem cometeu o crime contra a democracia: até FHC veio, alguns dias após, condenar a homenagem de Bolsonaro aos torturadores sem, é claro, endossar o coro dos que pedem justamente a cassação de seu mandato. Isto poria a unidade dos neoliberais com os fascistas em risco!
Ao contrário de 1964, as principais forças políticas, sociais, culturais e religiosas da esquerda brasileira estão unidas em torno à democracia. Esta esquerda, formada na luta contra a ditadura militar, aprendeu com o povo brasileiro não apenas que a república democrática é o melhor terreno para exercer suas razões e fazer valer os seus direitos. Ela tem a liberdade como valor fundamental e a soberania popular como um referente político.
Esta unidade política fundamental está sendo cristalizada principalmente na formação da Frente Brasil Popular e também na Frente Povo Sem Medo. Esta dinâmica frentista, que resultou das mobilizações de 2015, foi capaz de ampliar a defesa da democracia muito além daqueles que têm o governo Dilma como referência. Através dela, a esquerda estava e está obtendo uma vitória política fundamental na luta pela legitimidade democrática na denúncia ao golpe. Esta vitória está em crescimento e já é tendencialmente majoritária na população brasileira, segundo as pesquisas.
Além disso, os tempos não são mais de guerra fria. O escândalo de um vice, acusado de corrupção, aliado um presidente da Câmara Federal, comprovadamente criminoso, apoiado em um sem número de parlamentares conservadores, fascistas e corrompidos, aprovar a destituição de uma presidente, legitimamente eleita, sobre a qual não pesa nenhuma acusação a não ser uma fragilíssima e artificial acusação de crime de responsabilidade, virou manchete nas principais redes e jornais do mundo. O contraste com a unanimidade golpista da mídia nacional é, sob todos os pontos de vista, vergonhoso e vale como a sua condenação democrática.
Criou-se, assim, uma aguda contradição entre a força dos golpistas na institucionalidade e a sua crescente ilegitimidade democrática. Quem vencerá?
Uma revolução democrática?
Pensado na história, o golpe em curso em 2016 é mais grave do que o de 1964 por três razões, convergindo com o juízo dramático feito por Mino Carta.
A Constituição de 1988 é muito mais democrática do que a de 1946. Desta vez, o golpe à democracia veio sendo construído de dentro de suas instituições e não foi operado fundamentalmente pelos militares. O programa dos golpistas, na linha de um ultra-neoliberalismo e em aberta contradição com o acúmulo importante dos direitos democráticos conquistados pelo povo brasileiro desde 1988, é mais violento que aquele de 1964.
A hora, como está convergindo a esquerda brasileira, é de máxima denúncia do golpe, de defesa do mandato legítimo da presidenta Dilma e da soberania popular, da república democrática fundada pela constituição de 1988. Mas nada será como antes.
A ilusão institucional não pode ser substituída por uma mera ilusão insurrecional, isto é, aquela que enxerga o povo brasileiro, em sua atual consciência e organização, como já capaz de derrotar o golpe com a sua força institucional e de violência. Para vencer o golpe, será preciso mais raiz social, muito maior poder de organização, um programa democrático bem mais avançado.
Os limites da esquerda brasileira estão hoje fortemente vinculados aos limites da democracia brasileira. O seu processo de institucionalização, de parlamentarização, de estruturas e dinâmicas corporativas, de distanciamentos de suas bases sociais cobram todo o preço nesta hora. Em particular, entramos em momentos decisivos ainda com um forte déficit comunicativo. Há impasses programáticos que respondem pela dificuldade do segundo governo Dilma em continuar o ciclo de crescimento com distribuição de renda e criação de direitos, em um contexto internacional de crise e de regressão.
Sobretudo, há uma diferença em ser capaz de denunciar a ilegitimidade democrática de um golpe e ser capaz de fazer valer a revolta do povo diante de um golpe que procurará se revestir de poder institucional e de violência.
Tudo é história mas nada está escrito. O povo brasileiro já demonstrou na história a sua capacidade de conquistar a democracia, com seu poder de resistência, suas utopias e seus mártires. Agora, será preciso mostrar a sua capacidade de defendê-la.
http://jornalggn.com.br/
Jornal GGN, 24/06/16
Ética Política e Justiça no Brasil
Por Baltasar Garzón Real*
Partindo da consciência crítica de
quem pertence a um país que em algum momento histórico exerceu o férreo
poder do colonialismo atualmente em debate entre mil contradições e
contrariedades, mas também partindo da firmeza democrática e da
convicção de defender valores universais como justiça, liberdade e
democracia, quero compartilhar com vocês meus sentimentos e algumas
reflexões que tenho feito diante da difícil situação que vive
institucionalmente o Brasil.
