Segunda Opinião, 18/04/16
A truculência das dedicatórias a Deus
Por Wanderley Guilherme dos Santos
Foi uma derrota sem disfarce, somatório
de rancores regionais, pessoais, manipulações, traições, intimidações,
oportunismos, provavelmente compra de votos e até votos de boa fé. Mais de
um jovem deputado, inocente das artimanhas de veteranas e comprometidas
figuras, iludiu-se com a hipótese de que na votação se jogava a independência
do Legislativo. De comum aos 367 votos só a vontade de expelir do poder a
presidente Dilma Roussef, o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores.
É notório que a adesão das camadas economicamente vulneráveis da população a
Dilma, a Lula e aos partidos de esquerda não está refletida nesse resultado.
Ele reflete ainda menos a opinião ilustrada do País,
não só de petistas, mas de cidadãos e cidadãs que entendem não haver
justificativa jurídica para a adoção de medida tão radical, mesmo diante de
desvios administrativos, o que, de resto, foi consistentemente demonstrado
falso pela Advocacia Geral da União.
A sistemática campanha dos meios
de comunicação, alimentada por informações parciais e suspeição infundada,
proporcionadas por procuradores do ministério público, moldou a percepção de
que a Lava Jato revelava crime sobre crime de políticos filiados ao PT, quando
os escândalos efetivamente comprovados nas investigações desmentiam as
manchetes. Cometeram os membros da Força-Tarefa, procuradores e
policiais federais, crime de omissão, transpirando suspeitas com origem em seus
preconceitos de classe, e cometeram os meios de comunicação crime de ação,
dando como sólida verdade informações incorretas e interpretações só coerentes
com a tradição anti democrática de que não se arrependem.
Membros do PMDB e do PP, que são
os partidos com o maior número de ex-deputados, ex-senadores e atuais
parlamentares indiciados em processos criminais da Lava Jato e do Supremo
Tribunal Federal, ofereciam a Deus, suas famílias e amigos, o sacrifício do
voto contra enorme lista de delitos imputados a Dilma Rousseff (chamada de
“ladra” por um demente), a Lula e ao PT, entre os quais não se incluía o objeto
do relatório, a saber, violações do orçamento da República por motivo torpe. O
retrato dessa Legislatura indica que, para essa
maioria, a ordem jurídica é irrelevante, os fatos são irrelevantes, o
eleitorado que elegeu a presidente da República é irrelevante. Estão
certos de que, pelos votos que receberam e pela figura constitucional da
autonomia do Legislativo, tudo podem. São ideologicamente cobertos não só
por juristas desde sempre faxineiros de ditaduras,
mas também por profissionais de reta conduta a torturar argumentos
cristalinamente falsos.
O desastre para a democracia não
é o cancelamento da vontade popular por motivo fútil. O assustador será a
consagração do precedente de que qualquer maioria legislativa pode aprovar o
que bem entender na interpretação da Carta maior. Esse abismo, cavado na
votação de domingo, 17/4/2016, se mede pelo vazio instalado entre o discurso
de ódio de parlamentares e o afago que recebem de constitucionalistas
comprometidos por condição de classe, por dinheiro, por notoriedade e por fama.
Uma ordem política daí nascida só se sustentará
pelo medo e pela coação física ou moral. O processo continua.
Carta Maior, 18/04/2016
A volta reacionária da religião e da família
Por Leonardo Boff*
Por Leonardo Boff*
Observando o comportamento dos parlamentares nos três dias em que
discutiram a admissibilidade do impedimento da presidenta Dilma Rousseff
parecia-nos ver criançolas se divertindo num jardim da infância.
Gritarias por todo canto. Coros recitando seus mantras contra ou a favor
do impedimento. Alguns vinham fantasiados com os símbolos de suas
causas. Pessoas vestidas com a bandeira nacional como se estivessem num
dia de carnaval. Placas com seus slogans repetitivos. Enfim, um
espetáculo indigno de pessoas decentes de quem se esperaria um mínimo
de seriedade. Chegou-se a fazer até um bolão de apostas como se fora um
jogo do bicho ou de futebol.
Mas o que mais causou estranheza foi a figura do presidente da Câmara que presidiu a sessão, o deputado Eduardo Cunha. Ele vem acusado de muitos crimes e é réu pelo Supremo Tribunal Federal: um gangster julgando uma mulher decente contra a qual ninguém ousou lhe atribuir qualquer crime.
Precisamos questionar a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal por ter permitido esse ato que nos envergonhou nacional e internacionalmente a ponto de o New York Times de 15 de abril escrever: "Ela não roubou nada, mas está sendo julgada por uma quadrilha de ladrões". Que interesse secreto alimenta a Suprema Corte face a tão escandalosa omissão?
Ocorreu na declaração de voto algo absolutamente desviante. Tratava-se de julgar se a presidenta havia cometido um crime de irresponsabilidade fiscal junto a outros manejos administrativos das finanças, base jurídica para um processo político de impedimento que implica destituir a presidenta de seu cargo, conseguido pelo voto popular majoritário. Grande parte dos deputados sequer se referiu a essa base jurídica, as famosas pedaladas fiscais etc. Ao invés de se ater juridicamente ao eventual crime, deram asas à politização da insatisfação generalizada que corre pela sociedade em razão da crise econômica, do desemprego e da corrupção na Petrobrás. Essa insatisfação pode representar um erro político da presidenta mas não configura um crime.
