terça-feira, 9 de setembro de 2014

‘LE CANARD ENCHAÎNÉ’ - 99 anos de sátira política




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Terça-feira, 9 de Setembro de 2014



'LE CANARD ENCHAÎNÉ’

99 anos de sátira política



Por Nelson Bravo
 


Pertencer aos quadros do Le Canard Enchaîné, o mais combativo, feroz e autônomo semanário satírico-político francês, é o sonho de qualquer jornalista. Fundado em 1915 por Maurice Maréchal, esse coquetel molotov gráfico está prestes a completar um centenário, sem mexer, durante todo esse tempo, uma vírgula na sua orgulhosa independência, em todos os sentidos. Sobretudo, porque não aceita anunciantes, forma de não se deixar cortejar nem se contaminar pela influência nefasta de governos, políticos ou empresários. Seus jornalistas são os mais bem pagos da imprensa francesa, mas, em contrapartida, seus redatores não podem aplicar na bolsa, nem colaborar em outras publicações, muito menos aceitar presentes de honra ou condecorações oficiais.
Sua equipe tem quatro redatores, vinte jornalistas especializados em política internacional e dezesseis ilustradores. Vendido em quiosques de toda a França Metropolitana por 1,20 euro o exemplar, também pode ser encontrado em países da Europa, América e África, além de ser pulverizado para assinantes do mundo inteiro. Na íntegra, ainda não é liberado via internet.
Em longevidade, Le Canard só perde para os antiquíssimos Le Figaro (1826), La Croix (1880), Le Chasseur Français (1885) e seus contemporâneos Les Échos (1904) e L’Humanité (1904), todos ainda vivos, mas alguns com dificuldade de caixa. Por outro lado, a fidelidade à proteção das fontes de informação de seus jornalistas é caso único na França, e sua forma de atuação, desabridamente independente, não encontra precedentes no mundo. Além de se lixar para anunciantes, não faz concessão ideológica, seja à direita ou à esquerda.
Embora tenha nascido gauche, o que o levou a ser o mais temido, respeitado e apreciado jornal do gênero, no planeta, Le Canard vive – e muito bem, obrigado – exclusivamente de suas vendas, o que lhe confere uma saúde financeira invejável, sendo, ainda, a única publicação que alerta seu público sobre a “influência nociva das mídias”. Como um bravo Ulysses moderno, orgulhosamente dispensou-se, contudo, de amarrar-se ao mastro do navio para resistir ao mavioso canto de sereia do poderosíssimo grupo Hachette, que tentou “botar-lhe as mãos nas cadeiras pra tirá-lo pra dançar”, em 1953. Levou um sonoro chega-pra-lá do Le Canard. Tal recusa, mesmo a um pretendente tão charmant e viril, não o abalou um milímetro sequer, tendo em vista que sua prioridade é a fidelidade aos seus princípios de total independência, em todos os sentidos, e estabelecidos desde a sua fundação. Daí, por exemplo, só admitir como seus acionários aqueles que nele trabalham, bem como seus fundadores – tanto que os mil títulos do jornal são inacessíveis e sem qualquer cotação.

Interesse coletivo
Publica suas contas financeiras no próprio jornal, todo agosto, e sua difusão anual, na França e no estrangeiro, apresenta estes números de tiragem: 2005: 420.276 exemplares; 2006: 406.488; 2007: 505.125; 2008: 536.874; 2009: 477.002; 2010: 492.408; 2011: 507.748; e 2012: 475.879. Esbanjando competência administrativa, para assegurar sua independência, seus benefícios financeiros, a cada ano, são colocados numa reserva, três vezes mais importantes que suas cifras de negócios anuais, e depositados numa conta não remunerada.
Frequentemente severo, às vezes cruel, mesmo com seus simpatizantes ardorosos, mas jamais vingativo, o senso de justiça do jornal é questão de honra sempre preservada.
Procura estabelecer uma cumplicidade com seu leitor médio, o que explica sua linguagem simples, com emprego de fórmulas originárias da língua do povo. Seus inteligentes jogos de palavras são reservados aos títulos dos artigos, cujas manchetes privilegiam os fatos da atualidade, nacional ou internacional, e, pela ousadia, levantam escândalos de todos os matizes. Daí não serem poucos os rumorosos affaires judiciários em que Le Canard se envolveu na França, graças à sua corajosa atuação, denunciando falcatruas, negociatas, desvios de conduta e todo tipo de lesão aos contribuintes.
O jornal noticia escândalos, seja qual for sua natureza ou orientação, com grande competência investigativa, indo a pauta de sangue contaminado à venda fraudulenta de aviões, negócios cabulosos de grupos financeiros, mordomias irregulares, manipulação de verbas públicas, maquinações escusas de toda a ordem. Atuando com admirável destemor, seja contra um anônimo prefeito do interior, ou contra celebridades como o papa ou presidentes, Le Canard é “a pedra no caminho” de quem não anda na linha.

Consciente de que a missão dos jornalistas é descobrir, investigar e desvendar aos seus leitores o máximo possível sobre qualquer assunto de interesse coletivo, Le Canard também costuma fazer dos nomes de suas vítimas um jogo engraçado de palavras, como ao nominar o ex-presidente Jacques Chirac de um vulgar “Chi Chi” . Para dar molho especial nas ilustrações dessas matérias, conta o semanário com a colaboração do seu fulgurante time de cartunistas, o que muito lembra nosso bravo e lendário O Pasquim.

“De costas”
O combustível que alimenta o jornal vem de fontes de informação variadas, seja das conferências de imprensa oficial, do seu carnê de endereços de figuras importantes ou até das cartas de seus leitores. Mas como Le Canard é pato, mas não é ingênuo, checa tudo que recebe antes de publicar, verificando sempre a veracidade da informação e até confrontando-a com outras fontes diferentes, para obter segurança e isenção.
Na contramão dele, lembramos, por exemplo, da revista Look, americana, que em outubro de 1971 fechou as portas, após 34 anos de existência e com tiragem de 6,6 milhões de exemplares, mas já sem lucros e impotente para enfrentar a elevação das tarifas postais nos Estados Unidos e as mídias mais modernas da época, sobretudo a televisão, coisa que Le Canard “tira de letra e ainda sai nadando de costas”.
Hebdomadário que nasceu gauche, como Carlos Drummond de Andrade, e um pouco anarquista, é bem verdade, forçoso é reconhecer que bem merece ser saudado com aqueles belos versos de Vinicius de Moraes: “Se todos fossem no mundo iguais a você...”


Nelson Bravo é caricaturista e escritor

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