Sinto profundo pesar em observar que
pessoas que são referências da boa política, defensores dos direitos
sociais, de trabalhadores e daqueles que são os elos mais fracos da
cadeia humana estão na mira das corporações que, insensíveis aos
sentimentos dos povos, estão dispostas a eliminar todos os obstáculos
que se lhes apresentem para consolidar posição de privilégio e controle
econômico sobre a cidadania com consequências graves para o futuro.
Nessa dinâmica perversa, os grandes interesses não hesitam em eliminar
política e civilmente aqueles que o contrariam na defesa dos mais
frágeis que sempre foram privados de voz e de palavra para decidir seus
próprios destinos.
Mesmo partindo da perspectiva de quem
não vive o dia-a-dia da política brasileira, devo dizer que sou capaz de
perceber o espetáculo oferecido pelo procedimento de juízo político que
está em curso contra a Presidenta Dilma Rousseff e que guarda
semelhanças com outros que foram vivenciados por países como Paraguai e
Honduras, forjados institucionalmente por parte daqueles que somente
estavam interessados em alcançar o poder a qualquer preço.
A interferência constante do Poder
Judiciário com o fim de influenciar nesses processos deve cessar. Por
experiência, sei os riscos que representam os jogos de interesses
cruzados, não tanto em favor da justiça e sim com o objetivo de acabar
como o oponente político instrumentalizando a um dos poderes básicos do
Estado e fazendo-o perder o equilíbrio que deve preservar em momentos
como este, tão delicados para a sociedade. O judiciário deve prosseguir
suas atuações sem midiatização política de nenhum tipo, sem prestar-se a
jogos perigosos em benefício de interesses obscuros, distantes da
confrontação política transparente e limpa.
A perda das liberdades e a submissão
da Justiça a interesses espúrios pode custar um preço excessivo ao povo
brasileiro. O Poder Judiciário e seus componentes devem resistir e
defender a cidadania frente às tentativas evidentes e grosseiras de
instrumentalização interessada.
A luta contra a corrupção é vital e
deve ser prioritária em qualquer democracia, mas é preciso estar atento
aos interesses daqueles que pretendem se beneficiar da “cegueira” que
supõe a luta em si mesma. A justiça deve manter os olhos completamente
abertos para perceber o ataque ao sistema democrático que é
perceptível na realização de uma espécie de juízo político sem
consistência nem base jurídica suficiente para alcançar legitimidade e
que somente busca tomar o poder por vias tortuosas desenhadas por
aqueles que deveriam defender os interesses do povo e não os próprios.
Ou ainda daqueles que nunca disputaram eleições e que pretendem
substituir a vontade das urnas, hipotecando o futuro do povo brasileiro.
A indignação democrática que sinto ao
acompanhar os fatos do Brasil, país pelo qual tenho imenso apreço, me
provoca profunda dor e ao mesmo tempo me compele a expressar esses
sentimentos diante daqueles que não têm pudor em destruir as estruturas
democráticas que tanto tempo levaram para serem erguidas, aqueles que
não hesitam em interferir na ação da Justiça em benefício próprio.
Ninguém conquista um reino para sempre
e o da democracia deve ser conquistado e defendido todos os dias frente
aos múltiplos ataques e isso se faz desde os mais recônditos lugares do
país, de uma mina, uma pequena fábrica, do interior da Floresta
Amazônica já tão atacada e deteriorada por interesses criminosos, das
redações dos periódicos ou plataformas televisivas que servem de
tentação à submissão corporativa, das ruas das cidades e dos púlpitos
das igrejas, das favelas e dos conselhos de administração das empresas,
das universidades, das escolas, em cada casa da família brasileira é
preciso lutar diuturnamente pela democracia. E é obrigação de todas e
todos fazer isso não somente em seu país, mas também fora, em qualquer
lugar, porque a democracia é um bem tão escasso cuja consolidação é
missão do conjunto de toda a comunidade internacional.
Tanto o presidente Lula da Silva, a
quem conheço e admiro, como a presidenta Dilma Rousseff, com quem nunca
estive pessoalmente, representaram o melhor projeto em termos de
política social e inclusiva e que, caso tenham incorrido em
irregularidades, merecem um juízo justo e direito básico à ampla defesa e
não um julgamento ilegítimo em praça pública realizado por quem não tem
direito nem uma posição ética para fazê-lo. O povo brasileiro nunca
perdoará o ataque frontal à democracia e ao Estado Democrático de
Direito.
Madrid, 24 de abril de 2016
*Jurista, Magistrado e Advogado Espanhol
Tradução Carol Proner
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