Como num ritornello, a grande maioria se concentrou na corrupção e nos efeitos negativos da crise. Apostrofaram hipocritamente o governo de corrupto quando sabemos que um grande número de deputados está indiciado em crimes de corrupção. Boa parte deles se elegeu com dinheiro da corrupção política, sustentada pelas empresas. Generalizando, com honrosas exceções, os deputados não representam os interesses coletivos mas aqueles das empresas que lhes financiaram as campanhas.
Importa notar um fato preocupante: emergiu novamente como um espantalho a velha campanha que reforçou o golpe militar de 1964: as marchas da religião, da família, de Deus e contra a corrupção. Dezenas de parlamentares da bancada evangélica claramente fizeram discursos de tom religioso e invocando o nome de de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão. Grande parte dos parlamentares de forma pueril dedicavam seu voto à família, à esposa, à avó, aos filhos e aos netos, citando seus nomes, numa espetacularização da política de reles banalidade. Ao contrário, aqueles contra o impedimento argumentavam e mostravam um comportamento decente.
Fez-se um julgamento apenas político sem embasamento jurídico convincente, o que fere o preceito constitucional. O que ocorreu foi um golpe parlamentar inaceitável.
Os votos contra o impedimento não foram suficientes. Todos saímos diminuídos como nação e envergonhados dos representantes do povo que, na verdade, não o representam nem pretendem mudar as regras do jogo político.
Agora nos resta esperar a racionalidade do Senado que irá analisar a validade ou não dos argumentos jurídicos, base para um julgamento político acerca de um eventual crime de responsabilidade, negado por notáveis juristas do país.
Talvez não tenhamos ainda amadurecido como povo para poder realizar uma democracia digna deste nome: a tradução para o campo da política da soberania popular.
*Leonardo Boff é articulista do JB online e escritor.
Mas o que mais causou estranheza foi a figura do presidente da Câmara que presidiu a sessão, o deputado Eduardo Cunha. Ele vem acusado de muitos crimes e é réu pelo Supremo Tribunal Federal: um gangster julgando uma mulher decente contra a qual ninguém ousou lhe atribuir qualquer crime.
Precisamos questionar a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal por ter permitido esse ato que nos envergonhou nacional e internacionalmente a ponto de o New York Times de 15 de abril escrever: "Ela não roubou nada, mas está sendo julgada por uma quadrilha de ladrões". Que interesse secreto alimenta a Suprema Corte face a tão escandalosa omissão?
Ocorreu na declaração de voto algo absolutamente desviante. Tratava-se de julgar se a presidenta havia cometido um crime de irresponsabilidade fiscal junto a outros manejos administrativos das finanças, base jurídica para um processo político de impedimento que implica destituir a presidenta de seu cargo, conseguido pelo voto popular majoritário. Grande parte dos deputados sequer se referiu a essa base jurídica, as famosas pedaladas fiscais etc. Ao invés de se ater juridicamente ao eventual crime, deram asas à politização da insatisfação generalizada que corre pela sociedade em razão da crise econômica, do desemprego e da corrupção na Petrobrás. Essa insatisfação pode representar um erro político da presidenta mas não configura um crime.
Como num ritornello, a grande maioria se concentrou na corrupção e nos efeitos negativos da crise. Apostrofaram hipocritamente o governo de corrupto quando sabemos que um grande número de deputados está indiciado em crimes de corrupção. Boa parte deles se elegeu com dinheiro da corrupção política, sustentada pelas empresas. Generalizando, com honrosas exceções, os deputados não representam os interesses coletivos mas aqueles das empresas que lhes financiaram as campanhas.
Importa notar um fato preocupante: emergiu novamente como um espantalho a velha campanha que reforçou o golpe militar de 1964: as marchas da religião, da família, de Deus e contra a corrupção. Dezenas de parlamentares da bancada evangélica claramente fizeram discursos de tom religioso e invocando o nome de de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão. Grande parte dos parlamentares de forma pueril dedicavam seu voto à família, à esposa, à avó, aos filhos e aos netos, citando seus nomes, numa espetacularização da política de reles banalidade. Ao contrário, aqueles contra o impedimento argumentavam e mostravam um comportamento decente.
Fez-se um julgamento apenas político sem embasamento jurídico convincente, o que fere o preceito constitucional. O que ocorreu foi um golpe parlamentar inaceitável.
Os votos contra o impedimento não foram suficientes. Todos saímos diminuídos como nação e envergonhados dos representantes do povo que, na verdade, não o representam nem pretendem mudar as regras do jogo político.
Agora nos resta esperar a racionalidade do Senado que irá analisar a validade ou não dos argumentos jurídicos, base para um julgamento político acerca de um eventual crime de responsabilidade, negado por notáveis juristas do país.
Talvez não tenhamos ainda amadurecido como povo para poder realizar uma democracia digna deste nome: a tradução para o campo da política da soberania popular.
*Leonardo Boff é articulista do JB online e escritor.
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