segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A santa que pactua com o diabo




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Carta Maior, 01/09/2014
 


Marina Silva Collor de Mello?


 


Por Darío Pignotti/Página 12



​Apesar de a honesta evangélica Marina Silva imaginar ser a encarnação do novo, seu papel na narrativa eleitoral reproduz uma cartilha de que as elites lançaram mão para conter as forças progressistas, populares e nacionalistas que têm o PT como seu representante político, não o único, desde a década de 80, depois das greves lideradas por Lula, desafiando a ditadura, que se viu obrigada a iniciar a abertura concluída nas eleições tuteladas de 1985.

Nas presidenciais de 1989, já sem prescrições, os sócios empresariais do regime, como a Fiesp e a Globo, uniram-se para abortar a vitória de Lula a qualquer custo. Dali surgiu Fernando Collor de Mello, um frankenstein com partes de Carlos Menem, Alberto Fujimori e de Carlos Salinas de Gortari, mas mais musculoso do que eles. Amigo de George Bush, Collor assumiu o governo em 1990 com uma base parlamentar alugada – como a que Marina alugará se ganhar em outubro – que o abandonou pouco antes de sua renúncia em 1992.

Collor, que chegou a ser personificado como herói de uma novela da Globo, apresentou-se diante do grande público como o "caçador de marajás": um outsider da política que lutaria sem quartel contra os corruptos.

Certamente, a biografia de Marina Silva não se confunde com a de Collor. Trabalhou junto do dirigente camponês assassinado Chico Mendes, militou no trotskismo, migrou para o PT, foi senadora por esse partido e depois ministra do Meio Ambiente durante o governo de Lula, do qual saiu contrariada em 2008, pela construção de represas na Amazônia. Sua inimiga jurada era a ministra Dilma Rousseff, impulsora de grandes obras de infraestrutura.

Conta-se que, quando deixou o Planalto, alguns ministros disseram-se fartos da "santa", apelido que Marina recebeu por sua atitude messiânica e presunção de superioridade moral. Rompeu com o PT em 2009 e em 2010 foi candidata à presidência pelo Partido Verde, do qual saiu um ano depois, arrecadando surpreendentes 20 milhões de votos, em sua maioria de classe média, média alta, ambientalistas, jovens, petistas desencantados e ongueiros. Surgia uma corrente de opinião eclética, acostumada a militar nas redes sociais, os "marineiros", que participaram das multitudinárias mobilizações de junho de 2013.

Apesar de sua história política meritocrática, sua força de caráter, seu compromisso, o que aproxima Marina de Collor é a funcionalidade de ambos: eles representam o antipetismo.

Em 1989, quando o PT propunha revisar e condicionar o pagamento da dívida externa, Collor assumia como seus, ainda que tenha talvez lido apenas em parte, os postulados do Consenso de Washington. Vinte e cinco anos mais tarde, transcorridos quase três governos petistas, Dilma e seu grupo ainda são os "inimigos a vencer", afirma privadamente Cardoso, dando voz ao parecer de banqueiros, editores e algumas embaixadas, caso da norte-americana.

Pragmáticos, os donos do poder se contentam com a ascendente Marina porque seu candidato ideal, Aécio Neves, ficou fora do jogo com 15% das adesões. E Marina aceita, apesar de seu discurso com sabor de clorofila, o pacto com o diabo para chegar ao Palácio do Planalto.

Em seu programa de governado redigido às pressas, sob a supervisão da herdeira do Banco Itaú, Maria Alice Setúbal, publicado na sexta-feira (29), consta a tese de um modelo pensado para iniciar uma era pós-PT.

No centro de gravidade do programa está o compromisso de "assegurar a independência do Banco Central de forma institucional o mais rápido possível", segundo resumiu a agência Reuters. Ou seja, é o fim da heterodoxia dilmista, com a implantação de um Banco Central impermeabilizado diante de qualquer governo eleito (inclusive o de Dilma), garantia para o retorno aos postulados noventistas baseados nas taxas de juros sem regulamentação, superávit primário alto para o pagamento dos juros da dívida a custa de investimentos públicos e políticas sociais, combate severo à inflação e câmbio flutuante. Propõe, além disso, reduzir subsídios estatais aos bancos de fomento como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e a Caixa Econômica, que financia moradias populares.

No plano energético, a plataforma "marineira" impõe restrições à política de expansão da Petrobras, especialmente na exploração das reservas gigantes em águas profundas, onde a legislação de 2010 outorga atribuições especiais à companhia estatal.

"O que vai acontecer se [esse] programa entrar em vigor? Não somente a Petrobras vai perder importância, mas vai impor restrições ao BNDES e à Caixa... vai acabar [o programa de moradia] Minha Casa, Minha Vida", contestou Dilma no sábado.

O antipetismo diplomático se resume em dois incisos contidos nas mais de 240 páginas do plano de governo para uma "nova política".

Primeiro, fim da cláusula que obriga aos membros do Mercosul a negociar em grupos de acordos comerciais com terceiros mercados, o que facilita caminhos de possíveis pactos bilaterais do Brasil com a União Europeia e, eventualmente, com os Estados Unidos.

Segundo, possível, para não dizer certo, arquivamento das demandas brasileiras diante de Washington devido à espionagem da agência NSA, da qual foram alvo Dilma, Petrobras e milhões de cidadãos, de acordo com documentos apresentados por Edward Snowden. Marina, em sua proposta de política exterior apresentada na sexta-feira, considera que "chegou o momento de adotar um diálogo maduro, equilibrado e propositivo que não dramatize as diferenças naturais entre sócios com amplos interesses econômicos e políticos".


Tradução de Daniella Cambaúva.

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